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O gótico em O Morro dos Ventos Uivantes e Jane Eyre

O gótico primeiro surgiu na literatura com O Castelo de Otranto, escrito em 1764 pelo inglês Horace Walpole. Marcada por uma mistura de elementos românticos e sobrenaturais, a literatura gótica surge durante o período iluminista, uma época em que a razão era supervalorizada e quaisquer obras que remetessem aos pensamentos e crenças predominantes da Idade Média eram vistas com desdém e estranhamento.

Apesar de serem criticados por contrariar as regras morais e os bons costumes europeus durante os séculos XVIII e XIX, os livros góticos cresceram em popularidade principalmente durante a Era Vitoriana. O Médico e o Monstro, Frankenstein, Drácula, O Retrato de Dorian Gray e A Mulher de Branco são apenas alguns exemplos de romances que revolucionaram o período e são lembrados até hoje.

Na literatura 

O gótico é bem marcado por um conjunto de elementos que, em sua maioria, estão presentes em romances do gênero. Castelos, mansões ou casas isoladas, frias e muitas vezes em ruínas, são o cenário predominante de livros góticos. Com uma atmosfera sombria e decrépita, esses lugares refletem o interior sublime e tempestuoso dos personagens inseridos na trama, e são capazes de intrigar e aterrorizar o leitor que, cuidadosamente, é convidado a conhecer tais locações nas páginas do livro. 

Assim como as construções, a natureza e o tempo refletem a estética do romance gótico. Tempestades, névoa e dias cinzas se mesclam com noites escuras e sem estrelas, quando o vento sibila pelas frestas das janelas e os ecos de passos em cômodos supostamente vazios e abandonados fazem personagem e leitor prenderem a respiração. O sobrenatural, aliás, é elemento chave dessa corrente literária, mesmo que a explicação para tais eventos estranhos e aparentemente de outro mundo seja algo racional até o término da obra. Vampiros, fantasmas e criaturas estranhas podem fazer aparições nos romances góticos. Seja em decorrência de uma maldição, avanços tecnológicos ou as mágoas de uma alma penada, tais seres são peças centrais nas obras. Anti-heróis com passados ocultos, sonhos e pesadelos, a morte, o melodrama e frequentemente a busca por vingança, surgem em diferentes combinações e dosagens em livros góticos da Era Vitoriana, aterrorizando e fascinando leitores do mundo todo.

Publicados em 1847, O Morro dos Ventos Uivantes e Jane Eyre, das irmãs Emily e Charlotte Brontë respectivamente, são exemplos de romances góticos carregados de elementos que os tornam leituras sublimes e aclamadas mesmo quase dois séculos após sua publicação, e merecem ser analisados minuciosamente.

O gótico em O Morro dos Ventos Uivantes 

“Discerni na escuridão um rosto de criança olhando pela janela.  [...] ela choramingava:
– Deixe-me entrar! – E seguia me apertando firmemente, quase me enlouquecendo de medo.
– Como posso fazer isso? – perguntei, por fim. – Solte-me, se quer que eu a deixe entrar!
Os dedos relaxaram, puxei os meus para dentro pelo buraco, empilhei depressa os livros numa pirâmide a fim de tapá-lo e cobri os ouvidos para não ouvir o pedido choroso. [...]
– Vá embora! – gritei. – Jamais vou deixá-la entrar, nem que fique aí pedindo por vinte anos.
– Já faz vinte anos – a voz se lamuriou –, vinte anos. Estou perdida faz vinte anos!
Com isso, comecei a ouvi-la arranhar de leve a vidraça, e a pilha de livros se moveu, como se alguém a empurrasse de fora. Tentei me levantar, mas não conseguia me mexer... então dei um grito, num frenesi de pavor.”

(O Morro dos Ventos Uivantes, Emily Brontë)

O fantasma de Catherine, avistado pelo Sr. Lockwood durante uma noite escura passada no Morro dos Ventos Uivantes, é apenas um dos elementos de horror em um livro que discute, entre outros temas, a força do ódio, os limites da vingança e o fino véu entre a vida e a morte. 

Emily Brontë

Heathcliff, um garoto não-branco de origem desconhecida que é adotado pelo Sr. Earnshaw e levado para que fosse criado em sua respeitável propriedade rural inglesa, é um exemplo de anti-herói dos romances góticos. Quase nada é sabido sobre seu passado antes que fosse viver com os Earnshaw no interior da Inglaterra, e seu temperamento brutal e volátil, acentuado pela discriminação e crueldade de Hindley Earshaw para com ele durante a juventude e pela decisão de Catherine de se casar com outro devido a vergonha que tinha dele, o tornaram um homem obcecado por vingança capaz de deixar rastros de destruíção por onde passa.

A obsessão de Heathcliff e Catherine um pelo outro e a ruína que tal sentimento traz para famílias inteiras parece estar conectada ao clima presente em toda a obra. Naqueles morros e charnecas onde a casa dos Earnshaw está abrigada, a chuva e o vento castigam a terra e o frio endurece as articulações. A raiva, a mágoa, a dor, o egoísmo e a crueldade muitas vezes parecem romper dos peitos de Catherine e Heathcliff e serem lançados aos céus. Os caprichos e impulsos de Catherine se assemelham aos ventos que devastam a região, a raiva e sede por vingança de Heathcliff têm a potência dos raios que cruzam o céu. Combinados, o que temos é uma tempestade que assola a terra, impiedosa e constante, que não cessa nem depois da morte. Como Vitória Schmidt diz em seu texto A natureza como personagem em O Morro dos Ventos Uivantes:

“O que Emily Brontë faz, a todo tempo, em O Morro dos Ventos Uivantes, é ‘bater na tecla’ de que a natureza e o ser humano estão vinculados, fazem parte de um todo e, com isso, devem permanecer juntos.”

O sobrenatural e o horror estão presentes praticamente em toda a obra. O fantasma de Catherine não deixa Heathcliff depois que ele a amaldiçoa a continuar ao seu lado enquanto viver, preferindo a loucura a existir sem a presença dela. Com a morte de Catherine, Heathcliff entra em estado de decadência e suas atitudes desafiam qualquer regra moral, desde violar o túmulo de Catherine e segurar o cadáver frio nos braços, se recusando a deixá-la, até violências contra a filha dela com Edgar Linton e também Isabella Linton; Heathcliff se torna cada vez mais cruel.

O oculto, a loucura, as alusões ao mal e à morte estão presentes em toda a obra, trabalhadas com magnificência por Emily, que não hesita em destrinchar os aspectos mais hediondos e obsessivos do caráter humano. Tais temas caracterizam uma grande obra de literatura gótica, embora a intensidade com que esses aspectos foram trabalhados tenha desagradado os críticos da época, como é possível ver em uma passagem do periódico Graham’s Magazine, publicada em julho de 1848:

“Como um ser humano poderia ter escrito um livro como o presente sem cometer suicídio antes de terminar uma dúzia de capítulos é um mistério. É um composto de depravação vulgar e horrores não naturais...”

George Rex Graham, fundador da revista e quem escreveu a crítica citada, certamente ficaria chocado - assim como tantos outros jornalistas e críticos da época - em saber que tal “depravação vulgar” e “horrores naturais” foram apenas alguns dos muitos elementos que fizeram de O Morro dos Ventos Uivantes um dos maiores romances ingleses de todos os tempos.

O gótico em Jane Eyre 

Charlotte, assim como a irmã Emily, também sofreu forte influência da literatura gótica no período em que Jane Eyre foi escrito, e embora existam elementos em comum com o O Morro dos Ventos Uivantes, eles se diferenciam pela maneira como são tratados.

Charlotte Brontë

Thornfield Hall é uma mansão muito mais opulenta que a casa rural descrita no único romance de Emily, e possui ares de castelo medieval e fortaleza. Durante o livro, a personagem Jane descreve suas ameias, abóbadas, longas galerias, escadarias escuras e corredores frios. Todo o lugar parece ter parado no tempo, assumindo um ar ainda mais sinistro com o clima escuro e chuvoso da região. 

É a descrição daqueles corredores iluminados pela luz da lua, os objetos antigos e os cômodos suntuosos e fúnebres ao mesmo tempo, que fazem o leitor se perguntar que tipo de ser poderia viver escondido na mansão.

Com a ambientação do lugar tão bem construída, os eventos estranhos que assolam a casa e são notados por Jane alcançam outro patamar. Risadas sinistras no meio do noite, cômodos que pegam fogo e aparições de uma mulher desconhecida contribuem com o forte teor gótico do livro. Até a identidade e as circunstâncias de vida de Bertha Mason serem reveladas, todo o mistério em torno da sua figura contribui com passagens arrepiantes no virar de páginas.

“Era um riso demoníaco – baixo, abafado e profundo – articulado, ao que parecia, no próprio buraco da fechadura. A cabeceira da cama ficava perto da porta e pensei a princípio que aquele duende risonho estivesse ao meu lado na cama, ou melhor, agarrado ao meu travesseiro. Levantei, olhei em torno e não vi nada. Enquanto ainda olhava ao redor o som sobrenatural irrompeu outra vez, e percebi que vinha do corredor. Meu primeiro impulso foi levantar e passar o ferrolho na porta. O segundo foi gritar de novo ‘quem está aí?’.”

(Jane Eyre, Charlotte Brontë)

Edward Rochester também carrega as características do que é chamado herói byroniano, um arquétipo de personagem que desvia de padrões morais pré-estabelecidos, mas é capaz de amar profundamente alguém. O temperamento, orgulho e mistério acerca do passado de Rochester o tornam um anti-herói tipicamente gótico. Sua natureza atrai e repele Jane ao mesmo tempo, sua presença tão marcante, por vezes assustadora e repleta de segredos, quanto sua propriedade Thornfield Hall.

Acontecimentos com ares de sobrenatural marcam Jane Eyre do início ao fim do livro. Como a aparição fantasmagórica do tio no quarto vermelho em Gateshead Hall, quando ela ainda era criança e foi trancada no cômodo assombrado pela tia cruel, e também a voz que chama Jane de volta para Rochester no fim do livro, uma voz, dessa vez parecida com a dela, que Rochester também ouve carregada pelo vento e lhe dá esperança de vê-la de novo. 

Embora o gótico esteja empregado de maneira diferente em O Morro dos Ventos Uivantes e Jane Eyre - ao notar o modo como, por exemplo, há uma explicação racional para os acontecimentos em Thornfield Hall, que na verdade se davam pela presença de Bertha Mason enclausurada no ático da mansão -, é possível afirmar que tais elementos, combinados ao romance e à complexidade da natureza humana, são magnificamente abordados nas duas obras, tornando-as ainda mais intrigantes e dignas de serem analisadas, geração após geração.

Referências




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