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Hamlet e a loucura medieval

É muito possível não gostar de um clássico. Embora haja uma certa exigência para que clássicos aclamados sejam adorados por gerações, não gostar de uma dessas histórias não significa ter mau gosto ou não tê-la entendido. As histórias possuem um público, e às vezes nós não somos ele. Mas um ponto importante para determinar se não gostamos de um clássico ou se estamos apenas descontentes pela moralidade social da época em que a história foi escrita ou na qual ela se passa é pensar no que ela significava naquele momento e em por que as personagens agem dessa ou daquela maneira. 

Hamlet é um bom exemplo disso. A peça, talvez a mais aclamada do dramaturgo inglês William Shakespeare, foi escrita no início de 1600, mas já era histórica quando foi encenada pela primeira vez: o enredo acontece durante a Idade Média, entre 1300 a 1499, na Dinamarca. E embora esse seja um recorte bem grande de tempo até, já que o bardo não quis definir muito o período no qual a trama acontece, já haviam diferenças entre a moralidade e demonstrações sentimentais daquela época para o início do século XVII inglês, quando Shakespeare apresentou sua peça ao mundo. 

Uma das maiores críticas a Hamlet é que o príncipe, personagem título da peça, era um jovem egoísta, concentrado em si mesmo, que não se importava com ninguém, ao mesmo tempo em que era covarde demais para tomar as atitudes que pensava serem necessárias. Mas isso é verdade ou apenas queremos resoluções imediatistas, como leitores do século XXI? Atualmente, nossos enredos - sejam ficcionais ou não - são resolvidos da forma mais eficiente possível. O que Shakespeare nos apresenta não é apenas um retrato fictício da Dinamarca durante a Baixa Idade Média, mas também de seus costumes, da forma como as pessoas sentiam e pensavam, e em como o destino, por vezes, parecia escapar das mãos daqueles que deveriam moldá-lo, isso simplesmente porque todos parecem tão concentrados em seus monólogos que a ação transcorre pelas beiradas, e as consequências são desastrosas pela falta dela no momento certo. 

William Shakespeare

Mas Hamlet não é um jovem contemporâneo. Ele é alguém afável, gentil, que já começa a peça sendo levemente hostilizado por seus pares. O rei e a rainha não aceitam que ele esteja tão triste, estranho, distante - e acreditam que a morte do antigo rei, pai de Hamlet, não é o suficiente para deixá-lo naquele estado, ainda que o fato tenha acontecido há apenas dois meses e a mãe do nosso protagonista, a rainha, tenha casado com o tio de Hamlet, o agora rei, que tomou o trono para si sem nem ao menos dar tempo ao reino para lamentar seu antigo monarca. 

É um verdadeiro baque, e a Hamlet é negado o direito de sofrer e rememorar o pai. Se hoje isso seria estranho, mais estranho seria na época medieval, quando a morte de um rei causava comoção por longos períodos (e ainda existia o conceito de reis taumaturgos - reis literalmente miraculosos), e a morte de um pai ou marido não era facilmente esquecida. O rei e a rainha - e, consequentemente, seus súditos, cujo ritmo é ditado pelo trono dinamarquês - são os estranhos ali, os insensíveis. Sua alegria e insistência em prosseguir normalmente com a vida é bizarra para os moldes da época. E é claro que isso afeta a Hamlet. Mais ainda quando o fantasma de seu pai começa a vagar pelo castelo e fala com o filho, contando-lhe sobre sua morte, que fora um assassinato, e pedindo ao príncipe para vingá-lo, matando o tio, atual rei. 

É uma trama que despedaçaria a qualquer um, especialmente a um jovem sensível como Hamlet. Sua sensibilidade pode ser vista através da maneira gentil como trata a seus cortesãos e servos, assim como pelas cartas enviadas à jovem Ofélia, repletas de sentimentos nobres e cavalheirescos, e pelo próprio pesar pelo pai, pelo reino, pela Dinamarca. 

A partir do pedido por vingança, Hamlet luta consigo mesmo sabendo que terá de vingar o pai - a honra cristã não aceitaria menos do que isso -, mas tendo consciência de não ser ele um assassino. A loucura que lhe toma a mente é fruto desse impasse. Ele precisa tomar uma atitude, mas tenta fazê-lo apenas após ter absoluta certeza, testando o rei com uma peça de teatro que alude à uma situação parecida para comprovar a culpa do monarca. E, ainda assim, Hamlet usa da desculpa da crueldade eterna (não matar o rei durante suas orações, para que ele não seja absolvido, mas que vá para o inferno, como o merece) para não tornar-se um assassino. Quando mata, é a outro homem, e sem querer, no susto. A loucura de Hamlet possui, de fato, um método, porém é importante lembrar que sua razão está intacta e alicerçada nos valores medievais. 

A loucura na Idade Média e em Hamlet 

Em determinado momento da peça, Hamlet confessa a seu amigo, Horácio, que sua loucura é fingimento - ele apenas está se fingindo de louco para conseguir obter as respostas que deseja. Todavia é interessante observar que aquele era o final da Idade Média - muitas coisas eram consideradas loucura quando tratavam-se, apenas, do desviar da norma. E Hamlet encontrava-se numa corte anormal: uma corte que acabara de perder seu muito amado rei, mas que seguia com festividades, o precoce casamento da rainha com seu cunhado e a usurpação do trono do verdadeiro herdeiro, o próprio Hamlet. Se Hamlet permite-se, em seu jogo de loucura, deixar seus sentimentos conturbados de luto e confusão transparecerem, seria ele realmente louco ou os loucos seriam os outros? Ainda mais: se a corte - o rei, a rainha, os servos de maior e menor grau - não são loucos, então são, necessariamente, maus. E isso não seria pior do que a loucura? Mas o próprio Hamlet afirma que eles são, de fato, loucos: 

Lembrar-me de ti! Sim, tu, pobre espectro, enquanto a memória tiver assento nesse mundo enlouquecido.

Para os medievais, a saúde era uma questão de forças em equilíbrio. E isso deve ser entendido de forma ampla: se algo acometia o corpo, era porque um excesso havia resultado numa falta, e isso precisaria ser reequilibrado. Se algo acometia a mente, o mesmo princípio era aplicado. Quais eram os excessos e faltas é outra questão - para alguns, eram relacionados ao divino; para outros, a atividades cotidianas. Quando Hamlet começa a exibir sua loucura, as pessoas à sua volta acreditam que ele encontra-se naquele estado por estar "louco de amor". Isso porque na época - e até o começo do século XIX, diga-se de passagem -, acreditava-se que o homem que não concretizasse seu amor de forma física (ou seja, que não tivesse relações sexuais com a pessoa por quem estava apaixonado) padeceria de alguma forma, fosse de doença física ou mental. Ao não concretizar seu amor por Ofélia, Hamlet adoece. Contudo, nós, leitores, sabemos que esse não é o seu mal. Mas é o mal que parece ser a causa dos infortúnios e balbucios filosóficos de Hamlet naquela corte. 

 Cutting the stone, por Hieronymus Bosch (1494)

A loucura também parece advir do conhecimento. Erasmo de Rotterdam já falava, em Elogio da loucura, que a sabedoria levava os jovens à insanidade. Sófocles também havia dito coisa semelhante: "A vida mais agradável é a que transcorre sem nenhuma espécie de sabedoria"

E Hamlet possui conhecimento. Além do que o espírito de seu pai lhe faz conhecer, da verdade sobre a morte do rei, o jovem príncipe era, afinal, um estudante que tinha prazer na leitura. Hamlet é um jovem de grande conhecimento - e como boa parte dos jovens estudiosos e leitores, melancólico. A loucura, nesse aspecto, aproxima-se dele naturalmente - não da maneira como entendemos o termo hoje em dia, mas como um estar fora do conjunto uniforme formado por seus pares. Ninguém lhe entende porque ninguém partilha de seus conhecimentos - e o conhecimento, como sabemos, traz angústia por apresentar um mundo novo, no qual as verdades são mutáveis e a certeza encontra-se apenas no destino comum a todos os homens: a morte. 

Ultimamente – e por que, não sei – perdi toda alegria, abandonei até meus exercícios, e tudo pesa de tal forma em meu espírito, que a Terra, essa estrutura admirável, me parece um promontório estéril.

Não é à toa, portanto, que o solilóquio mais famoso da peça seja o momento em que Hamlet, aflito, indaga-se "Ser ou não ser, eis a questão". E a questão, aqui, encontra-se no ser - no sentido de existir - ou não ser - no sentido de deixar de existir. Se a vida é esse acúmulo de incertezas e incompreensão, se a maldade é recompensada com um trono, se o próprio príncipe da Dinamarca, que sempre tentou ser justo, honrado e estudioso, depara-se com uma situação impossível na qual precisa transformar-se num assassino para vingar o espírito de seu pai, então, será o "não ser" mais atraente? 

Ao contemplarmos um jovem Hamlet tão perdido em pensamentos angustiantes, flertando com a loucura, tendo de tomar decisões impossíveis, não é correto o julgarmos como sendo o causador de toda a tragédia. Se há um causador, ele está no trono; o príncipe foi arrastado para o drama e tentou, o quanto pôde, fazer o melhor numa situação de fragilidade mental e caos familiar e social. 

Além disso, é importante olharmos para a loucura da maneira como os medievais a olhavam. Quando o rei Cláudio diz a Polônio que “A loucura dos grandes precisa ser vigiada”, ele está referindo-se à crença comumente aceita na época de que era através dos loucos que as verdades (e profecias, por sinal) eram reveladas. Tais coisas poderiam ser perigosas - tais coisas poderiam acabar com reinos inteiros. Em História da loucuraMichel Foucault afirma que “Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade; na comédia em que todos enganam aos outros e iludem a si próprios”. E cabe a Hamlet desempenhar o papel de desbravador da verdade - com seu comportamento louco, ele faz com que todas as teias de aranha sejam varridas e os segredos do castelo, desvelados. A tragédia que ocorre a partir disso é a única verdade imutável: a morte é o destino comum a todos os homens. 


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Referências 



Arte em destaque: Mia Sodré

Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando Apolo, Dioniso e a recepção dos clássicos em O Morro dos Ventos Uivantes. Escritora, jornalista, editora e leitora crítica, quando não está lendo, escreve sobre clássicos. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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