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A origem do mal relacionada à figura da mulher


Desde o alvorecer da humanidade, a figura da mulher parece estar diretamente relacionada ao surgimento do mal no mundo. Ao olhar para a tradição oral dos gregos e a Bíblia no cristianismo, uma coisa é clara: nasce a primeira mulher, nasce também o mal.

Seja pela curiosidade de Pandora ao abrir a caixa que continha os males da Terra, ou a desobediência de Eva para com Deus ao morder o fruto proibido e oferecê-lo a Adão, fica evidente que a mulher dos saberes antigos é a grande responsável pela miséria humana. Não apenas isso, é possível perceber que várias criaturas folclóricas e mitológicas estão relacionadas a essa ideia da mulher imoral e ao maligno, uma vez que essas personagens não atendem aos critérios de feminilidade impostos pela sociedade patriarcal vigente na maioria dos grupos sociais.

O que se sabe é que por muito tempo a face da mulher também foi considerada a face do pecado, da dissimulação e da manipulação, e que esses conceitos estão tão arraigados à sociedade atual que é fácil não perceber a misoginia neles.

Eva, Pandora e a maldição da primeira mulher 


De acordo com a Bíblia Sagrada, Deus criou o céu e a terra, as plantas, os animais, e por fim o homem, que foi feito à sua imagem e semelhança.

O primeiro homem foi chamado Adão, e vendo que ele estava sozinho, Deus criou a mulher – Eva – a partir de sua costela, para que fosse sua companheira no paraíso. A história do fruto proibido é conhecida por todos, mas vale lembrar: no jardim do Éden, o homem e a mulher poderiam comer de todos os frutos, menos daquele da Árvore da Ciência do Bem e do Mal.

Entretanto Eva desobedeceu a Deus e foi enganada pela serpente, sendo convencida por ela a comer o fruto que supostamente abriria seus olhos e a tornaria semelhante ao Criador. Eva compartilhou o alimento com Adão, que a partir desse momento também passou a compartilhar do seu pecado.

“Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e ­o deu a seu ma­rido, que comeu também.”

(Gênesis 3:6)

Após a queda, Adão e Eva foram expulsos do paraíso. A Adão foi dado o castigo de precisar trabalhar na terra por toda a vida a fim de conseguir alimento, enquanto Eva foi castigada com as dores do parto e o desejo de estar sempre ao lado do marido, que a dominaria.

“E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.”

(1º Timóteo 2:14)

Logo, Eva foi a responsável pelo pecado original na Escritura Sagrada, a primeira a ceder ao mal e ainda levar o homem pelo mesmo caminho. Por seu erro, a humanidade foi contaminada pelo pecado.

Assim como os cristãos, os gregos antigos também tinham suas crenças a respeito do surgimento do homem e da primeira mulher. Segundo algumas versões do mito, o titã Prometeu criou os homens a partir do barro. Apaixonado por sua criação e ao mesmo tempo sentido pela fragilidade dos humanos em comparação às outras criaturas, o titã roubou o fogo da oficina do deus Hefesto e o deu de presente aos mortais, para que eles também pudessem usufruir desse bem na luta pela vida.

Furioso pela traição de Prometeu, Zeus o acorrentou a uma rocha e ordenou que uma águia comesse seu fígado. O órgão, entretanto, se regenerava durante a noite e era devorado outra vez ao raiar do dia em um ciclo de tormento eterno. Não satisfeito, o rei dos deuses decidiu punir a humanidade através da criação da primeira mulher mortal.

Pandora foi criada por Hefesto a mando de Zeus. Após seu nascimento, ela foi presenteada pelos deuses. Afrodite lhe concedeu beleza; Hera, curiosidade; Atena, a arte de tecer; e Hermes, por sua vez, garantiu a Pandora a capacidade de mentir e manipular.

“Então, o mensageiro matador de Argos fez em seu peito
mentiras, palavras sedutoras e um caráter fingido,
por vontade de Zeus que grave troveja;
assim o arauto dos deuses nela colocou linguagem,
e chamou essa mulher
Pandora, porque todos os que têm moradas olímpias
deram essa dádiva, desgraça para os homens que vivem de pão.”

(Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias)

Pandora, então, foi oferecida como noiva a Epimeteu, irmão de Prometeu, que não levou a sério o aviso do irmão sobre jamais aceitar qualquer dádiva vinda dos deuses. Encantando pela beleza de Pandora, Epimeteu se casou com ela, sem saber que a mulher por quem estava fascinado não passava de uma peça nas mãos dos deuses.

Pandora's box, por Charles Edward Perugini

Antes de se casar com Epimeteu, Pandora recebeu uma caixa (ou uma jarra, segundo outras versões do mito) de Zeus, que a aconselhou a jamais abri-la. Mas após seu casamento e tomada pela curiosidade, Pandora abriu o lacre. Antes que se desse conta, todo tipo de mal se espalhou pela humanidade. A miséria, a guerra, a discórdia, a doença e a inveja, todas as desgraças do mundo saíram da caixa devido à curiosidade de Pandora. Apenas a esperança permaneceu dentro do objeto, uma pequena consolação à raça humana pelos problemas que passariam pelo erro de Pandora.

De várias formas, as narrativas de Eva e Pandora se entrelaçam. Em primeiro lugar, conseguimos perceber que a existência da mulher parece ser dependente da existência do homem.

Eva foi criada a partir da costela de Adão para ser sua companheira no Éden. Pandora, por sua vez, surgiu quando a raça humana era composta apenas por figuras do sexo masculino, sendo criada por Zeus como castigo para os detestáveis mortais de Prometeu.

Além disso, em ambas as tradições, as primeiras mulheres trazem com elas a condenação de um mundo anteriormente bom. Tanto Pandora quanto Eva são levadas pela curiosidade e ambição, e, por seus erros, o mundo é invadido pelo mal. Se Eva não comesse a maçã, o pecado não existiria; se Pandora não fosse curiosa, os espíritos maus nunca teriam saído daquela caixa.

Nesse sentido, é visível como o mundo ocidental carregou por séculos a ideia da mulher como culpada pelas desgraças humanas. Mulheres passaram a ser subjugadas por serem temidas, uma vez que as primeiras histórias a respeito do surgimento delas capturam a imagem de um ser que esconde a maldade e a dissimulação por trás de uma fachada de graça e beleza.

A história não foi justa com Pandora e Eva, muito menos com as mulheres que vieram depois delas.

Figuras mitológicas e o sexo maligno 


Tomando uma visão mais ampla, fica em evidência como muitas figuras femininas na mitologia estão diretamente ligadas ao macabro justamente por seu sexo.

A figura da sereia, por exemplo, é interessante de se observar. Na maioria dos mitos, sereias são seres belos que atraem marinheiros para o mar com o seu canto. Uma vez que os capturam em sua armadilha, elas se transformam em monstros horríveis prontos para matar. É possível perceber como a beleza e a sedução são usadas na figura da sereia, além de como essas supostas qualidades mascaram um monstro que se esconde abaixo da superfície.

As bruxas, por outro lado, são caracterizadas como seres grotescos por irem contra essa ideia de feminilidade. Nas histórias e na vida real, mulheres que eram acusadas de praticar magia acabavam sendo ligadas imediatamente ao maligno. Um homem, por outro lado, era visto como feiticeiro, alquimista, ou simplesmente alguém que buscava respostas através de meios não tão convencionais.

Da mesma forma, as práticas sexuais – que durante toda a história da humanidade foram restritas ao homem e vistas como vergonhosas para a mulher – são usadas para criar esses seres folclóricos assustadores e marcados pelo pecado.

Na mitologia grega, Medusa era uma mulher bela que, ao ter relações com Poseidon no templo de Atena, foi amaldiçoada pela deusa e teve seus cabelos transformados em serpentes. Medusa foi condenada a viver sozinha, uma vez que apenas seu olhar era capaz de transformar qualquer ser vivo em pedra. Ela era considerada um monstro por toda a região da Grécia e, de tempos em tempos, heróis gregos tentavam alcançar a glória através da morte dela. Vale lembrar que, ao que tudo indica, Medusa só atacava aqueles que tentavam assassiná-la.

A figura de Poseidon, por outro lado, passou como um papel secundário em toda a história, por mais que ele levasse a mesma culpa de Medusa ao profanar o templo de Atena.

Medusa, por Peter Paul Rubens (1618)

Voltando os olhos para o folclore brasileiro, a Mula Sem-Cabeça seria uma mulher amaldiçoada por manter relações com sacerdotes. Transformada em um cavalo com chamas saindo do pescoço, essa alma condenada correria pela noite em busca de vítimas nas estradas desertas. Trazida ao Brasil pelos portugueses, a lenda da Mula Sem-Cabeça possuía uma forte moral religiosa, condenando a prática sexual às mulheres antes do casamento, sobretudo com membros da Igreja.

Não é preciso mencionar que o padre em questão, aquele que prestou votos para exercer seu papel como pregador da Palavra de Deus, não recebe nenhuma condenação pelo pecado cometido.

Outra figura feminina mitológica muito interessante de se observar nessa questão de “mulher maligna”, é Helena de Tróia.

Helena, em Ilíada, de Homero, é descrita como a mulher mais bonita da Terra. Sua beleza, entretanto, traz consigo uma guerra de dez anos e milhares de mortes de gregos e troianos ao longo do caminho. Helena foi vista como um troféu a ser conquistado e também motivo de desgraça para aqueles que lutaram para mantê-la e supostamente resgatá-la.

Assim, fica evidente como a beleza, a sedução e a feminilidade, uma vez exacerbadas na figura da mulher, parecem esconder um interior maléfico e trazem consigo desgraças para o homem, como no caso de Pandora, das sereias e também de Helena de Tróia. Ao mesmo tempo, a ausência dessas características contribui para um ideal da mulher feia, amarga e ligada ao mal, como fica claro no estereótipo da bruxa. Isso quando a combinação mulher mais práticas sexuais não condenam as mesmas a destinos horríveis em muitos mitos do imaginário popular, como, por exemplo, a Medusa no mito grego e a Mula Sem-Cabeça no folclore brasileiro.

Por qualquer ângulo, a mulher acaba sendo condenada e culpada de uma maneira ou de outra. Infelizmente, dizer que isso se limita apenas às histórias de ficção é falso. A misoginia está no papel e no dia a dia, no ódio às mulheres, na exigência por uma aparência e comportamentos perfeitos, mas não tão perfeitos, para que assim ela não seja capaz de esconder um interior macabro.

Eva e Pandora parecem ser as precursoras do mal, mas a verdadeira maldade é perpetuada pelo modo como as mulheres são vistas, julgadas e tratadas todos os dias em todos os lugares desde o início da humanidade.

Referências 



Arte em destaque: Mia Sodré

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