Para entender o gótico em Keats, é preciso olhar para o passado. A literatura pré-Keats vinha de uma tradição neoclássica - o que significa que todas as subjetividades do ser haviam sido suprimidas e apagadas da arte em nome de algo objetivo, em termos com o Racionalismo iluminista. Na história, quando um movimento surge, é disruptivo; passado um tempo, o mesmo movimento que destruiu barreiras torna-se o status quo e logo é substituído por um novo, um que represente o momento contemporâneo no qual é criado. O que substituiu o Neoclassicismo foi o Romantismo. Enquanto um é exato, o outro é vago. Enquanto um é racional, o outro é emotivo. A beleza para um existe dentro daquilo que é calculado, organizado, "civilizado"; para o outro, a beleza é uma força da natureza incapaz de ser domada - ela é feroz e, por isso, atraente. Como afirmou Hanieh Mher Motlagh em "The Gothic Elements in the Poetry of John Keats":
"O Movimento Romântico é caracterizado por inovação (ao invés de tradicionalismo), espontaneidade (de acordo com Wordsworth, a boa poesia é uma 'explosão espontânea de sentimentos poderosos'), expressão (especialmente dos pensamentos e sentimentos do próprio poeta) e idealização da natureza (os poetas Românticos também eram chamados de 'poetas da natureza') e a crença de viver numa era de 'novos começos e altas possibilidades'. O Gótico já foi divido por Robert Hume em dois subgêneros, romances de horror e romances de terror, cada qual possuindo características particulares, ou recursos, dos quais a maior parte dos textos contêm pelo menos um, mas não todos."
John Keats nasceu em 31 de outubro de 1795. A Revolução Francesa tinha a recém acontecido e o clima de agitação ainda existia na Londres de Keats. Ele, nascido numa família operária, de condições humildes, era muito sensível à política da época: a violência era constante, o povo passava fome e uma revolução na Inglaterra era sussurrada pelos cantos. Há quem diga, ao olhar para os poemas românticos de Keats, que ele não se envolvia em política, mas o poeta era, na verdade, um revolucionário: ele não atuou de forma radical na política, porém suas convicções estão bem claras em seus versos, cartas e nos caminhos que trilhou.
John Keats |
O Romantismo é uma expressão crítica à sociedade do capitalismo industrial na Inglaterra. Ainda que fosse da nobreza, Lord Byron usou a oportunidade de seu primeiro discurso na Câmara dos Lordes, em 1812, para se alinhar à classe trabalhadora em oposição ao governo tirânico. Percy Shelley também era radical: ele publicamente apoiava os movimentos dos trabalhadores, a revolução, era abstêmio e vegetariano. Já Keats, que tinha uma espécie de amizade com Shelley (uma espécie pois, ainda que simpatizasse com o outro poeta, Keats sentia que aquele não o entendia direito, já que pertencia à nobreza), partilhava das convicções de Percy e Byron contra a escravização e a industrialização. Jenny Farrel escreveu no artigo "John Keats: A revolutionary romantic", publicado na Socialist Voice:
"Porque Keats percebeu plenamente que o potencial humano significa que os humanos podem apreciar o mundo através de seus sentidos. O capitalismo destrói esses sentidos: lombos e orelhas jorram sangue, olhos são vazios, olhos são de chumbo."
Pode parecer que isso nada tem a ver com o Gótico, contudo o Gótico é um movimento disruptivo. Ele quebra com o ideal de beleza calculada do Neoclassicismo, e também com a ideia de um respeito à monarquia, às regras, à "civilidade". Toda arte é política, afinal de contas - e não seria diferente aqui. Keats era profundamente contra a monarquia. Pode ser difícil para o leitor do século XXI perceber as nuances provocativas de seus poemas, do início do século XIX, mas elas estão lá - e para os leitores da época elas eram bem claras. Foi George Bernard Shaw quem disse: "Keats conseguiu um feito muito curioso de escrever um poema do qual se pode dizer que se Karl Marx pudesse ser imaginado escrevendo um poema ao invés de um tratado sobre o Capital, ele teria escrito Isabella".
E Isabella, curiosamente, é um poema gótico.
Isabella; or The Pot of Basil é um poema baseado em uma história retirada do Decamerão, de Boccaccio. O poema fala sobre uma garota chamada Isabella que se apaixona por Lorenzo, um dos servos da família. Quando seus irmãos descobrem isso, matam o rapaz e o enterram, mas o fantasma de Lorenzo avisa Isabella em seu sonho, mostrando a ela, em visão, o que lhe acontecera.
Como se não bastassem os elementos oníricos e sombrios, Keats ainda descreve como Isabella, ao encontrar o corpo de Lorenzo, enterra a cabeça do amado num vaso de manjericão, que rega com suas lágrimas.
Já The Eve of St. Agnes, ou A Véspera de Sta. Agnes, conta a história de Madeline e Porphyro. Existia uma crença medieval que consistia em uma jovem virgem preparar-se ritualisticamente, em jejum, na véspera de Sta. Agnes, para que esta lhe revelasse em sonho quem seria seu futuro marido. No poema, Keats envolve o leitor em uma atmosfera tipicamente gótica: tudo se passa num castelo, numa noite tão fria que os dedos do Beadsman (um homem cujo trabalho era orar pelas almas) estavam dormentes. Existe o prenúncio de morte do próprio Beadsman, a figura que mais se aproxima das almas. As estátuas locais parecem atormentá-lo com pensamentos de morte - e suas descrições são sinistras. Além disso, o poema entra no território dos sonhos oníricos transformados em pesadelos e da possível prática de sonofilia, ou seja, o abuso sexual de uma pessoa dormindo.
The Eve of St. Agnes, por John Everett Millais (1863) |
Outro poema de Keats que exibe uma estrutura gótica é Lamia, que conta como o deus Hermes ouviu dizer que havia uma ninfa considerada a mais bonita de todas. Ao procurá-la, ele encontra Lamia, que está presa na forma de uma serpente. Então Lamia revela a Hermes a ninfa, que estava invisível, e em troca ele lhe restaura a forma humana. A história segue com um casamento, quando Lamia se liberta de sua maldição, mas termina em tragédia ao revelarem sua verdadeira identidade.
Lamia, por John William Waterhouse (1909) |
La Belle Dame Sans Merci, por Frank Bernard Dicksee (1901) |
Alguns dos elementos do Gótico utilizados por Keats em seus poemas são o sonhar (que leva à pessoa que sonha a ter revelações, emoções e mesmo premonições), a superstição (criticada pelos iluministas e neoclassicistas por encher a cabeça dos leitores com aquilo que não era objetivo e palpável) e o aprisionamento (o confinamento de uma pessoa a um espaço restrito, o que lhe causa angústia ou danos físicos).
Keats utilizou de elementos Góticos para trazer o reino místico de volta à poesia. Além disso, desafiou as regras da época ao tocar em assuntos espinhosos, como direitos das mulheres, a preservação da natureza, que estava sendo destruída pelas implementações da Revolução Industrial, sexualidade, estupro e a atração pelo horror descrita em seus poemas.
Referências
- The Gothic Elements in the Poetry of John Keats (Hanieh Mehr Motlagh)
- The reflection of social reality in Keats's poems and letters (Karel Stepanik)
- Politics in Keat's poetry (June Q. Koch, Bryn Mawr College)
- Creativity and the boundaries of the self: separation and engulfment anxiety in Keats and Poe (Craig Powell)
- The use of myth, the supernatural and the Gothic in John Keats's poetry (Deniz Kırpıklı)
- The principle of beauty: the Gothic in John Keats's Isabella; or, the pot of basil (Deniz Kırpıklı)
- John Keats: A revolutionary romantic (Jenny Farrel)
simplesmente tudo!!!!!
ResponderExcluirSou apaixonada por La Belle Dame Sans Merci. Li ele quando era adolescente, um poema perdido em uma revista, e nunca mais esqueci! Belo texto, Mia!
ResponderExcluirGratidão eterna pela lista de referências no fim do post. Meu contato com Keats é recente, e eu fiquei muito impressionada pelo domínio do ritmo que ele tinha nos poemas, acho que nunca vi algo parecido antes. É uma coisa metronomizada, circular, meio hipnotizante. Fica num misto esquisito entre ser incômodo e você não conseguir parar de ler.
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