Quando voltamos nossa atenção para os clássicos da literatura do horror, encontramos uma pluralidade de monstros que, mesmo criados há séculos, ainda possuem um expressivo legado no mundo contemporâneo. São muitos os seres da noite, as criaturas estranhas e sanguinárias e os assassinos mais apavorantes. Assim como na literatura clássica em geral, podemos perceber a tradição da autoria predominantemente masculina nessas histórias de horror. Consequentemente, é possível perceber que ocorre o predomínio, também, de uma narrativa que se pode dizer “essencialmente masculina". Ou seja, uma narrativa a serviço do chamado Herói, costumeiramente um homem, na qual estes combatem monstros em batalhas gloriosas, empreendem viagens maravilhosas e sombrias e se encarregam de mistérios que podem ser resolvidos apenas pelas mentes dos homens mais brilhantes. Mas falemos, entretanto, de uma narrativa que se insere nesse grupo de clássicos do horror, mas se destaca tanto em questão de autoria quanto de narrativa: Frankenstein, da inglesa Mary Shelley.
Publicado no início do século XIX, esse romance, considerado um precursor da ficção científica, nos leva a acompanhar a dinâmica de gato e rato entre um criador e sua criatura. Após o cientista Victor Frankenstein ter sucesso no seu experimento de criar a vida através de processos químicos derivados do galvanismo em seu laboratório, o homem se aterroriza com a estranha criatura humanoide que “deu à luz” e corre apavorado, a abandonando à sua própria sorte. Tal criatura, rejeitada em toda e qualquer tentativa de aproximação com a espécie humana, persegue seu criador atrás de respostas e soluções para a sua existência infeliz e solitária.
Por muito tempo, o foco do legado dessa história esteve na reprodução da imagem de seu monstro, não nomeado, através da aparência grotesca e zumbificada, com tendências violentas e uma estranha aversão ao fogo. Hoje, revisitando esse livro, é possível perceber que Mary Shelley se preocupou com muito mais do que criar uma história de terror clássica que buscava arrepiar a espinha e acelerar corações, como ocorreu com alguns de seus colegas autores de clássicos de horror. Claro que podemos encontrar neles também algumas críticas sociais ou uma certa profundidade filosófica aqui e ali. Porém, essencialmente, suas narrativas são fechadas nessa narrativa arcaica e masculinizada do Herói salvador, que apresenta a história de um homem superior em valores morais, físicos e mentais àquela criatura assustadora a qual devemos temer, a quem e será responsável por tentar extingui-la.
Jonathan Harker e Van Helsing são homens dignos que não compactuam com a imoralidade de Drácula, na obra homônima ao personagem vampiro, de Bram Stoker. O Sr. Hyde representa todos os piores elementos do bom Dr. Jekyll, enquanto o advogado Utterson questiona como essas duas figuras aparentemente tão distantes em princípios poderiam estar relacionadas em O médico e o monstro (Robert Louis Stevenson). Todos esses inteiramente bons e curiosos homens buscarão confrontar o mal encarnado em nome do bem.
Vemos, porém, que Mary Shelley não criou um cientista heroico e protagonista, que buscava derrotar um monstro terrível para livrar a humanidade de algum tipo de mal. A jovem escritora, de certa forma, visou colocar ambos, cientista e monstro, no mesmo nível de importância narrativa, quando deu à criatura um espaço para vocalizar suas próprias angústias e motivações. Ao invés de seguir uma cartilha para romances góticos, se preocupando principalmente em inserir os elementos macabros, castelos isolados, maldições e fantasmas, a autora optou por explorar também as veredas do psicológico humano, pensando-o por uma perspectiva do Outro. Os elementos góticos se fazem presentes na narrativa? Sim. Mas o foco narrativo se encontra antes no embate psicológico dos personagens e no questionamento destes, do que na ideia de assustar o leitor através de alegorias fantásticas.
A criatura de Frankenstein é inteligente e culta, autodidata, e procura seu lugar no mundo. É perceptível que ela tem problemas para lidar com suas emoções, mas não é algo inesperado quando consideramos que estamos diante de um ser que teve de se criar sozinho e descobrir o mundo por si mesmo, ao mesmo tempo em que lidou com a experiência de todo ser humano sentir ojeriza ao se deparar com sua imagem. É velha a ideia de que uma escritora teria um foco maior na emoção e na interiorização de conflitos, pois este foi o papel relegado às mulheres por muito tempo. Entretanto, poderíamos ir além ao pensar nesta criatura de Frankenstein como uma representação de um Outro, que nos induz a pensar o que é humano e quais seriam os critérios para definir esse conceito. E ainda, quem os definiria e baseados em quem. Essa seria uma ideia muito cara ao movimento feminista no qual a autora já estava inserida: a reflexão acerca da percepção da sociedade sobre a mulher como um Outro diferente daquele que é o homem, o modelo perfeito de humanidade.
A criatura deste romance não se encaixava no modelo humano (e masculino) perfeito, mas sim era uma coisa outra e diferente, assim como o ser mulher, que é também vista como um ser inferior, emocional, subalternizado à tal modelo ideal. O corpo das mulheres é também estranho e nojento aos olhos da sociedade. Mulheres são, muitas vezes, criaturas solitárias destinadas a aprender sozinhas o como viver. Shelley, em sua obra, não coloca a criatura monstruosa na posição de vilã amoral e maléfica, mas um ser injustiçado por não atender padrões pré-estabelecidos que nem a ele se deve o controle de atender. Ao mesmo tempo, o homem protagonista pode parecer ter uma construção de “mocinho”, mas não é um herói. É um homem que apresenta falhas e que causa tantos problemas quanto seu antagonista. A narração de Shelley cria margem para pensarmos nas nuances psicológicas e emocionais que podemos encontrar nas situações em que estes protagonistas se inserem.
Nesse romance, testemunhamos que o homem de Frankenstein é um cientista com complexo de Deus que não teve a capacidade de lidar com o problema que ele mesmo trouxe para si em sua busca desenfreada pelo conhecimento científico e por uma solução ao sofrimento por suas perdas. Seguindo aquela velha ideia dualista que pensaria uma divisão entre razão e emoção para os respectivos gêneros masculino e feminino, podemos enxergar na obra de Mary Shelley uma crítica interessante a tal divisão, como equivocada, enquanto podemos observar na narrativa que essa tal racionalidade delegada ao ser masculino, quando não é contrabalanceada com o emocional, considerado especificamente feminino, é negativa. É exatamente esta a origem que podemos inferir dos eventos tenebrosos do livro: a impossibilidade de Victor Frankenstein manejar seus próprios sentimentos acerca da morte de seus entes queridos e do medo que sente de sua criação. Pensando a criatura de Frankenstein como um ser altamente emocional, por ocupar esse lugar de um Outro que é imperfeito, é possível acreditar que o contrabalanço também não ocorre para ele quando, se deixando levar por suas emoções, causa destruição durante a história. Ambos surgem como personagens com defeitos e que cometem atos de moral contestáveis, porém, o conflito importante da narrativa não se dá pela luta entre o bem e o mal. Mary Shelley escolheu contar uma história diferente.
Segundo a famosa autora de ficção científica Ursula K. Le Guin, em seu ensaio A teoria da bolsa da ficção, “o Herói decretou… primeiro, que a forma adequada da narrativa é a da flecha ou lança…; segundo, que a preocupação central da narrativa, incluindo o romance, é o conflito; e terceiro, que a estória não pode ser boa se ele, o Herói, não estiver nela". Mary Shelley, percorrendo uma via diferente de outros escritores de mesmo gênero literário ou época, não criou um protagonista Herói. A centralidade de seu romance não se dá por meio de um conflito épico de lanças e espadas, mas, sim, primeiramente, no conflito mental e individual de seus dois protagonistas, que ocorre durante toda a narrativa, e não apenas no dito clímax. E não podemos dizer que esse clássico, que se fez presente por gerações no nosso imaginário, é uma história ruim. Mary Shelley não se prende aos limites do romance gótico, mas nos assusta com as próprias tonalidades do psicológico humano, e sobre-humano, de certa forma. Ela não se detém no clássico “mocinho derrota monstro terrível”, ela transcende a ideia de bom e mau, e dá ao leitor a oportunidade de pensar em uma área cinzenta sobre o funcionamento da humanidade. Quem é o herói nessa história e quem é a vítima? Será que podemos prender esses protagonistas a rótulos? Que lugares são esses ocupados pelos personagens?
É claro que hoje, a cultura do romance de cunho psicológico já se tornou comum dentro das possibilidades literárias, e poderíamos citar diversos escritores que escolheram esse estilo de contação de história. Mas é importante lembrar que Mary Shelley só pretendia escrever uma história de terror para contar em dias chuvosos, um conto de gelar a espinha, um bom monstro para se ter pesadelos à noite e assustar seus colegas ouvintes. Shelley transcende a proposta, fundando o que conhecemos hoje como literatura de ficção científica, e criando uma história que não apenas assusta, mas cria reflexões em diversas áreas do conhecimento humano. Ao invés de tornar seu monstro um ser horrendo que funcione apenas como antagonista da narrativa, o grande elemento antagonizante da história, verdadeiramente assustador, é a falta de empatia, zelo, ética, da humanidade, explorado especialmente pela ótica de uma mulher.
Referências
- A teoria da bolsa da ficção (Ursula K. Le Guin)
- Frankenstein, de Mary Shelley, e Drácula, de Bram Stoker: gênero e ciência na literatura (Lucia de La Rocque, Luiz Antonio Teixeira)
- Frankenstein (Mary Shelley)
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Gosto muito dessa história e do contexto da escrita. Sensacional a maneira como ela subverte os papéis tornando a trama ainda mais intrigante. Parabéns pela análise, Bárbara!
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