A ideia da romantização de O Morro dos Ventos Uivantes, romance único de Emily Brontë, nasceu por um simples motivo: a autora é uma mulher. A recepção da obra na época, todavia, foi diferente, e isso porque Emily, assim como suas irmãs, usou um pseudônimo neutro para a publicação. Não havia uma ideia romântica passando pelas cabeças dos críticos ou dos leitores comuns, pelo contrário: todos estavam horrorizados pela violência e crueza da história. A romantização da charneca onde se passa o drama de horror da família Earnshaw é fruto de misoginia. Uma mulher escrevendo? Só pode ser uma história de amor. Mas ela mesma falou, e Charlotte Brontë, sua irmã e autora de Jane Eyre, registrou, não se tratar disso. Por que, então, continuamos a pensar que há amor na história de Cathy e Heathcliff?
Um jornal de 1850, alguns anos após a morte de Emily Brontë, possui um artigo longo, de muitas páginas, que analisa detalhadamente as obras de Charlotte. O crítico em questão aproveita-se do fato de que Charlotte havia finalmente revelado ser a autora de Jane Eyre, romance que estava sendo republicado, tendo causado um grande burburinho na sociedade e no meio literário da época. Contudo, os críticos afirmavam que Currer Bell, pseudônimio utilizado por Charlotte para a publicação de seu livro, era apenas mais uma faceta de Ellis Bell - nome adotado por Emily para publicar O Morro dos Ventos Uivantes. Com a irmã morta, Charlotte achou por certo revelar a verdade, expondo o fato de ser ela autora de Jane Eyre, sim, mas não do outro livro. O mérito de Emily deveria ser de Emily.
Porém, quando ela se revelou, os críticos mudaram o tom e as rodas de conversa, junto com os jornais, passaram a dizer que é claro que Currer Bell era uma mulher - e é claro que também tratava-se de Ellis Bell. Segundo eles, dava para perceber em sua escrita os pensamentos de uma mulher. E ainda tiveram a ousadia de afirmar que ela apenas seguia com a farsa quanto a Ellis/Emily e a autoria de O Morro dos Ventos Uivantes porque o livro era um trabalho primário, muito rústico e violento para ser assumido com orgulho. A misoginia da época não conseguia admitir que havia mais de uma mulher talentosa que conseguiu driblar a crítica e ter seu romance publicado, vendido e criticado em jornais importantes. Porém, além da questão da autoria, também se iniciou aí um olhar mais "adequado aos trabalhos de uma senhorita". Essa delicadeza de olhar contornou Cathy e Heathcliff com o brilho da paixão, coisa que nem passava pelas mentes de leitores antes. Mas, como a autora era mulher, é claro que o livro deveria ser uma história de amor.
Primeira edição estadunidense de O Morro dos Ventos Uivantes, indicando que a autoria era do mesmo autor de Jane Eyre, ainda considerado um homem em 1848 |
Sobre a suposta história de amor e a redenção de Heathcliff através do poder do amor, Charlotte Brontë escreveu:
"O único elo que vincula Heathcliff à humanidade é o afeto que rudemente confessa sentir por Hareton Earnshaw – o jovem a quem arruinou; e sua semi-insinuada estima por Nelly Dean. Se omitimos esses traços isolados, diríamos que ele não era filho nem de um lascar nem de um cigano, mas uma forma de homem animada por uma vida demoníaca – um ghoul, um ifrit."
Existe amor em O Morro dos Ventos Uivantes?
É difícil definir o amor. O dicionário possui muitos significados para ele. Os poetas do Romantismo encheram livros a seu respeito. Mas o que diabos é o amor? A resposta de Emily Brontë é: isso não importa. Ela não nos conta uma história de amor. Se havia ou não um sentimento amoroso entre Cathy e Heathcliff, isso não é importante, pois a narrativa de seu livro não é sobre isso. Existir amor existe, mas em Cathy Segunda e Hareton, que se conhecem e, aos poucos, vão construindo um amor - mas isso só após se livrarem dos horrores de Heathcliff e do fantasma de Cathy. A história de amor certamente não está no casal principal; quando ela começa, o livro acaba.
Não é porque uma história possui um casal que ela seja uma história de amor. O que torna um livro numa história de amor é o cerne estar no sentimento e relacionamento amoroso entre duas ou mais pessoas. Quando pensamos em O Morro dos Ventos Uivantes, pensamos mesmo no incrível amor entre Cathy e Heathcliff? Porque, se for o caso, o pensamento está aquém da obra. Talvez romantizemos histórias por desejarmos gostar mais das personagens, colocando-nos em seus lugares e querendo gostar delas e torcer por eles. Mas a obra de Emily Brontë não foi escrita para ser gostada. Emily não era uma pessoa afeita a relações sociais e pouco se importava com o que pensavam dela. Isso podemos saber graças a escritos de sua irmã, Charlotte, e também a cartas e trechos de diários de pessoas que a conheceram. Ela chegou até mesmo a desprezar quem considerava o livro muito "duro" para as personagens, que não tinham um final feliz de uma história de amor. A isto ela disse que era porque aquelas pessoas eram fracas. Emily certamente não escreveu uma história de felicidade ou amor romântico. Pelo contrário: é uma história de ódio - e vingança.
Antes da noite em que ele ouve Cathy dizer que seria degradante estar com ele, Heathcliff não havia tentado coisa alguma com ela. Ele tinha uma amizade, obcecada sim, mais por questões sociais e de isolamento do que qualquer outra coisa. Mas não é como se houvesse algo romântico acontecendo entre eles. Cathy e Heathcliff eram adolescentes que cresceram juntos, a princípio como irmãos, depois, como senhorita e escravo. Com ela, ele podia conversar sem pedir desculpas, pois ela não passou a tratá-lo com desprezo após a morte de seu pai, que protegia o menino. Mas não há insinuação de relacionamento amoroso ou sexual entre os dois.
Uma das citações mais conhecidas do livro é aquela em que Cathy diz para Nelly Dean: "Eu sou Heathcliff!". Mas isso é sempre citado fora do contexto. O que Cathy realmente diz pouco antes da famosa citação é:
"Se eu estivesse no céu, Nelly, estaria me sentindo muito infeliz. [...] Mas agora eu iria me degradar se me casasse com Heathcliff, de modo que ele nunca vai saber o quanto o amo... e isso não porque ele é bonito, Nelly, mas porque é mais eu mesma do que eu."
Cena da adaptação de 1939, uma das responsáveis pela romantização da história |
E rico ele ficou. Alguns anos se passam sem que ninguém saiba dele. Quando retorna à charneca, Heathcliff é um cavalheiro rico que possui uma única intenção: fazer com que Cathy perceba que ele não é degradante, que ele é um ser humano. Quando ela continua a lhe dar as costas, fazendo jogos de poder com ele e com seu marido, Linton, Heathcliff percebe que a única forma de sair por cima é vingando-se. Nas palavras de Paulo Freire, "o sonho do oprimido é tornar-se o opressor". Não é difícil de entender isso ao ler O Morro dos Ventos Uivantes. Mas nada disso redime Heathcliff.
Heathcliff: herói romântico?
Muito se é dito sobre como Anne Brontë, a mais jovem das irmãs, foi progressista em seus livros ao retratar relacionamentos abusivos e como homens maus são maus e ponto, sem redenção. Mas Emily também fez isso. O próprio Heathcliff passa o livro dizendo que as pessoas não deveriam achar que ele é alguém que precisa ser salvo. O modo como trata Isabella mostra isso bem. Ele afirma que Isabella não deveria "formar nenhuma boa noção de seu caráter", e se congratula quando as pessoas, chocadas com sua crueldade, lhe dizem que não imaginavam isso dele, afirmando que ele sempre esclareceu a todos que lidam com ele que não é um herói de romances. Ele não está ali tentando ganhar o coração de alguém, nem mesmo viver uma história de amor.
Isabella é a maior vítima de Heathcliff. Ele casa-se com ela apenas para vingar-se de Cathy e de Edgar Linton, seu irmão. Já planejando uma ruína ainda maior, ele friamente pergunta a Cathy se Isabella é a herdeira de Linton, pensando em casar-se com ela tanto para vingar-se ao fazê-la sofrer quanto para que toda a fortuna que um dia Cathy almejou e preferiu a ele sejam dele, e todos os outros sofram em suas mãos. É a vingança perfeita. Mas a que custo?
De certa maneira, o olhar que Isabella Linton possui sobre Heathcliff é o olhar que os leitores acabaram adquirindo ao longo do tempo. De início, Isabella acha que ele é apenas incompreendido, que as pessoas não gostam dele por questões de classe social. Todos, inclusive Cathy, a alertam de que ele é um demônio, mas ela não acredita, achando que a cunhada tem ciúme dele. Cathy gostava de ser gostada, de ter poder sobre as pessoas, mas não amava Heathcliff de forma romântica a ponto de ter ciúme dele. E gostava da cunhada. Queria alertá-la. Mas Isabella não ouviu e fugiu com Heathcliff. Apenas para ver sua cachorra ser enforcada por ele, ser humilhada em Wuthering Heights, sua nova casa, passar por todo tipo de necessidade e apanhar de seu marido. Não há nada de romântico ou heroico em Heathcliff. Ele foi forjado na maldade de uma sociedade racista e xenófoba, que o rejeitou e ensinou que a crueldade é a única linguagem a ser escutada. Mas isso não o redime.
Sophie Ward e Ralph Fiennes como Isabella e Heathcliff na adaptação de 1992 |
Isabella tentou salvá-lo apenas para ser quase morta por ele, para sofrer estupro, e finalmente, quando se deu conta de que ele estava aquém de qualquer redenção, fugiu. Emily Brontë não romantiza Heathcliff. Ela mostra muito bem os efeitos de sua vilania aplicados em um relacionamento. Isabella o amava, mas foi tão abusada, de tantas formas, que passou a odiá-lo. Uma de suas falas mais icônicas, e que deixam bem claro o quanto Emily não estava escrevendo uma história de amor, é quando ela, machucada, sangrando e grávida, foge de Wuthering Heights e encontra Nelly Dean, governanta da casa de seu irmão. Lá, ela conta tudo por que passou com Heathcliff e acrescenta:
"Venci o meu desejo inicial de que ele me matasse: preferiria que matasse a si mesmo!"
Isso é dito ao lembrar de uma conversa que havia tido com Nelly Dean anteriormente, quando a governanta foi visitá-la na casa de Heathcliff. Transtornada e quebrada, literal e figurativamente, Isabella havia dito:
"Mesmo que finja serem outras as suas intenções, o que ele quer é levar Edgar ao desespero. Diz que se casou comigo de propósito, a fim de obter poder sobre ele, mas não vai obtê-lo, hei de morrer antes disso! Só espero e peço a Deus que ele esqueça sua diabólica prudência e me mate! O único prazer que consigo imaginar é morrer, ou vê-lo morto!"
"Ela [Isabella] abandonou-se sob um delírio;", ele respondeu, "me imaginando um herói de romance, e esperando indulgências ilimitadas da minha devoção cavalheiresca. Mal posso pensar nela como uma criatura racional, tão obstinadamente ela persistiu em formar uma noção fabulosa de meu caráter, e agiu sob falsas impressões que ela acalentou."
Quem é o culpado?
Então, por que ainda se fala que O Morro dos Ventos Uivantes é uma história de amor?
Além da misoginia explícita dessa afirmação, também há outros culpados. Um deles é o cinema. As adaptações cinematográficas da obra, desde a clássica versão de 1939 até a mais recente, de 2011, constroem sua narrativa em torno do amor arrebatador entre Cathy e Heathcliff. O amor vende. E, embora filmes sejam obras independentes de livros, muito da noção romântica que se tem de um Heathcliff que faz tudo por amor e uma Cathy que literalmente morre por estar separada do seu amado vem em decorrência de adaptações que centram toda a trama complexa de Emily Brontë em algo que nem está no livro.
Juliette Binoche e Ralph Fiennes como Cathy e Heathcliff na adaptação de 1992 |
E só é possível ler O Morro dos Ventos Uivantes como uma história de amor se ignorarmos completamente o contexto de raça e classe do livro. Heathcliff sente-se traído por Cathy porque ela era a única pessoa que lhe tratava como um ser humano. Ele, um homem não-branco, que foi tratado como coisa desde que chegou à casa da família Earnshaw. Ele perdeu a companhia de Cathy, que disse que seria degradante estar com ele, quando Edgar Linton, um rapaz rico, futuro advogado, de boa família, branco, de cabelo loiro e olhos azuis - como é citado muitas vezes na história - pediu a mão dela. Não é um "casei-com-ele-mas-te-amo", mas sim um "casei-com-ele-pois-tenho-vergonha-de-você-seu-imigrante-imundo". Nada de bonito nisso. E Cathy nem se arrepende. Após os anos que se passam em que Heathcliff some para fazer fortuna, ela não lhe pede desculpas, levando todos à loucura com seus jogos de poder. Cathy queria todos ao seu dispor, brincando com os sentimentos das pessoas e fazendo birra quando não cediam ao que ela queria. Ela gostava de Edgar Linton, mas era atormentada por Heathcliff, pois ele a conhecia por inteiro, era um vínculo muito forte para ser facilmente quebrado. Mas não forte o bastante para superar o racismo e a vergonha por Heathcliff ser não-branco e pobre.
O autor da história de amor entre Cathy e Heathcliff são todos os homens que, assim que descobriram ter sido uma mulher a escritora de O Morro dos Ventos Uivantes, saíram a dizer que aquele era um amor intenso, como apenas uma mulher poderia idealizar. O autor da história de amor é a indústria cinematográfica, que vende um produto distorcendo o livro. O autor da história de amor é o racismo que faz whitewashing de Heathcliff, tirando todo o contexto social sobre o qual o livro se apoia para deixar apenas a história de mais um rapaz branco que não pôde casar com a menina de quem gostava porque era pobre. Mas o autor da história de amor não é Emily Brontë. O que ela escreveu foi outra coisa.
O erro em ler uma obra pelo seu autor
Assim como os críticos quando descobriram que a autora do livro era uma mulher, muitas pessoas hoje em dia afirmam que O Morro dos Ventos Uivantes é uma história de amor - mas um amor tóxico. O argumento, que infelizmente já li muitas vezes em muitos lugares, sempre volta ao mesmo lugar: Emily Brontë escreveu isso porque provavelmente viveu uma vida de abusos em casa, com homens vitorianos violentos.
Novamente, essas pessoas partem do pressuposto de que uma mulher não pode escrever sobre nada além de sua vida e de suas experiências. Como se o terreno da ficção, da imaginação, fosse puramente masculino, e as mulheres estivessem eternamente presas a suas memórias. A misoginia, portanto, persiste.
Emily Brontë |
Qualquer pessoa que vá ler uma biografia das Brontë ou mesmo se inteire sobre as vidas das mulheres no século XIX encontrará não mocinhas indefesas, mas mulheres ágeis, que faziam mil tarefas por dia e, quando criavam arte, o faziam com entusiasmo e criatividade. Nem tudo é sobre a experiência pessoal de uma mulher. Pensar isso é encaixotar todas as mulheres em um só lugar - apertado, escuro e fedendo a naftalina.
É muito interessante olharmos para as vidas de escritores e tentarmos compreender por que escreveram tal coisa, quais foram as suas inspirações, o que os levou a pensar de tal maneira e criar tais personagens... Mas nem tudo é um reflexo da própria vida. E a mentira sobre Emily Brontë ser quase tão fantasmagórica quanto a própria Cathy do início do livro é apenas isso, uma mentira. Uma que reduz a escritora incrível e mulher prática que ela era. Sim, Emily Brontë tinha ares misantropos, como muitos que a conheceram relataram. Mas ela também era responsável por cuidar das finanças da família. Ela tinha uma mira ótima e sabia atirar muito bem. Interessava-se por música e passava boa parte de seus dias envolvida com o piano e com concertos, sempre que podia. Houve até mesmo um professor que dizia que ela deveria ter nascido homem - o que é uma fala ridícula hoje, mas nos possibilita entender como ela estava longe de ser a mocinha amuada e romântica que precisa ser salva, essa imagem apagada de sofrimento que é imposta a ela ainda hoje.
Sua própria irmã, Charlotte Brontë, achava Emily rústica demais, com uma escrita um pouco difícil, e condenava a criação de Heathcliff, uma personagem tão longe do romantismo. Charlotte não considerava isso muito certo e tentou "aparar" arestas da obra da irmã após a morte da mesma. Felizmente, O Morro dos Ventos Uivantes continua sendo lido como Emily Brontë o escreveu. O próximo passo é tirarmos o véu desbotado e misógino da romantização e o entendermos como Emily pretendia.
Referências
- If Wuthering Heights is a love story, Hamlet is a sitcom (The Guardian)
- Wuthering Heights is not a love story (Counter Arts)
- Myths of power (Terry Eagleton)
- The Brontës (Juliet Barker)
- The Brontës: a life in letters (Juliet Barker)
- The Palladium: a monthly journal - July 1850
Leia também
- Heathcliff era negro? Raça e classe em O Morro dos Ventos Uivantes
- 4 adaptações de O Morro dos Ventos Uivantes
Texto e arte em destaque: Mia Sodré
Outro ótimo texto sobre o clássico único de Emily Brontë! Honestamente, algumas pessoas falarem que O Morro é uma história de amor diz mais sobre elas do que sobre o próprio livro. Grande texto. Obrigada, Mia!
ResponderExcluirÓtimo!
ResponderExcluirAmei!
ResponderExcluirInteressante que isso ficou marcado em “Bonequinha de Luxo” (o livro):
ResponderExcluir"Give me an example," I said quietly. "Of something that means something. In your opinion."
"Wuthering Heights," she said […] ‘My wild sweet Cathy’. God, I cried buckets. I saw it ten times."
I said, "Oh" with recognizable relief, "oh" with a shameful, rising inflection, "the movie."
Curioso que essa citação ironicamente se encaixa na adaptação de Bonequinha de Luxo pro cinema também, que alterou tantos pontos chave da história e igualmente forçou um romance tradicional entre os protagonistas.
Enfim, apesar dos pesares a adaptação de 1939 é muito interessante, principalmente considerando as limitações que eles tinham que enfrentar com o código de Hays (e ver Laurence Olivier em seu trabalho é sempre um bônus) :)
Análise simplesmente incrível, captou todos os detalhes e crueldades da obra.
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