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Drácula e os valores conservadores de Bram Stoker

Os vampiros, atualmente, estão sob uma visão idealizada. Filmes, séries e livros contemporâneos desenvolveram, no imaginário popular recente, a noção de um ser místico que, ao conhecer a humana ideal, luta contra seus próprios desejos. O sangue humano, alimento nutriente, é substituído voluntariamente por sangue animal, sintético ou do banco médico. A atrocidade e a natureza predatória constituem um passado, não mais um presente. Em um caminho de abnegação e aventura, o amor transforma os monstros em sujeitos apaixonantes aos olhos de leitores e espectadores. Isso, porém, nem sempre foi assim. 

Uma das principais obras inspiradoras da febre vampírica foi escrita por Bram Stoker e publicada em 1897. O autor, nascido na Irlanda, trabalhava na parte administrativa de um teatro e mostrava fortes tendências ao conservadorismo. Tinha, como amigo e colega, Henry Irving, ator e empresário teatral abertamente conservador, e chegou até mesmo a escrever sua biografia. Além disso, era descrito por pessoas próximas como alguém pé no chão e respeitável. Entre viagens de trem e momentos sozinho no trabalho, escreveu uma das obras de vampiros mais influentes após um sonho que teve, no qual mulheres beijavam o pescoço de um homem, mas eram impedidas de prosseguir devido a um conde que gritava que o rapaz o pertencia. 

“De fato, a composição do romance pode ter sido um ato de purificação para Stoker. Um homem vitoriano comum, protestante, que numa noite, através de um pesadelo, teve sua superfície resplendente ameaçada por uma mente atormentada. Na noite de 7 de março de 1890, Bram Stoker registrou em anotação: 'O jovem sai do quarto, vê garotas, uma tenta beijá-lo, não na boca, mas na garganta. Velho conde intervém – fúria & cólera diabólicas – esse homem me pertence eu o quero'.”

Foi sob esse olhar vitoriano que Drácula foi escrito. Composto por fragmentos de cartas, diários e reportagens de jornal, a obra é dividida em duas partes. A primeira detalha os acontecimentos vividos por Jonathan, um advogado que, em busca de cumprir com o seu trabalho, percebe-se preso na mansão do Conde Drácula. Apesar de não o proibir de sair verbalmente, a permanência obrigatória está implícita nas ações peculiares de Drácula e nas trancas sempre fechadas. Além da claustrofobia, situações sobrenaturais rondam o castelo e envolvem as atitudes do anfitrião, que escala as paredes do local e permanece acordado apenas no período da noite. Na segunda parte do livro, a mansão não é mais o cenário, e somos introduzidos a outros seis personagens: Mina, a noiva de Jonathan; Lucy, a melhor amiga de Mina; Arthur e Quincey, dois pretendentes de Lucy; o psiquiatra Seward; e o espetacular Dr. Van Helsing, médico especialista em casos peculiares. Após Lucy ser transformada em vampira, inicia-se uma caçada contra Drácula - uma alusão à luta do bem contra o mal. 

A publicação da obra ocorreu na mesma época em que Oscar Wilde, autor O retrato de Dorian Gray, uma narrativa gótica de teor homossexual, sofria ataques de censura – os quais Bram Stoker concordava. Nosso autor, inclusive, chegou a escrever um artigo a favor da censura nos romances considerados “impuros”. Levando em conta esse fato, muitos estranhavam a narrativa de Drácula. Como pode um conservador ter escrito uma obra que, à primeira vista, se mostra subversiva? A verdade é que, apesar da casca inovadora, o livro não contraria os padrões morais estabelecidos pela sociedade vitoriana. 

Bram Stoker

É necessário fugir dos vícios da leitura literal, nos quais percebemos apenas o expressamente escrito, e passar a analisar a composição em todas as suas nuances, percebendo as informações contidas nas entrelinhas e as analogias. Drácula, o personagem foco da trama, por exemplo, não é meramente um vampiro. Considerando as posições do autor e o contexto histórico, o Conde Drácula é a figura daquilo que foge à moral cristã. Na época de escrita do livro, a sexualidade começava a ser debatida e questionada em diferentes âmbitos. Além disso, a Era Vitoriana, marcada fortemente pela definição bem estabelecida dos gêneros, entrava em seu fim. Visto isso, é normal que Bram Stoker, como homem protestante e conservador, entendesse que a subversão era o verdadeiro monstro prestes a corromper a sociedade. 

“A ameaça vampírica é interna: trabalha dentro de nós, possuindo nosso corpo, infectando nossos mais puros desejos com a luxúria do poder e da dominação. Para os intrépidos defensores da civilização cristã em Drácula, o preço do fracasso não se resume à multiplicação de monstros vingativos; o supremo horror é que eles se transformem em vampiros sedentos de sangue.”

Ainda, ao considerar as funções que a época determinava para o homem e para a mulher, é interessante analisar a trajetória de Mina, noiva de Jonathan. Desde suas primeiras aparições, a personagem apresenta um caráter extremamente de acordo com as morais cristãs e a ideia vitoriana de “anjo do lar”. Sua personalidade é doce, íntegra e dedicada. A mulher está sempre pronta para ajudar seu marido e amigos, muitas vezes abdicando de si mesma. No início da segunda parte da obra, Mina escreve à Lucy que trabalha como professora, mas, seguindo o esperado, no desenrolar do livro, quando casa com Jonathan, abandona a profissão para se dedicar apenas ao lar e ao marido. 

Apesar disso, Mina não deixa de ter seus próprios interesses e demonstrar habilidades essenciais à caçada ao Conde Drácula. A personagem toma nota nas reuniões, transcreve gravações de áudio e notas taquigráficas, organiza os diários por ordem cronológica, raciocina fatos importantes e desenvolve ideias. Toda essa capacidade impressiona aqueles que estão à sua volta, inclusive Van Helsing, o médico conhecido por sua vasta sabedoria. 

“Ah, a magnífica madame Mina! Ela tem o cérebro de um homem... um cérebro que, fosse o de um homem, faria dele um sujeito brilhante... e o coração de uma mulher. Acredite em mim, o bom Deus tinha um propósito ao fazê-la, para se valer dessa excelente combinação.”

O elogio, dado de bom grado e incessáveis vezes, tem em si o sexismo da época. Uma mulher tão inteligente que, segundo os homens personagens, parece ter um cérebro do sexo masculino. Entretanto, a inteligência além do comum feminino não foi suficiente para que fosse enxergada de uma maneira justa: quando a batalha progride, os homens a proíbem de participar. Em busca de protegê-la, escondem acontecimentos e a mandam para o quarto antes de qualquer reunião. Camuflam preocupações e mantêm segredos. Uma mulher não deve se aventurar em perigos. 

Drácula de Bram Stoker (1992)

Bram Stoker, ao descrever a reação de Mina perante tais proibições, permanece com a ética vitoriana. A mulher, após ter sua amiga morta devido ao vampiro, bem como dedicado seu tempo para confabular planos e se doado à batalha, é excluída do que lhe era importante e, mesmo assim, não expressa descontentamento. Mina apenas acata a decisão dos homens e passa a tomar remédios para dormir devido à preocupação com os garotos. Nem mesmo seus diários questionam a decisão. Uma reação que, de fato, apenas um homem conservador poderia escrever. 

Em um de seus períodos sozinha, Mina é seduzida por Drácula, assim como foi sua amiga Lucy. Tocada pelo símbolo do sexo, passa a se considerar impura, intensificando suas orações e suas lágrimas de donzela. A partir daí, então, a caçada se intensifica. Os homens desejam vingar a mulher e salvar sua alma. Apenas a morte do vampiro poderia mantê-la longe da perversão e transformação no ser maligno. Em frente à raiva que os seus colegas sentiam, a personagem apresenta, mais uma vez, as condições cristãs de seu autor, ao demonstrar piedade e misericórdia por Drácula. 

“Oh, quem dera ser capaz de dar uma ideia dessa cena: a meiguíssima e boníssima mulher, em toda a radiante beleza de sua juventude e entusiasmo; com a cicatriz vermelha na testa, da qual tinha plena consciência e que nos fazia ranger os dentes pela lembrança de quando e como havia sido feita; a bondade amorosa em contraste com o nosso ódio sombrio; a fé terna em contraste com nossos medos e dúvidas; e nós, sabedores de que, em um plano simbólico, ela, com toda a sua bondade, pureza e fé, era uma excluída de Deus.”

Jonathan, o marido, é quem deposita os golpes finais no vampiro, o matando em vista a salvar sua amada indefesa, tal qual o correto perante os padrões sociais vitorianos e cristãos. A nota final da obra indica o final feliz e padronizado: o casal protagonista teve um filho, que nomearam em homenagem a um dos colegas que morreu em batalha; Van Helsing age como um avô para a criança; Arthur e Quincey estão ambos casados com mulheres. 

Até hoje, mais de 125 anos após sua publicação, Drácula é um livro emblemático, utilizado não apenas como inspiração em narrativas audiovisuais, mas como tema central em pesquisas literárias que buscam entender a representação da sexualidade, religião, gêneros e o fim da Era Vitoriana. O implícito e todas as possibilidades de significações diante dos atos vampíricos permanecem conquistando leitores. Ironicamente, a adaptação cinematográfica da obra por Francis Ford Coppola é envolta de sexualidade, demonstrando, talvez, um possível lado oculto de Bram Stoker. 


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Referências 



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Natália Meisen
Feminista e estudante de letras. Entusiasta da literatura escrita por mulheres, publica suas palavras no medium e administra sua própria marca de roupas. Toma café toda hora, gosta de acordar cedinho para ler e ama croissants.

Comentários

  1. Que ótima análise, Natália! É tão importante que, como leitores possamos entender as circunstâncias da escrita, faz toda a diferença. E mostra que nossos autores são pessoas de seu tempo, com defeitos e qualidades. Nem sempre defensáveis, mas compreensível no contexto.

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  2. É interessante ver como as narrativas posteriores de vampiros exaltam tanto a sexualidade.

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