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Emily Brontë e o filme que não merece seu nome

Emily (2022), filme de Frances O'Connor, não é apenas historicamente errado como também é ofensivo. O problema não é a parte técnica - até mesmo o figurino está decente para um filme da época na qual ele se passa -, mas sim a narrativa, que corrobora a ideia misógina de que uma jovem reclusa como Emily Brontë só poderia ter escrito seu único romance, O Morro dos Ventos Uivantes, a partir de experiências pessoais com homens, como o pretendente da irmã, o pároco William Weightman, e um subtom incestuoso com o próprio irmão, Branwell Brontë. No início do filme, temos uma cena na qual Charlotte Brontë pergunta a Emily como ela havia sido capaz de escrever aquilo - no caso, seu livro, O Morro dos Ventos Uivantes. A resposta, a qual Charlotte talvez nunca viria a saber, de acordo com o folclore do filme, é que Emily Brontë viveu um romance proibido com o pároco mais paquerado de Haworth, um jovem auxiliar da paróquia de seu pai. 

O argumento de Frances O'Connor para tal aberração ofensiva é que não se sabe muito sobre Emily Brontë - mas isso não é lá verdade. Claro, comparada à vida de sua irmã, Charlotte Brontë, que deixou diversos escritos, cartas etc., o que temos sobre Emily não é tanto assim. Mas certamente é o suficiente para sabermos que ela não teve um caso tórrido com Weightman, tampouco um com o irmão que, segundo a diretora do filme, teria sido a inspiração para Heathcliff, protagonista de O Morro dos Ventos Uivantes

Mas a ficção não pode ser livre? Não é possível fazer um filme livremente baseado em uma figura histórica sem que a imaginação seja um problema? Certamente se pode. Amadeus, por exemplo, é um filme que foge da verdade histórica a respeito da vida de Mozart, mas que não deixa de ser incrível - e isso se dá por muitos motivos, dentre eles o fato de que a obra não é ofensiva. Ninguém ali está dizendo que o único motivo de Mozart ter composto seu Réquiem foi porque um interesse amoroso lhe devastou e ele resolveu fazer uma fanfic da própria experiência em forma de ópera. O mesmo pode ser dito de diversos filmes. Porém talvez o que devamos nos perguntar seja: qual é a diferença entre Mozart e Emily Brontë? Ambos foram artistas, suas obras são envoltas numa aura de genialidade e mistério, perdurando através dos séculos. O que os difere, em essência, é seu gênero. 

A recepção misógina de O Morro dos Ventos Uivantes

Quando O Morro dos Ventos Uivantes foi publicado, houve grande sucesso - e também escândalo. Afinal, aquele não é qualquer livro - aquele é um livro perturbadoramente gótico. Publicado na mesma edição da obra de sua irmã, Agnes Grey, o romance de Emily Brontë recebeu diversas críticas - mas nenhuma delas falava da suposta história de amor entre Heathcliff e Cathy. A crítica focada na "história de amor" surgiu quando, após a morte da escritora, Charlotte Brontë revelou que tanto ela quanto suas irmãs eram mulheres - mulheres que haviam escrito os sucessos literários da época. Foi a partir do olhar conhecedor do gênero da mente por trás da história que O Morro dos Ventos Uivantes virou história de amor - e os comentários eram que uma mulher não poderia tê-lo escrito se não fosse, ela mesma, devassa como Heathcliff; ou, então, que seu irmão teria sido o verdadeiro autor da obra. 

As críticas literárias de O Morro dos Ventos Uivantes escritas a partir de 1850, após Charlotte Brontë ter anexado uma nota biográfica e um prefácio ao livro da irmã, nomeando Emily como a autora, assim como mostrando-se em cima do muro a respeito das decisões da irmã falecida quanto à narrativa, diferem muito daquelas de 1847, quando o livro foi publicado. Isso porque os críticos se deram conta de que a obra foi escrita por uma mulher, não um homem, como presumiam todos pelo pseudônimo utilizado, Ellis Bell. 

Emily Brontë

A Era Vitoriana a qual pertenceram as Brontës, tinha papéis de gênero muito bem definidos, e das mulheres escritoras eram esperadas histórias que refletissem seus trabalhos domésticos, suas vidas centradas no cuidado familiar e na devoção religiosa. Para tal sociedade, saber da verdadeira identidade da mente por trás de O Morro dos Ventos Uivantes foi um choque. E tal choque só poderia ser explicado por duas hipóteses: ou Emily escreveu o que seu irmão, Patrick Branwell Brontë, havia-lhe ditado, ou ela escrevera sobre suas experiências deturpadas, longe do caminho de Deus, e havia sido, portanto, uma devassa, tão terrível quanto a própria Cathy, repreensível em todas as esferas. Para os vitorianos, a possibilidade da imaginação artística não alcançava as mulheres. 

A misoginia do filme Emily (2022)

Essa visão misógina é endossada no filme de Frances O'Connor - a visão de uma Era Vitoriana conservadora e misógina que não aceitava o fato de uma jovem razoavelmente reclusa, que preferia a companhia da charneca e de seus cães a pessoas, ter escrito sozinha um dos maiores (se não o maior) romance da literatura de língua inglesa, uma obra que trata de temas profundos, como o racismo, a violência social e familiar, a perda e a vingança. Pergunte-se: se um homem tivesse escrito O Morro dos Ventos Uivantes, ele seria considerado uma história de amor? Seu autor seria acusado, durante mais de um século, de ter sido um grande devasso, ou mesmo teria a autoria questionada, acreditando-se que outro homem havia escrito o livro? Não, não seria. E sabemos disso porque durante o tempo em que o pseudônimo Ellis Bell era publicado como a autoria do livro, nenhum crítico tratou a obra como "história de amor" ou desconfiou de quem a havia escrito. Por quê, então, essas perguntas são aceitáveis a respeito de Emily Brontë? 

Se a diretora estivesse procurando por uma história apimentada envolvendo as Brontës, poderia ter colocado seu foco em Charlotte, que teve um caso com um professor casado e mais velho quando estava na Bélgica - caso este que deu origem tanto a O professor quanto a Jane Eyre. Charlotte, ainda, era aquela cuja vida social possuía mais movimento - e era adepta a fazer fanfics da própria vida, inclusive algumas de insinuações eróticas, retratando seus vizinhos de formas sugestivas. Certamente isso daria um filme interessante. 

Se a ideia fosse dar um tom mais romântico ao filme, por que não colocar o foco em Anne Brontë, a irmã mais nova? Anne era muito próxima de Emily - embora o filme mal a mostre, fazendo com que ela e Charlotte desapareçam pela maior parte do tempo -, era uma jovem profundamente cristã, mas questionadora. Seu livro A inquilina de Wildfell Hall é considerado uma das primeiras histórias feministas da literatura, falando abertamente, do ponto de vista de uma mulher, sobre alcoolismo, violência doméstica, separação e a busca pela independência feminina. Anne Brontë não achava nada bonito em homens problemáticos - como as personagens dos livros de suas irmãs. 

Ainda mais: o romance entre Emily e Weightman, retratado no filme, na verdade, aconteceu entre Anne e o pároco. É provável que não daquela maneira, mas eles tinham um afeto e entendimento mútuo - que causou, inclusive, brigas com Charlotte, também apaixonada por Weightman. Foi Anne, não Emily, quem envolveu-se com o rapaz - e foi Charlotte quem ficou tão enciumada que tratou de fazer com que a obra de Anne não fosse republicada durante muitos anos, prejudicando o legado da própria irmã, prejuízo cujos vestígios ainda hoje podemos encontrar, já que Anne Brontë, embora fosse tão boa escritora quanto Charlotte e Emily, quase não é lembrada ou lida. Há poucas dúvidas de que tal história daria um filme incrível, escandaloso e fascinante. Mas a diretora decidiu seguir pelo caminho misógino do questionamento acerca do caráter de Emily Brontë. 

Emily (2022)

Se se tem tantas histórias que quebram os estereótipos da mulher vitoriana casta, por que escolher contar justamente uma que não é verdade e que implica a ideia de que Emily Brontë necessitava de dois homens - e de uma relação incestuosa no meio - para escrever seu livro? Por que tudo tem de ser Fleabag

A fleabagzação de Emily Brontë 

Quase toda obra de época parece estar bebendo da fonte de Fleabag ultimamente. Aconteceu com Persuasão, o livro mais delicado de Jane Austen, que foi transformado numa atrocidade vergonhosa no ano passado. A mesma coisa pode ser dita da história de Ana Bolena, a segunda rainha de Henrique VIII, cuja vida ganhou uma minissérie com direito a quebra da quarta parede, trilha sonora contemporânea e uma protagonista muito moderna, nada como as mulheres de sua época, no século XVI. E, agora, foi a vez de Emily Brontë. No filme, Emma Mackey, a intérprete de Emily, quebra a quarta parede, usa os cabelos soltos - e curtos -, se embebeda, faz uma tatuagem, tem várias cenas de sexo fora do casamento numa casa isolada nas charnecas com o homem que seria o pretendente da irmã, possui uma relação incestuosa com o irmão, não se importa com sermões bíblicos, não é nada religiosa (o que não condiz com a Emily real) e é uma péssima aluna, apenas aceitando empenhar-se nos estudos de francês quando seu professor particular vira o próprio Weightman, o pároco galã. 

Além de todo o modernismo, sarcasmo, quebra da quarta parede e rebeldia, é claro que uma obra inspirada em Fleabag tinha de ter um romance tórrido e trágico com um pároco. Que originalidade. 

Fleabag é uma série maravilhosa - mas nem tudo precisa ser filha dela. A ideia que temos de uma mulher moderna, livre, que quebra a cara, mas segue em frente, é ótima, e realmente se encaixa com a nossa realidade. Todavia não trata-se da única realidade ou forma de ser mulher que já existiu no mundo. E isso não significa que as mulheres de séculos anteriores não encontravam liberdade, não tinham por que viver, ou mesmo capacidade criativa para além de homens e experiências sexuais escandalosas. Certamente as mulheres de um ou dois séculos para frente olharão para nós com espanto ao pensar que vivíamos vidas tão regradas pelo patriarcado - mas para nós, a vida é apenas a vida, com seus poréns, desafios e lutas; o que não nos impede de termos nossos espaços e sermos, cada uma à sua maneira, rebeldes fora da curva, buscando um mundo mais justo. 

Emily Brontë tinha suas limitações como uma mulher do século XIX, mas isso não a impediu de ser uma das maiores escritoras que já andaram pela Terra. E ela não precisou de um caso tórrido com um pároco ou de um envolvimento incestuoso com o irmão para tal. Ela vivia entre a charneca, passeando pelos túmulos, brincando com seus cães, fazendo os pães caseiros pelos quais ela é famosa até os dias de hoje, indo a concertos musicais - muito provavelmente ela ouviu Franz Liszt tocar - e a exibições artísticas, evitando pessoas no geral e escrevendo a todo momento que podia. Emily não era menos interessante por não quebrar todas as regras. Implicar que ela precisou de dois homens e muitos escândalos para escrever O Morro dos Ventos Uivantes tem um nome: misoginia. 

Referências 



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Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Obrigado por ter escrito este texto, eu realmente não entendo qual a dificuldade das pessoas compreenderem que nem sempre a arte precisa ser pessoal, é um afronte e desrespeito supor que uma pessoa não possa escrever sobre as coisas por um desejo legítimo que não implique apenas em ego ferido por uma desilusão amorosa.

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