A própria definição da Idade Média enquanto período histórico surge para separá-la de uma outra fase da história: o Renascimento. Para os renascentistas, era importante diferenciar esse período — o qual, para eles, era de pobreza intelectual — de sua época, que resgatou valores da Antiguidade.
Embora tenha sido essa a visão que permaneceu por muito tempo no imaginário, a Idade Média não era apenas suas partes negativas. De fato, esses pontos existiram, mas eles não eram as únicas coisas a caracterizá-la. A arte, afinal, surge mesmo nos momentos e lugares mais inoportunos. O legado que esse período deixou é também de uma literatura muito rica, desenvolvida em muitos países por pessoas de todos os tipos.
Além disso, os temas da literatura medieval tampouco se restringem a refletir uma realidade de sofrimento e amargura. Pelo contrário: falavam sobre amor, aventuras de nobres cavaleiros e lendas sobre criaturas encantadas. Tudo isso permaneceu através dos séculos, sempre se transformando. Está muito mais do que somente nos livros e filmes atuais, mas em um imaginário coletivo.
O “fantástico” cria força na literatura medieval, mas não abandona facilmente a humanidade: talvez as necessidades de criar histórias maravilhosas tenham mudado, mas elas ainda existem e seguem influenciando artistas de todas as partes do mundo, de todas as gerações.
Mas o que exatamente restou das produções literárias de uma época tão distante?
Canções, hinos e romances: o que era a literatura medieval?
Primeiramente, é preciso ser feita uma distinção: a Idade Média pode ser dividida em duas fases: Alta e Baixa Idade Média. Isso se faz necessário para entender como a Literatura era vista nessa época. Na Alta Idade Média, a produção literária se fez de maneira eminentemente oral, dado que os pergaminhos eram produtos muito caros e a escrita era um privilégio dos mosteiros. Já na Baixa Idade Média (meados do século XI até o século XIV), há produções que mais se aproximam da literatura fantástica como hoje se conhece, tais como os romances, poesias épicas e teatros — os quais evocam elementos “profanos”, no sentido de que se distanciaram da temática litúrgica.
Em segundo lugar, deve-se ter em mente que a divisão dos estilos literários na Idade Média é muito imprecisa. Isso acontece porque diferentes povos desenvolveram produções e temáticas variadas. O fluxo de pessoas era muito grande na Europa e, portanto, o choque de culturas influenciou uma pluralidade na literatura medieval, na qual sincretismos estavam quase em sua essência.
Há de se lembrar também que mesmo dentro de um “gênero literário” havia uma diversidade ocasionada pela região onde as obras eram feitas. Desse modo, os territórios da atual Itália, França, Inglaterra, Portugal e Alemanha, eram os principais centros de produção literária da Idade Média e possuíam especificidades entre si. Cada uma dessas culturas era mais ou menos propícia a um gênero literário considerando sua proximidade com outras culturas.
Desse modo, os mais diversos tipos de textos e canções são criados, os quais tratam da vida religiosa, cotidiana ou uma vida que mescla elementos míticos. O nome mais conhecido para uma categoria literária na Idade Média é o “trovadorismo”, o qual se refere aos trovadores, produtores de cantigas nas cortes dos reinos. É comum supor que na Idade Média só haviam as cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer, enquanto uma vasta gama de produções era criada. As cantigas do trovadorismo são assim categorizadas por terem um estilo muito mais definido do que outras produções, mas isso não significa que foi a única coisa criada e tampouco que era mais relevante por isso.
Por fim, o caráter oral de grande parte das produções líricas na Idade Média demonstra os esforços de encontrar meios para criar artisticamente. Era assim que as narrativas conseguiam permanecer vivas: passando de individuo para individuo, construindo uma cultura literária medieval coletiva. A qual não pode jamais ser restringida a determinada classe social, pois esta, é construída por todos e portanto, pertence a todos.
A função da literatura e o que ela refletia
De acordo com o falecido professor emérito da USP, Segismundo Spina, é possível compreender os estilos literários da Idade Média segundo uma perspectiva que leva em conta as classes sociais vigentes e cujo critério deve ser “o tipo de homem idealizado”. Aqui, nota-se claramente que o modo como as produções literárias medievais tratavam os homens ecoa pelo túnel do tempo. Pois os homens eram tratados como “heróis”, “amantes” ou “santos”, sendo que o último foi uma tentativa do meio religioso de impôr seu próprio tipo de apogeu humano, como destaca o professor.
Tapeçaria A dama e o unicórnio |
E assim, nota-se uma tradição milenar das narrativas, de todos os tipos, em que são os homens detentores da possibilidade do terrível e do belo. As histórias ficcionais da cultura medieval — como um todo — giram em torno da ideia de “e se?”, na qual a realidade é posta em seu limite, e o maravilhoso escapa para além da imaginação do homem. Tal imaginação torna-se palpável por meio desse inovador e permanente recurso: a literatura.
Portanto, tem-se, por meio da literatura, uma visão sobre o que de fato importava para as sociedades da época. É por meio das criações artísticas que podemos entender como um determinado grupo social pensava e agia e por que o fazia desse modo. Saber que o “amor” e a “luta” estavam o tempo todo na imaginação dos homens e mulheres medievais diz muito sobre a concepção de mundo que eles tinham. - e também sobre os legados por eles deixados.
A função da literatura nesse universo vai além de criar arte pela arte. Ela passa a ter, na Baixa Idade Média, um planejamento propriamente dito. Ela “serve” para atingir resultados. O clero e a nobreza utilizam recursos literários de tal forma que a cultura sempre reforça a organização social da época. Mas além dessa literatura erudita, uma cultura popular sobrevive.
As maravilhas da Idade Média
Novamente, pode ser difícil pensar nas “maravilhas” de um mundo tão anterior ao contemporâneo, especialmente no contexto de guerras e pobreza. No entanto, avanços tecnológicos e comerciais aconteceram; além de uma riqueza cultural que se evidencia na literatura e na música.
Para Jacques Le Goff, “O maravilhoso forma sistema com o milagre e a magia”. Ou seja, nesse universo, a essência se dá no encontro do que é milagroso e do que é mágico. Em suma, nas coisas misteriosas para a humanidade, sejam elas relacionadas ao milagroso ou ao profano. E muitas histórias passaram ainda por adaptações, oscilando entre uma das esferas para a outra. A Demanda do Santo Graal, por exemplo, era uma história do ciclo de lendas arturianas que narrava a busca de um objeto, recipiente nunca definido, que hoje se relaciona com o cálice da Santa Ceia.
Tapeçaria Rei Arthur e a Távola Redonda |
Assim, entre as epopeias, contos, romances de cavalaria e canções, temos diversos elementos em comum, mesmo com a variedade regional. A Lenda do Rei Arthur é uma das histórias mais conhecidas, que possui, é claro, variações nos muitos gêneros e momentos em que aparece. Ela serve quase como síntese desse universo: o reinado e disputas por poder; o mago e a espada encantada.
Para os leitores de hoje é comum pensar na literatura ficcional, em especial a fantástica, como sendo uma mistura da realidade e coisas que “poderiam ser”. O que é, no fim das contas, um imaginário que reúne as coisas mais maravilhosas que a imaginação pode criar, e um mundo que, já interessante, passa a ser fantástico.
“[...] o imaginário medieval constrói um mundo misto que constitui o tecido da realidade cuja origem se encontra na irrealidade dos seres que seduzem a imaginação dos homens e mulheres da Idade Média.”(Jacques Le Goff)
E quando essa imaginação é uma espécie de imaginação coletiva? Bem, a literatura medieval compila narrativas míticas das culturas célticas, bretãs, nórdicas e muitas outras. Por sua vez, a literatura fantástica contemporânea compila narrativas do imaginário medieval para permitir a criação de seus próprios universos maravilhosos. E essas sociedades o fazem porque imaginar é inerente às pessoas. estejam elas na Idade Média ou no século XXI.
Literatura fantástica: aventureiros através dos séculos
Não é difícil pensar em O Senhor dos Anéis (Lord of the rings), A Roda do Tempo (The Wheel of Time) ou mesmo As Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire) como literatura de cunho medieval. E o que significa “medieval” nesse contexto? Afinal de contas, não há registros de dragões, orcs e tampouco elfos na, digamos, Itália ou Inglaterra da Idade Média. Mas ainda assim, a narrativa aventuresca, as vestimentas, a organização social, dentre outras características de tais histórias, nos remetem à Europa medieval.
J. R. R. Tolkien, além de escritor de romances e contos, era professor na Universidade de Oxford. Um de seus colegas na Universidade era C. S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia (The Chronicles of Narnia). O caráter medieval das obras é evidente tanto nos temas quanto nos elementos fantásticos. Além disso, os dois eram cristãos, o que se refletia em suas obras, fazendo jus à religiosidade intrínseca à cultura literária medieval.
J. R. R. Tolkien |
Os dois escritores fundaram um grupo de estudos chamado “Inkrins”, que contava com outros pesquisadores e escritores, cujo objetivo era trazer novamente histórias de “reinos encantados para pessoas adultas”. O “maravilhoso” permeia a literatura fantástica mesmo séculos após a Idade Média. O que o Humanismo e outras escolas literárias tentaram a todo custo deixar de lado, os romances best-sellers trouxeram à tona para pessoas de todas as idades, em todas as partes do mundo.
Todavia antes da popularização do livro O Senhor dos Anéis — o qual apenas se tornou uma trilogia posteriormente —, a história se tornou um fenômeno audiovisual no meio da cultura pop. Os livros se tornaram mais acessíveis no momento em que os filmes mostravam que histórias desse tipo — medievais, fantásticas, de ação e aventura — poderiam fascinar jovens e adultos e ainda encantar a crítica, seja literária ou do cinema. Esse movimento, que teve seu início definidor com Peter Jackson, continua até hoje, uma vez que cada vez mais histórias de alta fantasia são adaptadas para a TV ou o cinema, contando com um público bem numeroso. O próprio Graal, já usado de exemplo aqui, é readaptado em Indiana Jones e a Última Cruzada (Indiana Jones and the Last Crusade).
Tomando como exemplo os elfos — como o querido Legolas da Terra-Média —, eles não surgem com Tolkien, tampouco na própria literatura medieval. Eles vêm de lendas muito mais antigas. Mas Johann Wolfgang von Goethe fala do Rei dos Elfos no poema Erkönig, em 1782. E Dungeons & Dragons popularizou diversas versões da criatura através do RPG de mesa. O jogo, no entanto, usa não só de temas medievais, mas de outras literaturas também, criando um universo próprio que pode ser modificado por cada mestre e jogador.
Dessa forma, uma literatura que começa a ser produzida por pessoas de todos os tipos, de modo oral, contando lendas passadas de gerações para gerações, é novamente o que se era no princípio: popular. Se esse imaginário que conta com castelos, reis e rainhas, teve alguma função que ainda permanece, é de ser uma escapatória para todos os que precisarem nesse mundo de guerras, miséria e desigualdades. Inúmeros problemas que enquadram a Idade Média como “Idade das Trevas” ainda permeiam nossas sociedades. E é curioso que o mesmo recurso para aliviar as dores da existência seja usado até hoje. Isso diz muito sobre a natureza dos estilos literários.
Portanto, todas as eras chegam ao fim. O que permanece, em constante transformação, com a mesma função de amenizar as dores e repensar o mundo, é a literatura. Legado este, eterno.
Referências
- A Cultura Literária Medieval (Segismundo Spina)
- Heróis e maravilhas da Idade Média (Jacques Le Goff)
- O Imaginário Medieval (Jacques Le Goff)
- O imaginário medieval na literatura e no cinema: reflexões acerca das obras O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia (Rodrigo Poreli Moura Bueno)
Ótimas referências! Acho importantíssimo desnaturalizar essa concepção de que a Idade Média foi um período de "sombras". É uma ideia extremamente pretensiosa, pra dizer o mínimo.
ResponderExcluirMuito bom, Elisa! Parabéns!
ResponderExcluirOi, Elisa! que ótima análise. Realmente, é sempre bom repensar e reorganizar nossas ideias, com novos olhares. Principalmente quando refletimos que um período tão extenso não poderia ser apenas uma coisa. A variedade de tempo e territórios com certeza produziu mais do que apenas terror e trevas.
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