O Gótico
O termo "gótico" vem da palavra "godos", que se refere ao povo germânico localizado na região da Escandinávia. Foram eles os responsáveis pela queda do Império Romano e pelo início da Idade Média. Para os romanos, os godos eram conhecidos como bárbaros, pois a palavra significa estrangeiro, e para eles, todos os povos que pertencessem a outra etnia, civilização ou que falassem uma língua diferente eram considerados bárbaros.
O termo “arquitetura gótica” foi usado pela primeira vez pelo pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari, no século XVI. A palavra era usada pelos renascentistas para se referir a arquitetura medieval, que tem como principais características as catedrais, os arcos e abóbadas ogivais, as gárgulas, as janelas amplas e grandes vitrais, como a Catedral de Notre Dame, em Paris. Para Vasari, esse tipo de arquitetura havia destruído toda a beleza do clássico greco-romano, pois, com o classicismo no auge durante o Renascimento, o termo "gótico" era associado a tudo o que era bárbaro, diferente, excêntrico, retrógrado ou obsoleto. A arquitetura gótica, era rejeitada pelos renascentistas, pois representava a arte da Idade Média, a chamada "Idade das Trevas". Para muitos, a era representava o retrocesso intelectual e cultural, movido pela grande influência da Igreja Católica nos costumes da sociedade.
Na literatura, as obras góticas se iniciam no final do século XVIII. O Gótico é considerado um subgênero da literatura romântica, pois ambos têm foco nas emoções dos personagens, além de trazer ideias opostas ao racionalismo. No Gótico, entretanto, a imaginação presente no Romantismo dá lugar a elementos sobrenaturais.
O Gótico está ligado também à ideia do sublime, o efeito de imensidão que a arte e a natureza provocam no ser humano. Essa teoria do filósofo irlandês Edmund Burke relaciona o sublime ao sentimento de terror, pois, para ele, "tudo aquilo que serve para, de algum modo, excitar as ideias de dor e perigo... ou versa sobre objetos terríveis, ou opera de maneira análoga ao terror, é origem do sublime; ou seja, é causador da mais forte emoção que a mente é capaz de sentir".
O auge do Gótico foi no ano de 1790, com as obras da autora Anne Radcliffe, considerada a escritora mais bem paga de sua época, se eternizando por seu trabalho em Os mistérios de Udolfo. Radcliffe, diferente de Walpole, não apresentava ao leitor o sobrenatural de forma explícita, mas trazia situações que explicavam, de forma racional, os acontecimentos aparentemente sobrenaturais. Esse tipo de literatura é chamada de terror, muito mais sutil, subjetiva e até psicológica que o horror.
Já no século XIX, o Gótico passa por uma transformação, aderindo ao cenário científico e das novas tecnologias, como em Frankenstein, de Mary Shelley, O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e Drácula, de Bram Stoker. No século XX, O fantasma da ópera, de Gaston Leroux, e Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, foram algumas obras que marcaram o período.
A história do castelo
Com uma profecia que ameaça o seu reinado, Manfredo, o senhor do castelo de Otranto, se vê ansioso para manter sua linhagem viva com o casamento de seu filho, Conrado, com a jovem Isabella. Porém, devido a um infortúnio no dia do casamento, o homem presencia seu próprio filho ser esmagado de forma misteriosa por um elmo gigante. Este acontecimento, no entanto, não impede que Manfredo siga com os planos de gerar um sucessor para seu trono, então ele mesmo resolve se casar com a princesa. Além da transgressão de selar um acordo com a jovem prometida para seu filho, o príncipe está disposto a se divorciar de sua mulher, Hipólita, a quem tem pouco apreço.
A partir desse momento, uma sucessão de desgraças atinge o castelo, e a morte de um filho passa a ser a menor preocupação do príncipe, que agora precisa convencer Isabella a aceitar a união dos dois, e sua esposa a consentir com a separação, além, é claro, da aprovação do padre Jerônimo para desfazer os laços matrimoniais.
"Um silêncio insuportável reinava naquelas regiões subterrâneas, interrompido vez ou outra por rajadas de vento que estremeciam as portas pelas quais Isabella havia passado, e que, arranhando as dobradiças enferrujadas, ecoavam por aquele longo labirinto de escuridão."
A jovem Isabella se vê horrorizada com a proposta do príncipe de Otranto e decide fugir da loucura de Manfredo, sendo ajudada pelo camponês Teodoro, que a esconde nas passagens secretas do castelo. Após descobrir sobre a fuga da princesa, Manfredo ordena que Teodoro seja executado, mas o Padre Jerônimo o reconhece como filho e implora pela misericórdia do príncipe. Pouco tempo depois, os moradores do castelo são surpreendidos com a chegada de cavaleiros em busca de Isabella. Manfredo, então, trancafia Teodoro e segue em busca do paradeiro da princesa. Enquanto isto, Matilda encontra Teodoro, e após se encantarem um com o outro, a jovem o liberta, e o rapaz se refugia na floresta. Se escondendo nas cavernas, ele acaba encontrando Isabella, e a protege dos cavaleiros misteriosos que buscavam por ela. Durante a luta, Teodoro fere gravemente um dos soldados, que se revela ser pai da princesa.
De volta ao castelo, a grande tragédia finalmente se concretiza. Após um acordo entre Frederico e Manfredo para casarem um com a filha do outro, o príncipe de Otranto vai atrás de Isabella ao suspeitar de que a princesa estaria encontrando secretamente Teodoro nos aposentos da igreja. Ao chegar lá, Manfredo vê o rapaz conversando com uma figura feminina e, tomado pela fúria, ataca a moça com uma adaga, sem saber que acabara de ferir sua própria filha, Matilda, que morre pouco depois. Nas últimas cenas do livro, acompanhamos Manfredo lidando com o remorso após ter causado a completa destruição de sua família.
A maldição que previa a posse do castelo pelo verdadeiro herdeiro se concretiza, e a história termina com Teodoro se revelando o verdadeiro príncipe de Otranto, tornando-se rei e se casando com Isabella.
A publicação da obra
Considerado o primeiro romance Gótico, O castelo de Otranto, escrito pelo autor inglês Horace Walpole, foi publicado em 1764. Em seu primeiro prefácio, o autor não assumiu a autoria da obra, assinando com um pseudônimo italiano chamado Onuphrio Muralto. Segundo o autor, o livro se tratava de um manuscrito encontrado na biblioteca de uma antiga casa da Inglaterra, que pertencia a uma família católica. Com medo da rejeição, Walpole diz ter somente traduzido a obra para o inglês.
Horace Walpole |
O autor apenas assumiu a autoria do romance na segunda edição, pois a obra era ousada demais para a época. No momento em que foi publicada, no século XVIII, o Iluminismo dominava, e junto com ele a vontade de se afastar de tudo o que se relacionava às crenças da Idade Média, por isso a obra fantasiosa e com elementos góticos de Horace não agradou. Ainda assim, Horace Walpole era um amante da Idade Média, e até transformou sua própria residência em Londres, a Strawberry Hill, em uma vila gótica. O livro teve mais aceitação por parte do público apenas na segunda edição. Walpole, no segundo prefácio, dizia ter tentado fundir o antigo e o moderno - em inglês, descrito com os termos "Romance" e "Novel". "Romance" se refere às obras arturianas, obras medievais no geral, que abordam a magia e a fantasia como trama principal. Já "novel" se refere a um retrato mais realista da sociedade e narra costumes e acontecimentos do cotidiano.
Qualquer semelhança entre a obra Hamlet, de William Shakespeare, e O castelo de Otranto não é mera coincidência, pois o autor era um grande admirador do trabalho de Shakespeare, apontando isso no próprio prefácio do livro. Tanto O castelo de Otranto quanto Hamlet abordam questões acerca do casamento, da linhagem e dos laços familiares, e, ainda assim, O castelo de Otranto foi considerado o primeiro romance Gótico, pois seu cenário, embora medieval, apresenta personagens com atitudes que correspondem à época em que foi publicado.
O retrato das mulheres na história é de total submissão. Em um trecho no qual Matilda diz se sentir mal pelo tratamento indiferente e maldoso que sua mãe recebe de seu pai, a criada Bianca responde: "- Ah! Senhora, todos os homens tratam suas esposas assim quando estão cansados delas". Infelizmente, a misoginia não está presente apenas no retrato da sociedade da época feita por Walpole, mas também nas falas do próprio autor: "uma hiena de anágua" foi a forma como Horace Walpole descreveu a filósofa inglesa, e uma das mais importantes defensoras dos direitos das mulheres, Mary Wollstonecraft, também conhecida como a mãe de Mary Shelley, autora de Frankenstein.
Elementos Góticos
A narrativa em O castelo de Otranto se assemelha muito a uma peça teatral, repleta de diálogos e dramas dignos de uma tragédia shakespeariana, na qual nos deparamos com medos, crimes, castigos, mortes, segredos familiares e destruição, mas também paixões avassaladoras. O excesso de drama torna os personagens super caricatos, com heróis e heroínas totalmente puros, o que faz com que suas reações, muitas vezes, se tornem até cômicas. Os temas misteriosos, ocultistas e obscuros marcam a literatura gótica, e em O castelo de Otranto essas características são marcadas pela aparição dos fantasmas.
"Escute, meu senhor! Que som foi esse? - Ao mesmo tempo em que falava, avançou para a porta. Manfredo, indeciso entre a fuga de Isabella, que agora alcançava as escadas, e a incapacidade de tirar os olhos do quadro, que começara a se mover, deu alguns passos atrás da princesa, ainda olhando de volta para o retrato, quando o viu deixar a moldura e descer até o chão com um ar grave e melancólico."
Na obra, o castelo também vira um personagem, o ambiente noturno e sobrenatural toma conta da narrativa, sendo percebido nos corredores obscuros, passagens secretas e nas criaturas misteriosas que assombram e atormentam a mente. O pessimismo e a loucura são temas muito abordados dentro da literatura gótica. Manfredo, por exemplo, é completamente tomado pela insanidade, motivado pelo desejo de tomar Isabella para si a qualquer custo. Dessa forma, a sua própria loucura e obsessão tornam-se responsáveis por concretizar a profecia que ele tanto temia.
"- Contemplem em Teodoro o legítimo herdeiro de Alfonso! - disse a aparição. E, após pronunciar essas palavras, que foram acompanhadas por outro estrondo de trovão, a figura ascendeu solenemente ao Céu cujas nuvens, abrindo-se em um clarão, permitiram um vislumbre da forma de São Nicolau."
Referências
- O Castelo de Otranto: os castelos de Walpole e a origem do romance gótico (A Escotilha)
- The origins of the Gothic (John Mullan)
- Horace Walpole (Britannica)
- The Castle of Otranto: The creepy tale that launched gothic fiction (BBC News)
- The Cambridge Companion to Gothic Fiction (Jerrold E. Hogle)
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