últimos artigos

Castelos: um elo entre a vida e a ficção


Há milênios, palácios e mansões fazem parte do imaginário humano. Já na literatura grega arcaica esses elementos são importantes para a construção dos mitos. Mas no gótico, a “casa assombrada” se torna um tema recorrente, envolvendo tais construções com uma bruma de mistério, tornando-as quase um personagem especial. E, claro, também é possível se voltar para os contos de fada e se deparar com os castelos, envoltos, nesse caso, por uma aura de encantamento. 

Edgar Allan Poe, em seu conto A queda da casa de Usher, revisita, de sua vida simples em Massachusetts no século XIX, o gótico da literatura inglesa, especificamente britânica: a casa de Usher, uma mansão rodeada do sobrenatural, veio daquele imaginário. Ou seja, ela transporta para a obra um passado glorioso de amor à arte. A casa é uma mansão, a mansão poderia ser um castelo. Essas obras arquitetônicas podem ser atualizadas conforme a época do autor, mas são usadas com o mesmo propósito de ambientar uma história em tempos remotos e mais próximos do sublime. 

Assim, cria-se uma tradição em torno dessas construções. Um dia, foi o Palácio do rei Minos, depois, o castelo de Drácula, a casa de A assombração da casa da colinade Shirley Jackson, ou, mais atualmente, o Hotel Overlook de O iluminado, de Stephen King. Todas essas casas, mansões, palácios, castelos, servem como portais. Eles nos dizem ser possível visitar o passado. E em alguns casos interessantes, tais elementos inspiradores da literatura — e posteriormente do cinema — estão ancorados na realidade. É o caso de muitos castelos, herança de tradições do período medieval e de uma cultura predominantemente europeia. A tradição que eles trazem consigo os tornam ainda mais exemplares dessa ideia de retorno a uma era de ouro. 

Sobre a comoção que esse tema gera, Poe fala, por meio do narrador, no conto antes citado: 

“Que era isso — detive-me a pensar — o que era que me inquietava tanto na contemplação da casa de Usher?"

É fundamental entender os castelos como fonte de êxtase. Não é à toa que tantas histórias de terror falam sobre eles. A atmosfera desse lugar remete a um ponto fora do tempo, criado através dessa tradição, que leva os personagens e o leitor ao sublime. A valorização da vivência do épico, e em consequência, da arte, é o que caracteriza essas histórias como atemporais. Década após década, há mais de milênios, falamos sobre um ambiente isolado, envolto de suspense, que devora a nossa atenção e os nossos sonhos. E isso se transforma, como tudo o que há de melhor na criação artística. É o que as define como criação inerentemente humana. 

Mas é preciso tomar cuidado ao olhar para o passado. Há uma linha muito conservadora, e tantas vezes preconceituosa, que cultua o passado. A ideia de que os costumes europeus antigos são superiores às sociedades contemporâneas é extremamente perigosa. E ela se apropria de coisas tão fascinantes como os castelos e a literatura que sobre eles fala. Afinal, não é uma coincidência que H.P Lovecraft também tenha histórias sobre castelos - como O intruso (The Outsider), inspiração para o filme O castelo maldito (1995). Na América Latina, as mansões significam outras coisas e os castelos possuem um significado importado da cultura colonizadora. A literatura aproxima regiões e séculos. E quando pensamos na relação entre a literatura e a sociedade, veremos que as reverberações são muito complexas. Representar horrores ajuda-nos a entender melhor a nós mesmos. É esse princípio - de um olhar crítico, ainda que apaixonado - que guia a tentativa de conectar os castelos dos livros, filmes e do mundo. 

Castelo de Drácula e Nosferatu 

Do célebre romance de Bram Stoker derivam incontáveis histórias sobre vampiros. Dentre as coisas que permaneceram está a ideia do castelo, o covil onde as criaturas se escondem, nas sombras. E, embora o autor seja irlandês, acredita-se que a inspiração para o lar do vampiro Drácula seja o castelo de Bran, localizado na Transilvânia, região da Romênia. Isso porque havia um príncipe chamado Vlad, com diversas lendas a seu respeito, as quais incluíam canibalismo e degolações. A descrição do ambiente no livro é muito importante. Assim, a tradição gótica é responsável por desenvolver um mundo muito próprio, por meio da imagem de castelos existentes na Europa e de uma estética marcante. 

Castelo de Bran (foto: Todor Bozhinov/reprodução Wikipedia)

Muito semelhante é o caso de Frankenstein, de Mary Shelley, uma obra repleta de especulações a seu respeito. É preciso notar que as obras em si já são interessantes o suficiente. Tanto ela quanto Bram Stoker criaram obras únicas, evidentemente inspirados por outras obras e ideais, mas, não necessariamente, por castelos reais. 

Não é preciso se inspirar em um ou outro castelo específico para isso. Nem mesmo ficar presa em uma casa com seu marido e um médico. O castelo em questão é o próprio Castelo de Frankenstein. Ele fica na região da cidade de Darmstadt, na Alemanha e foi construído no século X. As lendas dizem que  Johann Dippel foi um alquimista que viveu no castelo e, tendo conhecido Mary Shelley, lhe contou sobre o lugar. Além disso, a autora teria viajado para a região anos antes de o livro ser escrito. Contudo, a inspiração nunca foi confirmada. Ainda assim, é indispensável dizer que a cidade fica cheia de turistas, principalmente no mês de outubro. 

Castelo de Frankenstein (foto: Pascal Rehfeldt/reprodução Wikipedia)

Mas voltando para Drácula, a partir da obra surgiram muitas coisas interessantes, sobre as quais devemos comentar: foram feitos desde romances queer até animações sobre um hotel na Transilvânia e os monstros que ali viveriam. Tudo isso nos ajuda a entender a importância do imagético. A imagem do castelo, da arquitetura gótica, do ambiente sublime e assombroso, é fundamental para a literatura, o cinema e a TV. Dessa forma, o castelo de Bran, um monumento histórico do século XIII, se torna símbolo de algo ainda maior e que transcorre há séculos e atinge pessoas do mundo inteiro. 

Duas outras obras que também se utilizam da mansão, ou do castelo, a partir da criação de Bram Stoker são Nosferatu (1922) e The Rocky Horror Picture Show (1975). Nosferatu é a história de um corretor de imóveis, Hutter, que precisa visitar o Conde Graf Orlock para lhe oferecer uma casa. Para isso, faz uma visita ao excêntrico conde em seu castelo, nos montes Cárpatos. E sendo assim, o castelo de Nosferatu fica nas cordilheiras entre a República Tcheca e a Romênia. A história é de fato uma adaptação de Drácula, com algumas diferenças e traços característicos do cinema expressionista alemão. 

Nosferatu (1922)

The Rocky Horror Picture Show, por sua vez, bebe desse imaginário, mas o reinventa de forma genial ao longo do filme. Há uma mansão assustadora nos Estados Unidos que, durante uma tempestade, serve de abrigo para um casal. Quem os atende é o mordomo - muito semelhante ao próprio Nosferatu, aliás -, e eles se veem no meio de uma convenção cheia de pessoas… peculiares. 

O filme é um musical, com elementos de terror e comédia, e traz figurinos incríveis e um cenário extravagante. O filme ainda trata da temática da liberdade sexual, o que, aliás, faz parte de sua essência. Não à toa, a obra brinca com a tradição do cinema de horror estadunidense ao mesmo tempo que referencia histórias do gótico e aborda temas importantíssimos para a sociedade da época. 

The Rocky Horror Picture Show (1975)

Mas, saindo do mundo dominado por falantes do inglês, precisamos abordar um dos cavaleiros mais importantes da literatura mundial, aquele que confunde os moinhos de vento com gigantes. 

Um passeio pela Espanha 

É evidente que o turismo aproveitou a fama gerada pelas histórias. Assim, se pesquisarmos na internet, encontraremos facilmente roteiros e mais roteiros de viagem feitos para que os turistas conheçam pessoalmente os lugares incríveis descritos no cânone da literatura europeia. Isso é bom, por um lado, para mostrar como a arte não está desconexa da realidade. Mas seria interessante que esses roteiros fossem pensados para valorizar mais as obras que tentam referenciar. Ao pesquisar sobre os castelos mais famosos do mundo, encontraremos inúmeras citações a obras da língua inglesa. Contudo, há muitos castelos na Espanha, por exemplo. Há um herói — não muito heroico — que também passou por um castelo real e que fala uma língua latina: o primeiro e único Dom Quixote de la Mancha.

Miguel de Cervantes brinca com a tradição épica ocidental em seu livro, criando uma obra que seria revisitada por praticamente todos os autores depois dele. É indispensável citar esse livro para tratar de castelos, porque os castelos, como dissemos, são sinônimo de uma tradição muito bem estabelecida no mundo ocidental. É um lugar que representa o épico sob a perspectiva europeia. O autor inclusive usa como inspiração as novelas de cavalaria. Mas o que as narrativas épicas ou medievas representam para nós? Dom Quixote lia muitos livros, mas não era um cavaleiro. Os tempos mudaram, mas o castelo e os moinhos ainda estão lá, nos morros espanhóis, tais quais Miguel de Cervantes os observou. Vale dizer, a título de curiosidade, que o castelo foi construído e destruído ao longo de séculos, mas o registro mais antigo é de meados do século XII, localizado na região de Castela-Mancha (Castilla-La Mancha). 

Castelo de Belmonte (foto: Josemanuel/reprodução Wikipedia)

Mas revisitar a obra que revisitou os clássicos nos atenta a uma problemática: para quem interessa pensar que o passado era melhor do que o agora? Ver os castelos majestosos não significa também manter viva a lembrança das monarquias — elitistas em sua essência — e das guerras? É o que fazem as obras que vieram após Drácula, que mantêm a ideia do vampiro, mas as atualizam. Para isso, é preciso ver o passado. É preciso visitar os castelos — pessoalmente ou por meio dos textos. Miguel de Cervantes faz isso com sua obra e nós podemos fazer também, sempre olhando para trás com ressalvas, para iluminar o caminho futuro. 

O futuro dos castelos

Portanto, é possível pensar em um futuro para os castelos? É comum que um objeto que perde sua utilidade prática seja considerado inútil. Mas ainda existem os museus. E os castelos, embora não tenham mais o mesmo significado de antes, são um elo entre a vida e a ficção, o passado e o presente. Se olharmos atentamente, ainda é possível ver a beleza desses lugares. Encontrar algo a mais. É possível olhar com o mesmo olhar que autores e cineastas tiveram ao longo da história e ver as mesmas coisas que eles viram.

Ainda no começo do texto, foram citadas obras que com o passar do tempo transformaram a tradição de falar sobre castelos. Mas até hoje eles são procurados para serem cenários de filmes ou servem como inspiração. A fantasia, sobretudo, conseguiu eternizar a ideia de um lugar fascinante para vivenciar o épico. Muitos lugares na Espanha, por exemplo, foram utilizados como cenário da série Game of Thrones. Isso atraiu muitos turistas, mas também nos diverte com a ideia de que um lugar tão antigo pode ser tão atual por meio de palavras escritas em um livro. Esse vínculo da alta fantasia com a literatura medieval demonstra um legado de supervalorização dessa cultura e, ao mesmo tempo, muita espetacularização dela. O fascínio pelos castelos apenas se confirma, ainda mais quando as obras são adaptadas para o audiovisual e usam esses lugares como locações. 

Por fim, voltamos mais uma vez a Edgar Allan Poe e A queda da casa de Usher. O narrador não chega exatamente a uma conclusão a respeito da casa. E nisso consiste a graça do conto e da nossa comoção sobre tais temas. Para o narrador, a casa era “um mistério inteiramente indecifrável”. Assim são os castelos para nós. 

Referências 




O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥

Comentários

  1. Texto incrível!! O castelo de Bran sempre me fascinou e assombrou ao mesmo tempo devido à sua história e todas as coisas horríveis que Vlad fazia ali.

    ResponderExcluir
  2. eu amo essa relação da literatura e do gótico, principalmente, com a figura da casa/castelo!

    ResponderExcluir

Formulário para página de Contato (não remover)