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Por que A Viagem de Chihiro é um clássico?


Não é incomum que A viagem de Chihiro encabece listas de melhores longas-metragens de animação. Este é um feito bem especial, já que trata-se de um filme japonês se sobressaindo em uma área dominada por tantos estúdios estadunidenses importantes, como DreamWorks e o gigante Disney-Pixar. Esse fato é refletido em seu reconhecimento na Academia, já que o longa do diretor Hayao Miyazaki é o único filme que não tem o inglês como língua original a ganhar o Oscar de Melhor Animação desde a criação da categoria, em 2002.

Com uma legião de fãs, A viagem de Chihiro é um filme que conquista pessoas de todas as idades. Mas o que o torna tão especial? A beleza visual do filme, marca registrada do Studio Ghibli, é impossível de ser ignorada, mas também existe algo em sua narrativa que o faz se destacar no mundo das animações – na época em que foi lançado e aclamado e também nos dias atuais, mais de duas décadas depois.

Uma possibilidade de interpretação


Há uma colocação usada repetidamente em conversas sobre o célebre filme de Miyazaki: “muita coisa eu não entendi, mas gostei”. Responder a essa frase pode ser uma forma de entender melhor o funcionamento do filme e compreender o que nele é tão atraente. A primeira pergunta a ser feita é: sobre o que trata A viagem de Chihiro? Uma sinopse muito simplificada seria algo como "uma menina acaba se perdendo em um mundo fantástico e confuso e vive aventuras tentando voltar para casa". No entanto, a jornada de Chihiro vai muito além de uma volta para casa, e algumas passagens do filme demonstram isso de maneira muito sutil.

A história se inicia com Chihiro e seus pais no carro se mudando para uma nova cidade por conta do novo trabalho do pai. Enquanto observa a paisagem pela janela, a menina se depara com diversas estátuas e construções abandonadas e, em determinado momento, pergunta à mãe o que seriam aquelas "casinhas", referindo-se a antigos oratórios japoneses pelos quais a família passa apressadamente na beira da estrada. Essa cena pode ser compreendida como uma apresentação de um dos temas do filme: o esquecimento das antigas tradições em prol de um progresso capitalista.

É importante ter em mente que a cultura japonesa está profundamente vinculada ao xintoísmo, religião anterior ao budismo. Não possuindo nenhum texto sagrado fundador (como a Bíblia ou o Corão), o xintoísmo se caracteriza pela crença em divindades ligadas a espaços naturais – um rio ou uma montanha, por exemplo. Suas práticas religiosas são realizadas pela grande maioria dos habitantes do país em diversas ocasiões, como visitas aos templos espalhados por todo território, comemorações nacionais que envolvem fenômenos naturais (como a chegada de uma nova estação) ou mesmo rituais mais cotidianos. Portanto, o xintoísmo é mais do que uma religião para os japoneses, podendo ser entendido como parte integrante de sua identidade como nação.

Uma das cenas que inicia o conflito da narrativa é aquela em que os pais de Chihiro, após adentrarem um antigo parque abandonado, avistam comida fresca e começam a se servir, mesmo sem ver ninguém por perto. A menina demonstra desconforto com a situação, mas o pai assegura que eles podem comer, uma vez que ele tem dinheiro e cartão de crédito. Chihiro resolve circular um pouco pelo estranho lugar e, quando alertada de que deveria sair dali antes do pôr do sol, vai em busca dos pais para que pudessem retornar. No entanto, ao chegar no lugar onde seus pais estavam, descobre com absoluto horror que estes haviam se transformado em porcos.


Porcos são uma metáfora muito usada ao longo da história para se referir a capitalistas, como acontece em A revolução dos bichos, de George Orwell, ou na música “Pigs”, de Pink Floyd. A transformação dos pais de Chihiro em porcos pode representar como esses personagens acabaram por colocar o dinheiro acima de certas normas morais, uma vez que acreditaram que possuí-lo lhes dava o direito de comer a comida que não havia sido feita para eles e fazê-lo sem a autorização de ninguém – comida esta que, depois, descobrimos pertencer aos seres de um mundo espiritual.

Para conseguir reencontrar seus pais, Chihiro permanece no mundo espiritual, por isso esse é o local mais retratado no filme. As imagens criadas por Miyazaki para representar esse mundo lembram um Japão antigo e/ou nostálgico: a arquitetura tradicional japonesa, presente nas paisagens do filme; a casa de banho, parte importante da cultura do país, onde boa parte da história se passa; as roupas que boa parte dos personagens desse mundo usa, que lembram vestimentas clássicas. Tudo isso contrasta com as primeiras cenas, no “mundo real”, que possui não apenas uma semelhança com o mundo moderno mas também fortes marcas de um mundo ocidentalizado.

Além da caracterização do local, os personagens remetem também à tradição japonesa. Em uma das passagens mais notórias do filme, a casa de banho recebe a visita de um espírito muito fedido e a tarefa de atendê-lo é dada à Chihiro. Em suas tentativas de auxiliá-lo no banho, Chihiro percebe que ele pede ajuda com algo. Tateando-o, ela nota algo estranho em seu corpo, como um espinho. Ao puxar o espinho, com a ajuda de outros trabalhadores da casa de banho, o que começa a sair do espírito é uma série de lixos – primeiro, uma bicicleta, em seguida, eletrodomésticos, garrafas, latas, pedaços de madeira; todos envoltos em lama. Revela-se então que aquele não era um espírito qualquer em busca de um banho, mas sim um antigo deus-rio que se encontrava poluído. A representação de um deus-rio está profundamente ligada à ideia xintoísta de deuses, enquanto a imagem da poluição de um deus retoma também a problemática do capitalismo se impondo sobre a natureza e o sagrado, assim como na cena da transformação dos pais de Chihiro.


De maneira geral, pode-se dizer que a memória é o tema central no filme. Um dos plots da narrativa consiste em Chihiro relembrar seu nome após ter tido que entregá-lo – e, assim, esquecê-lo – à bruxa Yubaba para conseguir trabalhar na casa de banho. Além disso, os conflitos da história são resolvidos a partir da memória: Chihiro não apenas recupera seu nome, sua identidade, como também liberta Haku ao lembrar-se dele. Haku também esquecera seu nome verdadeiro, Kohaku, no entanto, Chihiro relembra seu nome ao perceber que eles já se conheciam no mundo real: aquele menino que a ajudou no mundo dos espíritos era na verdade um rio também, no qual a menina havia caído na infância. Sendo assim, o filme pode ser pensado como uma metáfora para a busca de sua própria identidade a partir do retorno de uma relação ancestral com a natureza – o que, no contexto japonês, tem ainda mais força.

Essa é apenas uma leitura possível. Em Por que ler os clássicos, Italo Calvino define "clássico" como “um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. A viagem de Chihiro é um filme que convida seus espectadores a reassisti-lo, já que a sua riqueza de detalhes e símbolos o faz estar sempre aberto a uma interpretação diferente. A leitura feita aqui não é final, é apenas uma possibilidade. Além disso, ela não dá conta do filme todo, várias questões ficaram de fora: o que representaria o Sem-Face, ou será que a bruxa Zeniba é má como sua gêmea idêntica? Essas e muitas outras são perguntas que permanecem suspensas, para serem respondidas por cada um que for tocado de alguma forma pelo filme.




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Giulia Benincasa
Nasceu em 1999, é carioca e formada em Letras na UFRJ. Ama livros, filmes, praia, música, circo, macarrão e rolês que acabam cedo. Escreve poemas que podem ser encontrados pela Internet e também em seu livro, Ecolalia, que saiu em 2021 pela editora Urutau.

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