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A amizade de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade

“Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo”, disse Mário de Andrade para aquele jovem poeta que havia acabado de conhecer. Mário — professor de piano na Barra Funda, bairro de São Paulo — teve a chance de conhecer diversos estados brasileiros, inclusive Minas Gerais, na caravana modernista. Naquele momento de sua vida, ainda estava firme na ideia de transformar o cenário artístico brasileiro, transformando as formas, antes importadas das vanguardas europeias e em desenvolver uma identidade nacional. Ele não poderia ser mais diferente de Carlos Drummond de Andrade, o mineiro introspectivo que publicou o poema no meio do caminho. Ainda assim, o reino das palavras, tão conhecido aos dois, os uniu. Teria Carlos atendido o pedido de Mário? A história dos dois não é tão simples assim. 

Carlos Drummond tinha cerca de 20 anos quando conheceu Mário de Andrade, mas a partir de seu encontro com o autor de Paulicéia Desvairada, alavancou a publicação de seus livros. O primeiro deles foi Alguma Poesia, cujo poema No Meio do Caminho transtornou a maioria dos críticos literários. Carlos, sempre tão ácido, transforma essas críticas em um livro: biografia de um poema. Uma das críticas, entretanto, é positiva, de um colega poeta que compreendeu sua ideia. A crítica é, claro, parte de Mário. Como um bom modernista, Mário de Andrade via o potencial absurdo de Drummond e o incentivava, mas também pedia sugestões sobre seus próprios poemas e comentava as obras que planejava escrever. 

Através daquele simples poema, já é possível notar uma similaridade entre os dois autores, como os conflitos internos que transbordavam na poesia. A pedra do poema acima citado é referência, entre outras coisas, à extração de minérios de Itabira, simboliza um dos maiores embates da vida de Carlos: Itabira. A cidade em que ele nasceu e viveu grande parte de sua vida, citada em quase todos os seus livros, nos mais diversos poemas. Nas palavras do próprio Carlos, em Confidência do Itabirano: “Itabira é só um quadro na parede, mas como dói”

Em entrevistas, Carlos discute como Itabira ao mesmo tempo o atrai e o repulsa. É uma cidade parada, na qual a Vale do Rio Doce destruiu não apenas as belezas naturais, mas também a esperança dos homens. É como uma “cidadezinha qualquer”, outro poema, no qual ele reclama da vida besta que as pessoas ali levam, algo irritante mas fascinante. Mário de Andrade, por outro lado, também passa sua vida lidando com a presença da cidade em que nasceu: São Paulo. Seu primeiro e seu último livro trazem, desde o título, referências a esse lugar: Paulicéia Desvairada, cujos poemas exploram o tema da vida na cidade moderna, e Lira Paulistana, em que sua visão está carregada de uma sabedoria que ele só adquiriu ao longo dos quase 20 anos que separam uma obra da outra. 

Mário chega a nomear São Paulo como “costureira de malditos”. E também faz um poema apenas direcionado às ruas de São Paulo. A vida dele, de fato, foi moldada naquela cidade. A rua Lopes Chaves, tantas vezes citada por ele, é onde ele escreve boa parte de seus poemas, e também o lugar onde ele veio a falecer. Mas antes de falar do fim, é preciso falar de como às vezes o destino age, mesmo sem que acreditemos nele. Afinal, parece quase destino que dois autores como estes tenham se conhecido. Mário de Andrade e Carlos Drummond marcaram para sempre a poesia brasileira, e além de compartilharem essa habilidade, a mesma época e a mesma sina chamada Brasil, eles também nutriam admiração um pelo outro. 

Mário de Andrade de fato se dedicou totalmente a construir uma identidade brasileira e acreditava que por meio da literatura seria possível unir o Brasil como um só povo. Ele até mesmo criou um herói para esse projeto: Macunaíma, o herói de nossa gente que, ironicamente, também é o herói sem caráter. Mas ao final do livro, essa euforia em representar o misto cultural que é o Brasil quase desaparece. Há um desencanto emocionante na vida de Mário de Andrade, pois ele percebe aos poucos que não há solução para o Brasil. Ele escreve em posfácios da obra Macunaíma que não queria que aquele fosse o final do livro. Lhe doía que fosse assim. Ele era um homem que sofria com tamanho entendimento sobre seu país, sofria com a tentativa de transformar a cultura apenas com suas palavras. Certa feita, escreveu uma carta para Carlos, o mesmo homem que convidara, anos antes, para se devotar ao Brasil ao seu lado: "O que temos de diferente foi o meio de praticar a nossa timidez diante da vida. Você como que se esquivou à jogatina. Eu joguei tudo numa cartada só. Estou desconfiando que perdi, não sei"

Mário de Andrade

Em seguida, Mário finaliza a carta com palavras que apenas ele poderia reunir. Como que em um abraço, ele indica finalmente entender o que resultaria daquelas batalhas que ele se dispôs a lutar. No fim do caminho, há uma amizade:

"Você, com que melancolia invejosa falo isso!… você só tem a ganhar em não ter jogado. No princípio eu quis mudar você, fazer você que nem eu. Porque, já falei, você me esfolava e eu queria ser amigo de você. Mas você foi discreto, me engambelou, me engambelou, continuou na mesma, deu tempo ao tempo. Foi bom porque hoje você não me esfola mais, não me contunde, eu já não quero mais mudar você. E vem a verdade surpreendente: E nós perseveramos amigos."

Mais para o fim de sua vida, já na ditadura, Mário dá uma palestra em homenagem ao aniversário do Movimento Modernista, na Casa do Estudante, Rio de Janeiro. O ano é 1942 e Mário de Andrade discursa: 

“A vida humana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há-de vir.”

E é essa percepção da realidade que Drummond parecia ter desde muito cedo. Drummond fez parte do Partido Comunista Brasileiro e falou abertamente sobre a Segunda Guerra Mundial, a revolução comunista e a ditadura. De jeitos diferentes, esses dois poetas falavam sobre o presente com a maestria de poucos. Eles, como Drummond escreve em um de seus poemas, lutavam com as palavras. E dessa luta com as palavras surgiram não resoluções práticas para a sociedade brasileira, mas obras que comovem, que organizam, que inspiram e fazem pensar. Obras essas que permanecem. Permanecem os poemas e permanecem as cartas. Através das cartas de Mário, é possível conhecer algumas conversas extraordinárias entre eles: 

"Eu me lembrava mais: lembrava dos momentos em que escrevera aquilo, as sensações se repetiam quase integrais nos trechos mais longos, hora, estado físico, momentos circundantes do em que eu escrevera aquilo! Está claro que isso é o que mais me absolve das minhas cartas. Foram escritas com tamanho amor, tamanha integração, tão decisórias como esses momentos raros de que a gente 'nunca se esquece na vida'."

Carlos Drummond de Andrade

Mário de Andrade morreu no dia 25 de fevereiro de 1945, quase quatro décadas antes de seu amigo. A perda de Mário é algo insuperável. Ainda que outros poetas tão grandes quanto tenham existido no Brasil, cada um é único, e certamente único foi Mário de Andrade. É difícil imaginar que alguém pudesse capturar tão bem a essência de São Paulo, ou que tivesse se dedicado tanto a entender e propagar a cultura brasileira, de modo tão sofrido, tão apaixonado e tão verdadeiro. Mário de Andrade foi alguém que teve ideias revolucionárias, mas, acima disso, foi alguém que mudou constantemente de ideia, e até o fim, fez da literatura sua maior inimiga e maior aliada no confuso caminho da vida. 

Um de seus últimos poemas foi Quando eu morrer,  no qual o eu lírico revela a vontade de ter as partes de seu corpo distribuídas pela cidade de São Paulo quando falecer. Dentre essas partes, ele quer que a cabeça fique na rua Lopes Chaves e o sexo no Paiçandu. Em outro poema, ainda, Mário expõe uma reflexão sobre os nomes das ruas da cidade, citando, novamente, a rua Lopes Chaves. Através dos versos, há um desejo de ser esquecido como os nomes das ruas. É com essa irônica discussão, poética, sobre morte e legado, que ele encerra sua carreira, e sua vida. Aliás, o último poema de Lira Paulistana é Meditação sobre o Tietê, uma verdadeira reflexão sobre o rio e suas águas. Mas, é claro, tratando-se de Mário, o poema vai muito além disso.

Essa habilidade é uma das muitas características andradianas, seja sobre a pessoa Mário, ou sobre sua vasta obra. E quem melhor do que Carlos Drummond para poetizar sobre isso? No poema Mário de Andrade desce aos infernos há uma elegia das mais lindas, na qual tantos se despedem do poeta e algumas referências a seus poemas são feitas. Acima de tudo, é a imagem de um mundo sem Mário de Andrade, e, paradoxalmente, um mundo que, graças a ele, jamais será mais o mesmo. Uma vez que suas obras foram escritas, estão marcadas para sempre na memória do seu país. Ainda que esse seja um peso, e não uma recompensa. Assim, é um “o dia estragado como fruta” e faz "silêncio na Lopes Chaves", nas palavras de Carlos. Na estrofe abaixo citada, ele relembra traços do Mário amigo e do Mário poeta, em um adeus extraordinário.

"Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros, /quadros. Portinari aqui esteve, deixou/ sua garra. Aqui Cézanne e Picasso, /os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão,/ a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões,/ os bichos… Aqui tudo se acumulou,/ esta é a Rua Lopes Chaves, 546,/ outrora 108. Para aqui muitas vezes voou/ meu pensamento. Daqui vinha a palavra/ esperada na dúvida e no cacto./ Aqui nunca pisei. Mas como o chão/ sabe a forma dos pés e é liso e beija!"

Em Memória, de Drummond, ele diz que “As coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão”. Difícil não pensar nesse verso para falar da amizade desses dois poetas. Afinal, foi uma relação construída, basicamente, através de cartas. E o assunto delas variava entre poesia e incertezas da vida. Eram conversas entre a euforia de um novo livro publicado e também a descrença quase absoluta com o Brasil. A vida dedicada à literatura é quase sempre sobre amar e sofrer. E nas linhas efémeras de uma carta, ou em um encontro rápido entre poetas tão distintos, nasce uma linda flor cujo nome é amizade. 

Referências 




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