últimos artigos

O espelho da sociedade: O retrato de Dorian Gray

O único romance de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, foi publicado pela primeira vez em 1890, em um periódico, e causou burburinhos na sociedade da época. O livro foi censurado e republicado novamente com modificações, contando com um novo prefácio de Wilde: “os que encontram significados disformes em coisas belas são corruptos sem agradarem, o que é um defeito”. Wilde, em seu livro, faz um perfeito retrato da mentalidade da Era Vitoriana, e, por mais que condenasse o viés moralista que outros artistas e espectadores davam à arte, ele mesmo leva os leitores a refletirem sobre estética, moralidade, a forma acima do conteúdo e outras tantas pautas que podem ser retiradas de seu romance filosófico

O retrato de Dorian Gray conta a história de um jovem extremamente belo chamado Dorian, que acaba por fazer uma espécie de pacto fáustico para continuar sempre jovem e ter seu retrato envelhecendo em seu lugar. Não apenas envelhecendo: a alma de Dorian é transposta ao quadro, que reflete todas as consequências imperceptíveis do narcisismo dele. Além de suas características ensaísticas, O retrato de Dorian Gray é também um romance de horror gótico à sua maneira, que apresenta fantasia, mortes e uma aura de suspense. 

De acordo com o crítico literário Mario Praz, na época vitoriana, personagens andróginos e indecifráveis, como Dorian Gray, já causavam estranhamento por transgredirem os conceitos vigentes de gênero. Ademais, a figura de Dorian não era a única a causar medo nos leitores - o conteúdo do livro antes de sua censura traz diversas indicações de homoafetividade, como por exemplo na devoção do personagem Basil para com Dorian. Não é de se espantar que, consequentemente, o livro tenha sido usado como prova no julgamento de Oscar Wilde, acusado de ter se relacionado e subvertido diversos rapazes. O livro foi julgado como “venenoso” e corruptor das jovens mentes pelos críticos da época, principalmente na sociedade inglesa, apesar de ter sido apreciado na estadunidense. Apesar disso, as ideias a respeito da arte foram pouco discutidas pelos críticos. É interessante como uma questão que não é o foco da obra, como a sexualidade das personagens, possa ter sido muito mais comentada do que suas filosofias, e como até hoje o livro é abordado como espelho da vida do autor, apesar de ser uma ficção. 

Oscar Wilde

Não é possível falar de Dorian Gray sem citar um dos personagens mais cativantes da obra: Lord Henry Wotton, o aristocrata que faz Dorian se tornar tudo o que ele é. Ele é quem faz Dorian acordar para a sua beleza e para o hedonismo por meio de seu discurso convincente que pegaria qualquer jovem ingênuo e desprevenido. Para Henry, é para os prazeres sensoriais que vale a pena viver, e, após conhecê-lo, Dorian muda totalmente para viver em torno das aparências. Se uma árvore cai na floresta e ninguém a viu, ela caiu mesmo? Se Dorian pode fazer o que quiser sem consequências físicas para seus delitos, ele realmente é culpado de seus crimes?

“Influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa própria alma. O indivíduo deixa de pensar com os seus próprios pensamentos ou de arder com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é que existe tal coisa, são tomados de empréstimo.”

E é com essa mentalidade que Dorian explora todas as suas vontades no livro, brincando com o coração de diversas pessoas, sendo a primeira vítima Sybil Vane, sua Ofélia. Além dela, vemos o amor estilhaçado de Basil, com sua visão artística que idealiza um Dorian que não existe mais, transformado agora pelos vícios. Como Tânia Toffoli escreve em sua dissertação “O retrato de Dorian Gray: um romance em três tempos - circulação entre Inglaterra e Brasil”, é importante observar que a pouca descrição do quadro leva os leitores a terem um espaço livre para imaginar as atitudes terríveis de Dorian, mas sem muitos detalhes, o que leva à conclusão de que Wilde provavelmente não poderia descrever tais ações no contexto em que se encontrava. A vida dupla de Dorian, realizando seus crimes no subúrbio e fingindo uma vida aceitável na alta sociedade, também é ponto de partida para uma reflexão mais profunda. 

A obra nos convida a olhar para nós mesmos, nossos próprios retratos estampados no espelho. Dorian não consegue escapar de quem ele realmente é. Na última parte do livro, o protagonista tenta reverter o mal que causou, mas isso não é o suficiente para mudar sua natureza já formada e sua consciência profundamente abalada. E quem o leva à desgraça é justamente ele mesmo. 

“As paixões que mais nos tiranizam são aquelas que nutrimos em relação à origem de nossos enganos. Nossos motivos mais débeis são aqueles de cuja natureza temos consciência.”

Os embates da obra permanecem eternamente atuais e suas personagens, eletrizantes; apesar da fantasia, o livro de Wilde retrata o comportamento humano, e isso choca mais do que sua atmosfera gótica. O que você veria no seu retrato?

Referências



O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)