É uma verdade universalmente conhecida que o destino de uma mulher está traçado desde o momento de seu nascimento. Peço desculpas pelo uso de parte da icônica passagem de Jane Austen em Orgulho e Preconceito mas, em pleno século XIX, que outra saída havia para uma mulher se não cumprir o destino pré-estabelecido pelo seu gênero e classe social? E não só no que diz respeito à sua situação física, mas também intelectual e emocional.
“Das mulheres se espera que sejam muito calmas, de modo geral. Mas as mulheres sentem como os homens. Necessitam exercícios para suas faculdades e espaços para os seus esforços [...] É insensato condená-las ou rir delas se buscam fazer mais ou aprender mais do que o costume determinou necessário ao seu sexo.”
Jane Eyre, a personagem do livro homônimo de Charlotte Brontë, é conhecida por sua força, determinação e
sagacidade, características essas que fogem do padrão feminino da época. Muito
à frente de seu tempo, ela chega a desafiar determinados paradigmas. Mas há em
Jane Eyre um traço ainda mais surpreendente quando se trata da realidade da
personagem: a inteligência emocional.
O livro foi publicado em
1847, sob o pseudônimo Currer Bell, quando pouco se falava sobre questões
emocionais como traços de personalidade em personagens de grandes romances.
Jane Eyre é narrado em primeira pessoa, e durante a narrativa a personagem discorre sobre sua vida desde a infância. É nesse período da vida, por conta do
isolamento social decorrente da sua criação e do desprezo por parte de seus
familiares, que ela passa a tentar entender a si mesma. Conhecer as próprias
emoções, exercitar a empatia e criar uma relação interpessoal foram cruciais
pra que Jane Eyre tivesse o desenvolvimento que teve.
A questão é que há quase
200 anos, Charlotte Brontë teve a habilidade de expor as emoções de sua
personagem e de construir análises psicológicas extremamente delicadas durante
a narrativa. Em cada palavra, um toque de audácia e vontade de ter suas ideias
ouvidas por quem estivesse lendo.
Charlotte Brontë |
Nos primeiros capítulos,
quando Jane tinha dez anos, sua tia decide trancá-la durante horas num quarto
escuro como punição para sua “perversidade” infantil, e naquele ambiente ela
sente grande pavor. Quando finalmente a deixam sair, ela não consegue controlar
suas emoções e somente chora. Nas palavras da própria Jane, seu “pior
sofrimento era um indizível tormento mental: um tormento que não parava de
arrancar lágrimas silenciosas”; ela basicamente descreveu uma crise de
ansiedade, o que torna mais fácil enxergar a sensibilidade da autora no que diz
respeito aos sentimentos e saúde mental da personagem.
A protagonista não é uma
mulher perfeita e tem consciência disso. Na verdade, ela foi escrita de forma
muito “humana”, o que nos faz sentir ainda mais empatia por ela. Por muitas
vezes, Jane trava batalhas entre a razão e a emoção, e analisa com cuidado o que
sente, tentando tomar a melhor decisão de como prosseguir.
Jane Eyre é alguém que enxerga a si mesma como uma pessoa digna de ousar, viver e ser respeitada. É esse o grande diferencial que a torna tão única. Ela não é só mais uma heroína em busca de independência financeira, mas também da liberdade de sentir suas próprias emoções e coragem para ir em busca daquilo que acredita merecer. E é impossível não torcer por ela.
“Eu não podia evitar: a inquietude estava na minha natureza, e às vezes me agitava a ponto de me causar sofrimento.”
Apesar de nascida numa época em que dificilmente seria ouvida, a voz de Charlotte Brontë ecoa ao nosso redor ainda hoje, nos mostrando a importância de olhar pra dentro de nós mesmas e ver não só aquilo que somos, mas também aquilo que podemos ser e sentir.
“Não sou um pássaro, e rede alguma me prende; sou um ser humano livre, de arbítrio independente.”
Lembro de começar Jane Eyre temendo largar o livro no meio, mas foi uma leitura surpreendente, considerando o contexto da obra e as críticas da autora. Foi bastante agradável ver essa mulher de tempos passados lutando para viver a vida que queria viver. Ao mesmo tempo é triste ver que ainda temos que atravessar as mesmas dificuldades.
ResponderExcluirÓtimo texto! 🤍