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Frankenstein em Penny Dreadful: a monstruosidade feminina


Durante a construção do imaginário da maioria dos indivíduos, foi inserida a imagem de um monstro pálido de feição quase esverdeada, com parafusos em sua cabeça e que se movia de forma assustadora e desajeitada. O monstro, ou melhor, a criatura foi concebida através da ciência e através de um criador, o seu pai e irmão, doutor Victor Frankenstein. A imagem que foi propagada no decorrer do tempo e da história teve suas origens no século XIX, dentro de um misto de influências científicas, filosóficas e de uma curiosidade sobre o ciclo da vida, a vida que gera morte e a morte que gera vida.

A sua construção tão única, com o passar do tempo, foi enfraquecida por meio dos grandes blockbusters, que seguiram a figura de Frankenstein na modernidade, tornando-a maleável e modificada como uma coisa viva pela oralidade, e o nome se tornou tão popular que não é necessário que se leia o romance para que ao primeiro som reconheça-se a imagem.

O monstro, composto por pedaços costurados, é comumente conhecido como Frankenstein, a própria imagem e semelhança de seu criador. Por mais incrível que pareça, a criatura nunca foi nomeada propriamente, ela era uma espécie de duplo, um espelho daquele que o criou. Mary Shelley deu à luz a sua narrativa em um contexto não convencional de uma noite chuvosa nos Alpes. A primeira não convencionalidade foi sua ascendência, a sua própria criação. Filha de uma protofeminista e de um filósofo, Mary conviveu com personalidades como Darwin; estudiosos das ciências e entusiastas da eletricidade; poetas do século do romantismo e da popularização da literatura gótica; viveu a época do pensamento, em que a busca pelo princípio da vida rodeava suas conversas e relações. Dessa forma, entre a união do gótico e da ciência, moldou Frankenstein, ou o Prometeu moderno, e criou o que viria a ser conhecido como um dos primeiros romances de ficção científica.

Mary Shelley

Outro fator primordial da sua não convencionalidade foi a sua identidade, o seu gênero. É possível que ainda hoje o senso comum não perceba que aquela criatura icônica, que faz parte de um imaginário coletivo, foi criada por uma mulher. Dentro de seus sonhos, em um esforço para criar a sua singular história de terror, Mary Shelley acaba gerando não só o que viria a ser assombroso, mas o que questionaria por séculos o próprio homem: um amontoado de ambições e contradições junto a seu senso de criador do mundo.

“Vi – com os olhos fechados, mas visão mental aguçada – vi o pálido cultor de artes profanas ajoelhado junto à coisa que criara. Vi o horripilante fantasma de um homem estirado que, em seguida, por força de um poderoso motor, mostrava sinais de vida e movimento desajeitado; a meio caminho de viver. Que assustador devia ser; porque de um terror supremo seria o efeito causado por qualquer esforço humano a imitar a estupenda engrenagem do Criador do mundo.”

O seu gênero, somado ao que escreveu, foi um catalisador das críticas comumente feitas ao seu sexo. A sua obra fugia da moralidade, não tinha valor pelo simples fato de não atender às boas maneiras de uma sociedade inglesa. Como poderia uma mulher tão jovem elaborar e pensar coisas tão terríveis e monstruosas? A desconfiança de que o romance foi escrito por uma mulher ficou latente e a crítica tentou perdoá-la e atribuir à sua identidade um quê de genialidade: “Para um homem, já seria excelente, mas para uma mulher é extraordinário” (Maurice Hindley, na introdução à obra na edição da Penguin Companhia). Toda a crítica que se autorizou a elogiá-la apoiou-se no fato de que Mary Shelley era casada com um poeta, Percy Shelley, e que foi de seu marido que herdou o espírito de gênio. Com o tempo, ficou claro que o mérito era de Mary e que ninguém poderia tirar a sua criatura dela.

Penny Dreadful, para além de uma releitura


Já é sabido que a obra Frankenstein recebeu diversas adaptações ao longo da história, adaptações literárias, em HQs e graphic novels, adaptações cinematográficas etc. Muitas comprometeram-se a recontar a história shelleyana, mas enveredaram-se por outros caminhos que utilizaram caricaturas da criatura e de seu criador. Penny Dreadful, uma série inglesa, nos propõe um novo ponto de vista, que mistura diferentes encontros entre personagens de histórias famosas do século XIX. Benjamin Poore detalha o encontro entre as figuras transpostas: "da vida e morte, da história e ficção – e das versões reimaginadas dessa ficção – encontram-se e polinizam-se".

A proposta da série torna-se mais realista com o que promete. Dentro do universo de Penny Dreadful, as histórias originárias encontram novos caminhos e reflexões. Assim, a série explora diferentes tensões em diversas histórias, como o clássico Drácula e Van Helsing, a maldição do lobisomem, O retrato de Dorian Gray, e a mais importante para esta análise, Frankenstein. A série embebeda-se da era vitoriana e do gótico marcante dessa época. O próprio nome é revelador: penny dreadful era um tipo de literatura muito consumida por ingleses no século XIX, era uma espécie de novela investigativa com crimes sanguinários e sobrenaturais que seguem um cenário tipicamente gótico e urbano. Esse reconto sobrenatural de mortes junto a personagens icônicos do século XIX encaixa-se perfeitamente com o que a série nos apresenta.


Nesse universo sombrio e sanguinário, temos uma recriação do nosso doutor Frankenstein e de sua ou suas possíveis criaturas, dentre elas uma criação única feminina. Nesse encontro de personagens, nos é apresentado um cenário vitoriano que vai sendo afrontado. Com isso, nossas noções sobre a época vão sendo revistas e cria-se uma noção dialética entre passado e presente, principalmente do ponto de vista do gênero. As atribuições do passado ligam-se aos embates do presente e, assim, sob um holofote, os estereótipos femininos das mulheres monstruosas e das mulheres loucas, seu lugar nessa sociedade e a contestação de sua própria sexualidade são esmiuçados e dissecados durante toda a narrativa em uma Londres cinzenta, gótica e, principalmente, shelleyana.

Lily, ou a noiva de Frankenstein


Na narrativa de Mary Shelley encontramos três focos narrativos, Walton, Victor e a Criatura. A história nos é apresentada por partes e por diferentes pontos de vista. Victor nos guia através de suas rememorações da infância, detalhando a sua configuração familiar, o que o levou à ciência e todo o seu caminho até a criação de seu monstro. Cada passo é contado, até a chegada à sua ruína da criação, um criador que sente repulsa daquilo que criou e, por não aguentar olhar para a face da monstruosidade que gerou, a abandona.

"Meu prazer era investigar suas causas. O mundo, para mim, era um segredo que eu desejava desvendar. Curiosidade, determinação em descobrir as leis ocultas da natureza, contentamento próximo do êxtase, tudo isso – à medida que se desenvolvia em mim – constituiu as primeiras sensações de que tenho lembrança.”

Em Penny Dreadful, nossa apresentação a Victor se dá de forma diferente, abrupta e como um quebra-cabeças com peças faltando. Inicialmente, não temos um fio condutor de sua infância até sua criação, nos deparamos com um doutor em um ambiente precário de Londres, um doutor gentil com uma criatura também gentil – que descobrimos, mais à frente, se chamar Proteu. Esse doutor, em um primeiro momento tão diferente do que somos acostumados na narrativa de Mary Shelley, ensina os primeiros passos ao seu filho recém-nascido. Ele tem uma espécie de afeto por aquele morto-vivo não monstruoso em aparência. Em alguns minutos de calmaria surge a perturbação, o coração de Proteu é arrancado pelas mãos pálidas e frias de uma segunda criatura, que, no caso, é a nossa Criatura original, a criatura monstruosa com cicatrizes, o retrato perfeito de um primeiro trabalho inexperiente, um trabalho de teste.


Assim, concebemos nossa amável Criatura mesmo em seu momento de violência. A Criatura persegue seu criador em um frenesi como o do livro, ela culpa e odeia seu mestre, seu mestre a odeia e a nega, mas ambos são imagens de si mesmos, são perfeitos espelhos distorcidos. É nesse confronto que se inicia o que o Victor literário negou a seu monstro, a construção de uma noiva, uma companheira feita de partes de um corpo morto.

Do outro lado da cidade, conhecemos Brona Croft, uma prostitua com tuberculose que espera a morte, mas encontra amor em Ethan Chandler, um dos outros focos da série. Brona, que vivia às margens dessa sociedade londrina, começa a ter acesso, através de seu romance, a ambientes de classe. Ela vai ao teatro e desfila de braços dados com Ethan, nosso outro protagonista, que coincidentemente é amigo do doutor Frankenstein. Ao fim da primeira temporada, as ameaças da Criatura feitas a Victor para que este crie uma companheira semelhante a ele, outra monstruosidade, intensificam-se e, diferentemente do livro, Victor cede às investidas de seu monstro e vai até o fim em sua próxima criação.

No que parecem ser os últimos dias de Brona, Victor Frankenstein é chamado por Ethan para cuidar de sua amada, para tentar curá-la, mas é pelas mãos do doutor que Brona Croft é sufocada até a morte em seu leito. Dessa forma, ela se tornaria o novo projeto de Victor, a futura noiva de Frankenstein: Lily Frankenstein.

Com uma nova temporada, a personagem renasce, não mais Brona, mas Lily. Nem na morte, em seu estado de putrefação mais profundo, seu corpo e seu sexo encontraram a libertação com que tanto ela sonhava. Enquanto prostituta, atendia aos homens que queriam lambuzar-se nela sem o menor pudor, e enquanto criatura devia atender ao seu criador. Era agora uma jovem pura do interior que sofreu um acidente e perdeu a memória, prima de Victor e noiva da Criatura original que passou a autodenominar-se John Clare, um poeta bucólico inglês.


Lily se incomoda desde os primeiros momentos. Coberta em sedas, é obrigada a usar saltos, suas reações não são naturais. Lily não nasceu nessa sociedade, ela surgiu e foi arrancada da terra, por isso, através de uma inocência fingida, ela questiona os padrões e exigências dessa sociedade inglesa tão calcada no jogo das etiquetas. Ao passo que Brona era rejeitada da sociedade pelo seu ofício pouco respeitável e ignorava as regras sociais por ser ignorada, Lily é crua, tão pura quanto o nome calculadamente escolhido por seu criador. Ela é, aparentemente, maleável nas mãos de Victor, quase um fantoche com falas ensaiadas e olhares de reprovação de seu primo.

A história é um misto de duplos, o doutor se apaixona pela própria imagem ao perceber que se apaixonou por Lily, uma invenção de si mesmo, um papel perfeitamente escrito por ele. Victor Frankenstein é o mesmo criador e cientista de Mary Shelley, ambos buscam experienciar a ambição e o gozo de terem criado sozinhos uma criatura que parecia tão perfeita e tão montada. Em uma espécie de profanação, Victor se apaixona por sua filha e por si mesmo. A relação sexual que se desenvolve entre criador e criatura traz algo de puro e bizarro, as partes de um corpo que, montadas por ele, o satisfazem de todas as formas, inclusive sexualmente.

O Victor Frankenstein de Penny Dreadful parece criar uma versão da Elizabeth shelleyana, uma mulher pura do campo que sente prazer em servir, que é contida em suas palavras e delicada em seus gestos. Mas é durante um baile na casa de Dorian Gray que o espectador começa a perceber a rachadura na fachada de pureza, e dali surge uma mistura do que estava morto, Brona, com o que ganhou vida, Lily.

Quando Victor a leva para o mundo real, ele teme que sua criatura, a criatura criada só para si, possa encantar-se com o que é de fora, ele teme que essa criação abandone o criador por livre e espontânea vontade. É nas pequenas frivolidades, na dança em um baile, no toque na taça de champanhe, que Lily deixa mostrar as próprias vontades e desgarra-se de seu mestre.


O encontro entre essas personagens transgressoras, Dorian e Lily, traz para o espectador algo monstruoso. A monstruosidade da imortalidade de Dorian e a monstruosidade feminina de Lily trazem o prenúncio de um juízo final. Assim, de sua pequena prisão ao centro de Londres, Lily renasce como Brona e decide ter uma noite com um homem qualquer que encontrou em um bar. A noiva de Frankenstein liberta-se no ápice do prazer sexual, vinga-se do próprio passado e mata com um olhar curioso e um sorriso aquele que a violou por tanto tempo, o controle e o poder masculino sobre o seu corpo.
“Você é um menino muito tolo. Isso é o que eu gosto em você. Homens devem sempre permanecer meninos em seu coração… cheio de jogos infantis com cobras e escadas e cabra-cega. É triste que os meninos sintam que devem crescer. Agora você nunca irá crescer."

A personagem da doçura é enforcada por Lily, ela é ela mesma, monstruosa. A noiva de Frankenstein tem o desejo de consumir o mundo, os homens. Ela tenta convencer a sua coisa morta-viva, a nossa Criatura original, a destruir a humanidade, uma espécie tão inferior a ela própria. O medo do doutor literário de Mary Shelley torna-se concreto em Penny Dreadful, o pavor de que a criatura fêmea junto à criatura macho dominasse esse mundo, o medo de que criasse uma mulher sem os princípios e amarras de seu século. Pois a perversidade é sempre feminina, a Eva que comeu o fruto e a Lily que dá o primeiro passo de emancipação feminina. Essa anti-heroína, tão perfeita em aparência, cria seu próprio manifesto diante da criatura horrenda que é pura em coração. Lily desperta e descobre a si mesma e se posiciona não mais como um objeto de disputa entre dois homens, mas como conquistadora, superior, uma criatura tão bela em toda sua monstruosidade.

Lily: [Lily joga o Sr. Clare no chão enquanto os dois ofegam] Nunca mais eu vou me ajoelhar para qualquer homem. Agora eles devem se ajoelhar para mim. Como você faz, Monstro. Meu Monstro. Meu lindo cadáver. Como ele tem sido esperto, nosso criador. Mas nosso pequeno deus não gerou anjos... mas demônios. Você e eu.

Lily ainda tem um caminho, mas a sua profanação ao seu criador já foi feita, ela já abandonou a Criatura que tentou domesticá-la e subjugá-la. Lily e Brona não pertencem a ninguém. Ela utiliza os homens como uma ferramenta e encontra um recurso em Dorian Gray para, enfim, pôr seu plano em prática, para libertar mulheres vítimas do mesmo poderio masculino que a foi imposta. As prostitutas são o seu exército, e tudo o que deseja é apenas a doce liberdade.

“Nós somos os conquistadores. Somos o sangue puro. Nós somos aço e tendões. Nós somos os próximos 1000 anos. Nós somos os mortos."

Referências





Arte em destaque: Caroline Cecin 

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