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Vislumbres literários sob crítica assexual

Rotular figuras históricas e personagens clássicos com padrões contemporâneos de gênero e sexualidade é sempre um perigo, uma linha tênue entre anacronismo e estereótipo. Aqui se faz uma auto-indulgência como ode aos que foram, mas, ainda permanecem na devota curiosidade humana, àqueles que não compreendemos, mas, acabam sendo mais nós do que nós mesmos. Sem confirmar ou negar, porém, refletindo a parte sensível, preferindo sentar-se em frente à encruzilhada do que seguir qualquer caminho.

Ao longo do estudo de clássicos, há inúmeras e válidas interpretações queers de obras que vão do mais sólido, como nos poemas de Safo, até a codificação queer, que é mais um subtexto desconsiderando o cânone. Neste segundo ponto, a raiz de tudo está na estética, no visual, na performance. Aqui, o parecer é tão importante e impactante quanto o ser. Talvez seja a morte do autor, explicada por Roland Barthes, mas, mesmo sem separar o texto da obra, sem desconsiderar a fidelidade à história e sua autoria e contexto, encontrar queeridade, utilizando linguagem contemporânea, em grandes criações literárias pode ser profano e subversivo, uma faísca de consciência sob uma ótica de autoconsciência.

Bolo, dragões e baralho de cartas. Sob roxo, preto, branco e cinza, a assexualidade não é uma criação pós-moderna, não é celibato, não é patologia. Representa o indivíduo que sente pouca ou nenhuma atração sexual, dependendo de circunstâncias específicas ou não, assim como arromanticidade é sobre a experiência de mínima ou nenhuma atração romântica. Mais do que uma única orientação, a assexualidade é um espectro complexo que contempla várias vivências e diferentes conceitos de atração, sua fluidez é revolucionária até mesmo dentro da comunidade queer, negando a heteronormatividade e o binarismo sexual. Orientações sexuais são expressões da identidade de um indivíduo, cada bandeira possui suas próprias características, símbolos e particularidades e, assim, a assexualidade expõe nuances nas relações entre identidade sexual, comportamento e atração.

Inicialmente, embora possa parecer que Mulherzinhas, escrito por Louisa May Alcott, permaneça dentro de suas raízes conservadoras e reforce as normas de gênero e relações heterossexuais, é preciso finalmente situar o romance em seu contexto histórico. Seu lugar no gênero do romance doméstico do século XIX, cuja mensagem focava na escravidão, cristianismo ou devoção feminina e sufrágio, permite ao leitor e crítico literário apreciar que Mulherzinhas foi e continua sendo um romance radical que desvia arriscadamente da censura e consegue questionar as convenções sexuais e estereótipos do final do século XIX.

Escrito em 1868, numa época em que a crença em relação à sexualidade era, segundo Michel Foucault, “assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora”, não sendo algo voluntário para as mulheres, que eram entendidas como não-sexuais, puras, assim mantendo a ordem social e a família (principal instituição patriarcal). Excluídas desta esfera pública do patriarcado, onde prevaleciam os valores masculinos, as mulheres — de forma generalizada ao contexto estudado, e não interseccional — se uniam dentro da esfera doméstica matriarcal de cuidado do lar e dos filhos. Recorriam umas às outras emocionalmente, tendo a liberdade não-masculina de expressar seus sentimentos e paixões. Na aceitabilidade social de “amizades homossociais” ou “amizades românticas” desse período, permeia um cenário em que as mulheres se apaixonavam entre si, se amavam sem o peso do erótico que estava atrelado ao sexo oposto, dicotomicamente uma sexualidade feminina encoberta e assexualidade feminina aberta. A própria autora Louisa May Alcott explica: “Estou quase certa de que tenho uma alma de homem colocada por alguma aberração da natureza num corpo de mulher [...] pois, na vida, já me apaixonei por muitas meninas bonitas, mas nunca, nem um pouco, por um homem”. De acordo com Elaine Showalter, “muitos dos ensaios de Alcott exploraram as possibilidades da vida de solteira para as mulheres, ou de uma comunidade apoiadora de artistas e profissionais mulheres, e ela muitas vezes criticava os problemas ocorridos quando as pessoas casavam cedo.

Esse contexto se faz explícito em Mulherzinhas e muito se discute sobre o gênero e sexualidade de Jo March, a personagem revolucionária que transgride e explicitamente nega a feminilidade. Focando nos relacionamentos de Jo, é possível ir além das hipóteses de que Jo March seja lésbica, pois ela nunca teve desejos românticos ou sexuais (situando-se hipoteticamente em ambos espectros assexuais e arromânticos), mesmo quando casada com o professor Bhaer (fato que foi quase uma imposição à Louisa May Alcortt). Na verdade, o relacionamento entre Jo e Bhaer é realmente belo e genuíno — e assexual, pode-se afirmar —, apesar de não ser uma grande paixão fervorosa, mas ainda representando companheirismo e contentamento de um verdadeiro relacionamento queerplatônico; aliás, segundo Sarah Elbert, “Bhaer é escrito com os atributos femininos que Louisa admirava e esperava que os homens pudessem adquirir num mundo racional e feminista”. É um final em que Alcott presenteia o conforto para a protagonista, um conforto que a própria autora talvez aspirasse.

Louisa May Alcott

Jo March, contudo, ama profundamente (e não-romanticamente). Mulherzinhas é uma jornada de amor, seja amor materno e fraterno ou mesmo de grandes amizades, como entre Jo e Laurie, que representam amor platônico, ou melhor, no caso de tal dupla, queerplatônico. Para alguns leitores, parece disruptivo e decepcionante a rejeição de Jo para com as ambições românticas de seu melhor amigo, contudo, a personagem o tempo todo nega que algum dia irá se casar ou sequer se apaixonar, declarando que possuía outras prioridades e nem mesmo queria tais determinações. Isso é algo bastante comum para indivíduos que estão no espectro assexual ou arromântico, pois a sociedade geral normalmente não é capaz de compreender diferentes formas de amar, principalmente quando fogem das representações predominantes na mídia e no cotidiano. Jo, apesar de receber tantos imperativos alheios sobre, não aceita o valor hierárquico culturalmente colocado no amor romântico ou sexual.

Ao longo da história original e suas muitas adaptações, o núcleo do arco narrativo de Jo é como ela negocia as muitas expectativas colocadas sobre ela por causa de seu gênero, como ela aspira fazer seu próprio nome como escritora, constantemente se rebelando contra as armadilhas da amatonormatividade e desejando ser homem para se alistar na guerra, não se preocupar em encontrar um marido, e não se preocupar com coisas “femininas” como vestidos e bailes extravagantes — diferente de suas irmãs Meg e Amy. 

Ademais, segundo a análise de Greta Gerwig, diretora da mais recente adaptação cinematográfica de Mulherzinhas, Jo e Laurie encontram-se um ao outro antes mesmo de terem se comprometido a um gênero. Dessa forma, o leitor tem a experiência de ver a jornada de dois jovens que não se deixam separar pela dicotomia de gênero. Jo não consegue realizar tarefas femininas, diz não se importar em ser um rapaz se estiver confortável, corta o cabelo de maneira masculina, não é sentimental, interpreta todos os protagonistas homens em suas peças com prazer, se ajoelha oferecendo a Laurie um anel como símbolo de sua amizade (anel este que ele permanece usando mesmo após ela rejeitar suas ambições românticas) etc.; Laurie, ao contrário, participa do “clube de senhoras” das irmãs March (pouco a pouco ocupando esse espaço de imaginação coletiva feminina do amor, do ritual, do sacrifício), é temperamental e artístico, gosta de fofocar, reclama que “meninos fazem tanto barulho” etc. No primeiro encontro, Jo é quem possui o comportamento cavalheiresco e Laurie tem mãos pequenas. O que está implícito é que, enquanto conscientes de si mesmos e vagamente cientes de suas esferas socialmente separadas, eles não precisam encontrar seu lugar dentro de uma ou outra cultura e, portanto, a natureza pré-sexual de seu mundo infantil lhes permite ocupar a mesma simultaneamente.

Liberdade, fluidez e ternura implicam uma queeridade que é abraçada pela simplicidade da história e a pureza do amor sem uma cisheteronormatividade opressora e óbvia. A androginia dessa relação entre uma garota com nome de garoto e um garoto com nome de garota traz uma ambiguidade sem amarras que a própria Jo (e, ouso dizer, que a própria Alcott) procura durante o livro. Seguindo a teoria queer, o sexo biológico não é o que confina uma pessoa e, sim, as expectativas e estereótipos de gênero da sociedade. Inclusive, em 1880, uma nova edição de Mulherzinhas foi publicada com inúmeras mudanças no texto, retirando atos masculinos de Jo e traços efeminados de Laurie. A própria autora reclama: “[...] mas os editores são muito perversos e não permitem que os autores façam o que querem, de modo que minhas mulherzinhas precisam crescer e se casar de maneira muito enfadonha”. Jo e Louisa May Alcott representam, assim, a raiva feminina e a liberdade que reside nesta.

Mulherzinhas recebe, no contexto contemporâneo, o título de “cottagecore”, nessa estética de éclogas, uma vida bucólica unida aos elementos de feminilidade, domesticidade e comunidade. Isso põe em perspectiva um tipo de (procura por) ecossocialismo queer. A diferença de classes é um ponto em destaque para a construção da história e dos personagens; se passando numa época de Revolução Industrial e Guerra Civil, as mulheres, assim como a própria autora, fazem parte da massa trabalhista para sobreviver e ajudar suas famílias. Pode-se encontrar beleza na moral de que a classe operária desvenda muito mais virtudes e nobreza de espírito e vida do que as classes mais altas, ainda mais nesse contexto quase matriarcal da família March. Um outra obra de Alcott, “M.L.”, foi rejeitada por causa de seu “material ofensivo”: o casamento entre uma mulher branca e um homem que fora escravizado. Devido a seus trabalhos anteriores, Alcott desejava que sua escrita falasse sobre as injustiças impostas à humanidade e encorajar a sociedade a acabar com a repressão. Bondade, gentileza e conselhos maternos são talvez as maiores formas de amor, mostra Mulherzinhas.

Essa é a jornada do herói cotidiana de pequenas mulheres com problemas, angústias e sonhos que conectam-se às pequenas mulheres que irão ler, numa escrita simples e sem rodeios. Assim Patti Smith escreve no prefácio (da edição da Penguin-Companhia): “Os passos em falso que ela [Jo] dava, dos cômicos aos ousados, eram invejáveis e me concediam permissão para dar os meus [...] Louisa May Alcott conferiu às irmãs March vida, graça e uma esperança e uma determinação contumazes, dando, assim, o mesmo às mulherzinhas de sua épocas e das épocas por vir”. Talvez por ser, afinal, um livro feito com o propósito de educar meninas, entre tantas lições de moral, foge dos grandes romances, dramáticos e rebuscados, das fantasias e livros épicos, explosivos e cheios de informação. No Ocidente, geralmente se entende que a trama gira em torno do conflito: um confronto entre dois ou mais elementos, no qual um acaba dominando o outro. Por incontáveis ​séculos, porém, escritores chineses e japoneses usaram uma estrutura de enredo que não tem conflito “embutido”, por assim dizer: "kishōtenketsu", que contém introdução, desenvolvimento, reviravolta e reconciliação com os quatro atos da história. É de forma parecida que Mulherzinhas se constrói como o retrato de uma família com cenários e ambientes reconfortantes, o que lembra Anne de Green Gables, romance de L. M. Montgomery, no qual a protagonista também é codificada como assexual (similar à rebeldia e reflexões de Jo March, principalmente nos resultados de uma heterossexualidade compulsória); Anne, e sua conexão com a natureza, livros, suas amizades femininas (devoções românticas, mas não eróticas, em que Anne sempre desejou a companhia de outras mulheres) e sua própria imaginação. 

Além de Jo e Laurie, as outras irmãs March também se fazem importantes na discussão de assexualidade. Cada um dos distintos caminhos das irmãs é tratado com respeito, desafiando ou não as convenções sociais, ademais, construindo uma comunidade autossustentável de imaginação coletiva feminina, valores femininos e feminilidade. Beth, a mulherzinha perfeita e símbolo de suas dores, assim como Jo, não sonha em se casar, contente em apenas amar platonicamente e profundamente sua família. Ademais, é interessante pensar como Jo é livre, teimosa, criativa e desajeitada, e muitas dessas características são as mesmas das da Amy, que é colocada como seu oposto. Na verdade, Amy talvez seja a personagem feminina mais próxima de Jo e sua não-conformidade, performando gênero e sexualidade constantemente em prol de suas ambições e busca por genialidade. Há uma dualidade entre o mundo ilimitado da infância e a heterossexualidade compulsória da vida adulta, e Amy sempre foi uma personagem que desejava ser adulta.

O romantismo platônico da amizade entre Jo e Laurie se faz similar à relação homorromântica entre Frodo e seu companheiro Sam em O Senhor dos Anéis, talvez o ponto mais marcante na diversidade de "amizades românticas" na trilogia, em que a masculinidade é tão saudável e amorosa. O universo de J. R. R. Tolkien, talvez pela estética de fantasia e Idade Média, talvez pelo conservadorismo em conflito (ou união) com o progressismo do autor, é e sempre foi um refúgio ace (abreviação de "assexual"). Personagens como Gandalf e Legolas são extremamente codificados como assexuais, não somente pela falta de um interesse amoroso, mas pela forma com que eles expressam sua identidade e interagem entre si e com o mundo. Além disso, nos apêndices de O Senhor dos Anéis, Tolkien menciona que apenas um terço da população anã é feminina e menos de um terço dos anões-homens se casam, pois grande parte de ambos os lados não deseja casamento. Bilbo e Frodo em nenhum momento são definidos pela ausência de sexo ou romance, o que se torna um acalento para a comunidade assexual entre os leitores num mundo movido a sexo. Há também o poder simbólico da fantasia em combater opressão. Como as fadas, que simbolicamente representavam mau comportamento (século XV), feminilidade (século XIX) e, então, queeridade e natureza (séculos XX/XXI).

J. R. R. Tolkien

Além de personagens emblemáticas como Jo March, desviando a atenção de conhecidos ícones assexuais como Sherlock Holmes, é possível encontrar alusões estruturais de assexualidade e/ou arromanticidade nas obras mais inesperadas, como Jude, o Obscuro, de Thomas Hardy, Um Quarto com Vista, de E. M. Forster, Ao Farol, de Virginia Woolf, e Muito Barulho por Nada, de William Shakespeare. Nesta última, enfatiza-se o desenvolvimento de um relacionamento primordialmente queerplatônico entre Benedito e Beatriz (personagens que também podem ser sujeitos a uma análise queer mais aprofundada, de gênero à homossexualidade):

“BENEDITO - [...] Mas uma coisa é certa: com exceção de vós, todas as mulheres se apaixonam por mim. Só desejara que o coração me dissesse que eu não sou duro de coração, porque, para ser franco, não dedico amor a nenhuma.

BEATRIZ - O que constitui verdadeira felicidade para as mulheres, que, desse modo, ficam livres de um galanteador importuno. Dou graças a Deus por ter o sangue frio; nesse ponto nos parecemos. Prefiro ouvir meu cachorro latir para uma gralha a ouvir um homem dizer que me dedica amor.”

“BENEDITO - Não me amais?

BEATRIZ - Não acima do razoável.”

Por outro lado, é imprescindível discutir os grandes nomes assexuais da literatura fora de suas obras ficcionais. Mulherzinhas é quase autobiográfico, um livro no qual Alcott relata seus próprios conflitos pessoais de criatividade, retrata sua própria família (as irmãs Anna, Elizabeth e May) e a interdependência da mesma.  Segundo Elaine Showalter, na família Alcott, as mulheres, a sexualidade e os desejos físicos significavam todos os obstáculos mundanos à transcendência masculina, mas Louisa refletia tradições e estilos matriarcais, sempre associando seus escritos mais prazerosos à bruxaria, “um legado apaixonante que podia ser ao mesmo tempo mágico e perigoso”. Seu vórtice de criatividade trazia “emoções e fantasias perturbadoras sobre sexualidade, raiva, rebeldia e fuga”. Enquanto o diário de sua irmã Anna era sobre outras pessoas, o de Louisa era sobre ela mesma. Outrossim, a escritora comenta: “prefiro ser uma solteirona livre e remar minha própria canoa”.

Outros escritores dignos de nota são H.P. Lovecraft e Mário de Andrade. Lovecraft, em sua vida pessoal, é descrito como neutro e ambivalente em relação a sexo, crucialmente não demonstrando nenhum interesse. Já Mário de Andrade teve sua sexualidade abordada apenas 50 anos após sua morte, num livro de Moacir Werneck de Castro: “supunhamos que fosse casto ou que tivesse amores secretos. Se era ou não, isso não afeta a sua obra, nem seu caráter”. Em 1990, seu amigo Antônio Candido afirmou: "O Mário de Andrade era um caso muito complicado, era bissexual, provavelmente". E ressalta-se o episódio do rompimento da amizade com Oswald de Andrade em que este ironizou que Mário se “parecia com Oscar Wilde por detrás”. Todavia, a maioria dos familiares de Mário rebatem que ele era assexual, a quem “só importava a literatura”.

Numa carta a Oneyda Al­va­renga, Mário descreve o que Paulo Prado nomeou “monstruosa” sensualidade, discorrendo que “não se trata absolutamente dessa sensualidade mesquinhamente fixada na realização dos atos de amor sexual, mas de uma faculdade que, embora sexual sempre e duma intensidade extraordinária, é vaga, incapaz de se fixar numa determinada ordem de prazeres que nem mesmo são de ordem física. Uma espécie de panssexualidade, muito mais elevada e afinal de contas, casta, do que se poderia imaginar. O Manuel Bandeira que me conhece muito intimamente, uma vez, me disse: ‘Você… você tem um amor que não é amor do sexo, não é nem mesmo o amor dos homens, nem da humanidade… você tem o amor do todo!’”. E só em 2015, a Fundação Casa de Rui Barbosa disponibilizou para consulta um trecho antes censurado de uma carta escrita por Mário de Andrade, em 1928, ao seu amigo Manuel Bandeira, na qual este discute os boatos de sua suposta queeridade:

“[...] num caso tão decisivo pra minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu há de tê-lo bem catalogado e especificado, há de ter tudo normalizado em si, se é que posso me servir de “normalizar” neste caso. Tanto mais, Manu, que o ridículo dos socializadores da minha vida particular é enorme. Note as incongruências e contradições em que caem. [...] Mas se agora toco nesse assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como eu tenho a minha vida mais regulada que máquina de pressão) e se saio com alguém é porque esse alguém me convida, se toco no assunto é porque se poderia tirar dele um argumento pra explicar minhas amizades platônicas, só minhas. Ah, Manu, disso só eu mesmo posso falar, e me deixe ao menos pra você, com quem, apesar das delicadezas da nossa amizade, sou duma sinceridade absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro não. Os sequestros num caso como este onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis. Eis aí uns pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequência, faça deles o que quiser."

Para Silviano Santiago, após a carta “há um extenso trabalho pela frente, que é tratar daquela que eu julgo ser a grande questão libertária do novo milênio: a sexualidade. [...] Essa carta pode abrir novas interpretações”. Eduardo Jardim comenta: “A carta mostra claramente uma tensão entre o amor carnal, que é físico e sexual, e o amor sublime, espiritualizado, como o que ele demonstra ter pela amizade de Manuel Bandeira. Essas tensões atravessam sua personalidade”

Alguns pesquisadores assexuais igualmente encontraram ressonâncias nos escritos da poeta francesa do século XVII, Catherine Bernard, e da sufragista britânica do século XIX, Elizabeth Wolstenholme Elmy. Destarte, Tone Hellesund afirma que “[...] as 'solteironas' eram vistas como queers, não porque não fossem mães ou esposas, mas porque queriam entrar na esfera pública e quebrar as fronteiras de gênero entre o privado e o público”.

Apesar dos exemplos citados confundirem assexualidade e arromanticidade de maneira incongruente num contexto contemporâneo, pode ser a única forma de identificar adequadamente figuras e momentos históricos para a construção de um legado da letra A em LGBTQIA+. É preciso pensar nas distinções do contexto original, sem restrições modernas ou sensos de interpretação não-literários. Definir assexualidade como simples falta de interesse em sexo ou considerar uma mulher que nunca se casou como potencialmente arromântica parece redutivo às orientações sexuais, mas, deixando de lado a concepção de que são termos modernos, não presentes na bibliografia histórica, deve-se refletir os comportamentos e entrelinhas codificados para, então, se aprofundar nas próprias pessoas, descobrir suas motivações e aprender um pouco sobre a maneira como elas se definem. A assexualidade ajuda a identificar como o sexo é regulado, sancionado, imposto e usado como instrumento de controle. Um impulso de libertação não apenas às pessoas da comunidade, mas a todos que lidam com a própria sexualidade (ou seja, o ínterim da humanidade). Ver além da allossexualidade na literatura clássica, conectando e interagindo passado e presente, invocando uma herança literária, é seguir os passos de Judith Fetterley quando a mesma diz: “o primeiro ato de uma crítica feminista deve ser tornar-se uma leitora que resiste, e não que assente”.

Referências 




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