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Frankenstein: vegetarianismo e feminismo na Criatura de Mary Shelley

Ao ler Frankenstein é totalmente perceptível o preceito feminista presente na obra que fala sobre abandono e empatia. Mary Wollstonecraft Godwin, que mais tarde se tornou Mary Shelley, nascida em 1797, era filha de William Godwin, um importante filósofo, jornalista e escritor anarquista de sua época, e de Mary Wollstonecraft, filósofa e escritora feminista. 

Não é de se espantar que Mary Shelley tenha crescido e escrito uma história tão aterradora, cujo gótico se faz profundamente enraizado, trazendo à tona diversas críticas sociais. Apesar disso, para alguns leitores, ao longo dos dois últimos séculos, uma dessas críticas não se fez tão perceptível assim: acaba passando despercebido o teor vegetariano que a história possui. 

Em 1814, o romance de Mary e Percy Shelley começa, mesmo este sendo casado. Mary não se importava com o julgamento e desprezo que receberia da sociedade por isso. Mesmo com tão pouca idade, se julgou forte o suficiente para tal. Continuou o relacionamento com o jovem escritor e, no mesmo ano, fugiram da Inglaterra para viajar pela Europa. 

No verão de 1816, ambos foram para Suíça e se tornaram vizinhos de Lord Byron, que sempre os convidava para passar tempo com ele, já que se agradava bastante da companhia de Percy. Porém, a presença de Mary era ignorada, sendo uma mera espectadora das conversas que ali aconteciam. Na introdução à edição standard de Frankenstein ou O Prometeu moderno, publicada em 1831, Mary conta como começou a pensar na história, e diz que seu companheiro a incentivava muito para que produzisse qualquer coisa digna de nota, mas as viagens e os cuidados que a família requeria tomavam muito tempo dela.

Mary Shelley

Contudo, começou a escrever Frankenstein ainda no referido ano. Tudo começou com um sonho que a autora teve após ouvir uma conversa entre Percy e Byron sobre Charles Darwin, seus experimentos e o galvanismo. Além disso, Lord Byron havia lançado um desafio para seus convidados, Percy, Mary e John William Polidori, que consistia em escrever uma história sobre fantasmas. Tendo o sonho e o desafio em mãos, Mary escreveu sua história, cuja primeira publicação da foi em 1818, anonimamente. 

O vegetarianismo na Inglaterra do século XIX

Ao contrário do que se pensa, o vegetarianismo não é algo tão recente. Desde a antiguidade clássica já havia um pensamento a respeito de uma alimentação saudável à base de plantas, o ideal de uma alimentação sem carne pautado numa questão moral e ética. 

De acordo com James Whorton, entende-se por vegetarianismo a prática voluntária de abstenção de carne, com base em considerações religiosas, espirituais, éticas, de saúde ou ambientais. Importantes personalidades da história, como Leonardo Da Vinci, Nikola Tesla e Liev Tolstói, eram adeptos de uma dieta sem carne em seus pratos, por ideais morais. 

No século XIX, especificamente, houve uma grande produção de textos voltada para a defesa do vegetarianismo e da empatia para com os animais. Autores como John Frank Newton, com The Return to Nature; or, A Defense of the Vegetable Regimen (O retorno à natureza; ou Uma defesa do regime vegetariano), Joseph Ritson, com An Essay on Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, seu editor, Richard Phillips, e Percy Shelley, com A Vindication of Natural Diet, saíram em defesa do que acreditavam. Mary Shelley teve a oportunidade de estar em contato com todos esses autores através de seu pai.

Percy Shelley

É compreensível que o vegetarianismo seja uma pauta comum e bem relacionada a esse momento. De acordo com Henry Salt, considerado pioneiro na luta pelos direitos dos animais, foi a partir de Jean-Jacques Rousseau "que o vegetarianismo começou a se declarar um sistema, um argumento fundamentado contra a alimentação baseada na carne".

Historicamente, estamos falando de uma Inglaterra em meio a Revolução Industrial durante a Era Vitoriana. Nesse momento, o país se tornou o principal ponto do vegetarianismo no Ocidente. Em 1847, em Ramsgate, localizada no condado de Kent, foi fundada a primeira sociedade vegetariana que se tem datada e registrada. O movimento só crescia e ganhava cada vez mais adeptos com o passar dos anos.

A Criatura e o vegetarianismo

"Se você consentir, nem você nem nenhum outro ser humano nos verá novamente: eu iria às vastas florestas selvagens da América do Sul. Minha comida não é a do homem; não destruo a ovelha e o cabrito para saciar meu apetite; bolotas e amoras me dão nutrição suficiente. Minha companheira deve ser da mesma natureza que eu, e ficará satisfeita com o mesmo sustento. Faremos nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós e sobre o homem, e vamos colher nosso alimento."

(Frankenstein)

Muito se fala sobre A Vindication of Natural Diet, publicado por Percy Shelley em 1813, mas pouco se menciona a natureza vegetariana da Criatura em Frankenstein e o próprio fato de Mary ter sido adepta do vegetarianismo pautado em um pensamento ético. Não que o trabalho de Percy seja irrelevante perto do que Mary propôs, pelo contrário, mas não se pode negar que o teor feminista-vegetariano foi muito deixado de lado ao longo dos anos quando se trata de Frankenstein.

Sendo a primeira obra de ficção cientifica da literatura, o livro nos apresenta a criação de um ser pensante, através do galvanismo, semelhante ao ser humano, mas não igual. Possui braços, pernas, ombros, pescoço, pés e mãos, um cérebro pensante, toda a conjuntura que compõe um ser humano, porém, em matéria, este não é humano, se criou humano, pois não nasceu como um, apenas é Criatura. 

Essa criação espelha o que se encontra no livro de Gênesis, quando Deus criou o homem à sua imagem. Tal comparação fica ainda mais evidente quando a Criatura vai ao seu criador e lhe pede uma companheira, para que esta seja sua igual e, assim como no paraíso, eles não se alimentariam de animais, apenas do que a Terra é capaz de oferecer. Em Gênesis (capítulo 2, verso 23), Adão se alegra ao receber uma companheira que é igual a ele, pois se sentia muito sozinho no Éden.

Os vegetarianos dessa época acreditavam que, no paraíso, Adão e Eva não ingeriam carne alguma, e o ato de comer carne foi uma consequência do pecado, talvez a maior consequência deste, levando o homem mais rápido à morte, uma vez que a ideia da ingestão de carne estava intimamente ligada a causas mortis.

Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor.

(Romanos 6:23)

Mary Shelley, ao fazer do "monstro" um ser vegetariano, que inclui os animais em seu código moral, demonstra a inclinação dele à bondade e sua inerente incapacidade de ferir seres vivos. Tornar a Criatura vegetariana serviu para reforçar a simpatia, baseada em uma empatia construída ao longo da narrativa. Contudo, a crítica vegetariana da autora presente nessa obra é clara. 

A primeira edição de Frankenstein

A Criatura oferece aos animais aquilo que sempre buscou na sociedade: empatia e justiça. Visto que não recebeu o que almejava, mesmo depois de demonstrar de forma sincera e honesta suas puras e bondosas intenções, percebeu que o ser humano se enxerga, unicamente, como o centro de tudo, cuja moralidade não se estende a outras criaturas.

"Você não chamaria de assassinato se pudesse me atirar numa daquelas fendas de gelo e destruir a minha carcaça, trabalho de suas próprias mãos."

(Frankenstein)

O antropocentrismo fez com que o homem enxergasse somente a si como ser digno de empatia e respeito, excluindo quaisquer outros seres vivos do seu código moral e de ética. Mas o crescente movimento vegetariano do século XIX lutava contra isso, buscando expandir a moralidade àqueles que não eram considerados dignos, animais humanos ou não-humanos. 

Como Carol J. Adams pontua, Mary resgata Rousseau algumas vezes durante a narrativa da Criatura. Em suas Confissões, Rousseau escreveu: 

“Não conheço uma alimentação melhor que uma refeição frugal. Com leite, ovos, ervas, queijo, pão preto e um vinho razoável pode-se sempre estar certo de me agradar.”

Quando a Criatura encontra comida, em determinado momento da história, sua fala é uma paráfrase da refeição favorita de Rousseau: 

“Devorei vorazmente as sobras do café da manhã do pastor, que consistiam em pão, queijo, leite e vinho; do último, entretanto, eu não gostei.”

O teor feminista em Frankenstein 

Frankenstein funcionou como uma espécie de código que denunciou o descaso com as mulheres, animais e todos aqueles que se encontram abandonados pelo sistema do patriarcado. O livro em si denota as experiências de Mary como mulher e vegetariana na sociedade do século XIX. 

Filha de uma filósofa e escritora feminista, Mary Shelley trouxe à sua obra seu olhar crítico sobre questões feministas, sendo o enfoque principal o papel de invisibilidade dado às mulheres dentro de uma sociedade patriarcal. A Criatura era invisível e ignorada pelos outros. Sua dor não era levada em consideração. Seus medos e anseios não eram cuidados. Ela se sentiu traída e abandonada diversas vezes, e isso foi motivo de revolta. 

"Toda alegria era apenas um escárnio que insultava minha desolação e me fazia sentir mais dolorosamente que eu não havia sido feito para desfrutar do prazer."

(Frankenstein)

Ao perceber qual era a condição e posição da mulher na sociedade, Mary deu vazão a sua indignação através de sua obra. Ser uma mera espectadora das conversas que aconteciam entre Percy e Lord Byron trouxe à autora a própria raiva da Criatura quando se sentiu excluída. Mesmo tendo encontrado em sua história, de forma consciente ou não, uma forma de denunciar descaradamente essa opressão, Mary foi silenciada.

O forte discurso da Criatura, que trouxe uma fala não hesitante ou comedida, se tornando a voz de mulheres que puderam ser empáticas com este por se enxergarem ignoradas também, foi silenciado. 

"Mas, meu sentimento não será de submissão da escravidão abjeta."

(Frankenstein)

E, realmente, o sentimento não foi. Mary não abaixou a cabeça para um sistema que tanto lhe exigia e pouco lhe oferecia. Foi dona de si e seu destino. Encontrou o amor, a tristeza profunda da perda, experimentou a sensação de ser abandonada e excluída, publicou seu livro reivindicando seu título e faleceu em 1851, em Londres, aos 53 anos, vítima de um tumor no cérebro. Deixou para trás um legado de escritos e uma obra atemporal que continua a impressionar leitores pelo mundo todo. 

Referências



Arte em destaque: Caroline Cecin

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