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O imaginário alienígena em Além da Imaginação (1959-1964)

The Twilight Zone, ou Além da Imaginação, como é conhecida no Brasil, é uma série estadunidense de 156 episódios distribuídos em 5 temporadas, exibidos pela CBS entre 1959-1964. A série foi criada e escrita majoritariamente por Rod Serling, sendo que os episódios eram interdependentes e trabalhavam majoritariamente gêneros como a ficção científica, o terror e a fantasia. Assuntos como viagem no tempo, dimensões paralelas, invasão alienígena, destruição da vida na Terra, os mistérios da morte e da insanidade e a viagem espacial eram recorrentes, sendo que assuntos militares eram frequentemente mesclados com a temática. Os sentimentos humanos de desespero, loucura, maldade, mesquinharia, arrogância, ganância e sede por poder eram apresentados com frequência como geradores dos problemas. 

Serling serviu, em 1943, como paraquedista do exército estadunidense na Segunda Guerra Mundial nas ilhas do Pacífico lutando contra os japoneses. Essa experiência marcou sua vida para sempre e mostrou-se presente em seus trabalhos posteriores por meio de discussões sobre as contradições das guerras e do poder político. Após seu retorno, Serling atravessou anos conturbados na política mundial já que, depois do término do conflito supracitado, os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas despontavam como potências em disputa por influência e poder bélico durante a Guerra Fria (1945-1990). No que tange especificamente os Estados Unidos, local onde Além da Imaginação foi produzida, conflitos armados como a Guerra do Vietnã (1955-1975) e a Guerra da Coreia (1950-1953), o recrutamento para lutar nos campos de batalhas, o Movimento dos Direitos Civis e os assassinatos de personalidades como Martin Luther King Jr. e o presidente John F. Kennedy foram alguns dos marcos sociais responsáveis por abalar as certezas e seguranças do período. 

Serling trabalhou no rádio e na TV e chegou a escrever roteiros que, por seu acentuado teor político, foram censurados, mas, ainda assim, conseguiu uma oferta da CBS para trabalhar no projeto que originou Além da Imaginação. Sua condição para aceitar a tarefa era de que teria total liberdade para escrever, sem censura, e foi assim que tornou-se produtor executivo, coordenador geral, apresentador e autor da série. Seu contrato previa a obrigatoriedade de escrever 90 dos 156 episódios previstos para as cinco temporadas, marca superada já que ao total escreveu 92, um feito grandioso ao pensarmos que provavelmente Serling trabalhou à exaustão dada a complexidade dos argumentos e ao  período de duração do show.

A série era apresentada na televisão que, apesar de não ser explorada como um produto de grande apelo popular até então, passava por um momento de grande popularização. A rede de TV DuMont Television Network foi a primeira rede de televisão comercial dos Estados Unidos, inaugurada em 1946 e seguida por outras emissoras como CBS, ABC e a NBC. Devido a alguns impasses de ordem política e de organização da estrutura das transmissões, o órgão governamental responsável por regulamentar as emissoras paralisou a abertura de novas redes, o que beneficiou as citadas — CBS, ABC e NBC —, já que a baixa concorrência as permitiu se estruturar e reter grande parte do mercado.  Em 1950, apenas 9% dos lares estadunidenses tinham televisores, em contraste com o final da década, em que a porcentagem alcança os 90%. E é nesse cenário de popularização da TV que Além da Imaginação vai ao ar pela primeira vez em 1959. 

O imaginário alienígena 

Dentre os 156 episódios exibidos na primeira versão de Além da Imaginação, selecionou-se 5 episódios a fim de analisar narrativas de ficção científica em que seres ou planetas extraterrestres são apresentados. Nesse contexto, tais episódios se assemelham com o que denominamos de Fantástico. Essa nomenclatura possui uma diferenciação teórica importante: o Fantástico enquanto gênero literário refere-se a um tipo de literatura em que os personagens e o leitor têm dúvidas e incertezas diante de um fato sobrenatural que supostamente não deveria existir no mundo real, sendo a hesitação o alicerce da narrativa. Já o Fantástico como modo abarca diversos gêneros literários, incluindo ele mesmo como gênero, como a ficção científica, a fantasia, o horror, o terror e o gótico, por exemplo. 

O Fantástico enquanto gênero é resultado do conflito entre os avanços da ciência e a religiosidade, superstições, mitos e lendas do século XIX, assim como a ficção científica, gênero que se consolidava mais adiante, também representa uma ruptura nos conceitos científicos de sua época. O rompimento é capaz de causar medo e hesitação no interlocutor e nos personagens, mas, dessa vez através da ciência ao invés do sobrenatural. Observe que o fio que conectava todas as histórias da série, seu próprio título, a twilight zone, representa esse conceito. Em inglês, essa expressão traduzida ao pé da letra significa "zona do crepúsculo" e sugere situações em que os limites do real e do imaginário, da loucura e da lucidez, do conhecido e do estranho são cruzados, assim como no crepúsculo, momento que não é dia nem noite.

"Você está viajando para outra dimensão. Uma dimensão além da imagem e do som, mas da mente. Uma viagem para uma terra maravilhosa na qual os limites são a imaginação. Sua próxima parada é Além da Imaginação."

(Abertura da segunda temporada.)

Os episódios selecionados, assim como grande parte da série, descrevem narrativas em que a ciência e seu arcabouço é responsável por movimentar as engrenagens principais da história, mas há pouco comprometimento com a verossimilhança científica. É preciso certo avanço tecnológico para tripular naves espaciais e colonizar planetas estrangeiros, mas como isso é feito não é o foco da série. O desenvolvimento humano dos personagens, seus medos, anseios, inseguranças, os dilemas éticos e morais diante de problemas complexos são elementos de maior destaque na obra. 

Por exemplo, no episódio People Are Alike All Over (1960), dois astronautas caem com sua nave em um planeta desconhecido. Um dos astronautas morre enquanto o outro, compelido pela necessidade de buscar ajuda, sai da nave e se depara com extraterrestres com aparência física exatamente como a dele. Os habitantes do planeta se comunicam telepaticamente e são capazes de aprender qualquer língua e cultura através de uma habilidade nata de escanear o cérebro alheio em busca de informações. Por conta disso, os extraterrestres se comunicam em inglês com o astronauta e em pouco tempo compreendem como era sua vida na Terra. Os extraterrestres prometem enterrar seu amigo e consertar a nave do astronauta, que enquanto isso é acomodado em uma casa confortável, exatamente como as da Terra. Inicialmente, o astronauta fica muito satisfeito por ter encontrado seres tão amáveis e gentis, mas sua felicidade dura só até perceber que as portas estão todas trancadas e não há janelas na casa. O episódio conclui-se com o astronauta percebendo que, na verdade, está em uma jaula, como a de um zoológico, em que ele é o espécime observado pelos habitantes do planeta. 

"Criatura terrestre em seu habitat natural"

Já no episódio The Little People (1962) somos apresentados a dois astronautas que pousam a nave em um planeta desconhecido a fim de repará-la e em seguida continuar sua viagem. Um deles, ambicioso e prepotente, encontra uma cidade minúscula em meio ao planeta rochoso, habitada por pessoas menores do que formigas. Os pequeninos possuem uma sociedade aparentemente tão complexa quanto a nossa, com a única diferença de serem minúsculos. Como o astronauta em questão é um gigante diante daqueles homenzinhos, ele decide escravizá-los por meio do medo, caso contrário, serão massacrados por seus pés. Assim a história se desenvolve até o dia em que homens gigantes pousam no planeta e matam o astronauta destruidor. 

A hipótese apresentada nos episódios citados seria possível caso pudéssemos viajar pelo espaço sideral através do avanço científico. Observe que quando People Are Alike All Over foi ao ar, o satélite russo Sputnik 1 já havia sido lançado, em 1957, iniciando a corrida espacial e inaugurando a possibilidade de explorar o espaço sideral. E quando The Little People foi exibido, Yuri Gagarin já era o primeiro homem a sair da Terra em direção ao espaço. Esse cenário factual de exploração foi o pano de fundo para imaginar possíveis cenários e possibilidades que seriam alçadas por meio do desenvolvimento científico. É claro que, antes das datas citadas, fosse no audiovisual ou a literatura, já se havia imaginado a exploração do espaço, mas é importante notar os eventos da época a fim de compreender a força do assunto no contexto apresentado. 

No episódio The Invaders (1961), somos apresentados a uma senhora sem nome interpretada por Agnes Moorehead (a Endora de A Feiticeira). A senhora sem nome é simples, e mora em uma casa de madeira, aparentemente isolada, sem energia elétrica ou água encanada, até o dia em que algo pousa em seu teto. Ao subir no telhado para conferir o que é, percebe se tratar de uma nave espacial, no formato clássico de disco voador, que transportava seres minúsculos que se assemelham a robôs. Essa é, claro, a interpretação inicial do espectador, já que o episódio não possui diálogo — apenas a tradicional narração de Serling no começo e no fim de todo episódio —, portanto, é impossível saber como a personagem reconhece aqueles seres e seu veículo. 

Durante todo o episódio, a mulher tenta destruir/defender-se dos pequeninos, enquanto eles fazem o mesmo. Na cena final, a mulher destrói a nave e descobrimos que ela pertence ao governo estadunidense. Esse plot nos leva a outro possível caminho: a mulher é uma espécie de gigante em um planeta diferente da Terra e os supostos robôs, na verdade, são homens em trajes espaciais em uma missão exploratória. Se no começo do episódio pensávamos que era a Terra que estava sendo invadida por seres de outro planeta, no final concluímos que os seres humanos é que são os invasores. 

Já no episódio To Serve Man (1962), as autoridades mundiais se reúnem em uma solenidade para admitir ao mundo que o planeta Terra foi invadido por seres extraterrestres. Em uma conferência com os líderes de diversos países, um alienígena gigantesco para os padrões humanos, vestindo uma túnica, se apresenta portando um livro de capa preta escrito em sua língua. O ser diz que pretende ajudar a humanidade, pois pode observar que há muitos conflitos e sofrimento na Terra, dificuldades já superadas em seu planeta. Os cientistas humanos aplicam diversos testes no ser, inclusive o detector de mentiras, e afirmam que ele é confiável. Enquanto isso, o livro de capa preta cai nos domínios humanos e é analisado por especialistas que tentam decifrar a língua estrangeira na qual ele foi escrito, mas como se trata de algo completamente novo e sem precedentes na humanidade, a tarefa demora a ser concluída. Durante esse tempo, os extraterrestres ganham a confiança humana e fretam com frequência naves espaciais cheias de homens e mulheres para o seu planeta. Quando os pesquisadores descobriram que aquele livro era na verdade um livro de receitas de como preparar seres humanos para serem consumidos como alimento, já era tarde demais. 

O cenário apresentado a respeito da realidade e das possibilidades, ou seja, do concreto e do imaginável, é posto. A peculiaridade de ser capturado de seu planeta para servir de comida a seres extraterrestres, de ser enjaulado como um animal no zoológico ou de sofrer nas mãos de uma espécie alienígena gigante é a perfeita junção entre a ficção científica e o terror. 

A escritora Ursula K. Le Guin escreveu que a ficção científica descreve o presente e funciona como uma metáfora. Segundo ela, toda ficção é uma metáfora que muda de tempos em tempos, evidentemente influenciada pelas ideias de sua época. Portanto, compreende-se os episódios de Além da Imaginação como uma metáfora do seu tempo que transmitia os medos e anseios sociais de uma época assombrada pela ameaça nuclear e pelos fantasmas de guerras devastadoras, assim como pelo deslumbre e o temor diante de possibilidades apresentadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico. As possibilidades apresentadas nos episódios podem soar extravagantes, mas a verdade é que não sabemos se um dia vivenciaremos esse cenário, fator importante para causar o sentimento de temor.  

“A ficção científica não prevê; descreve. [...] Previsões são o trabalho de profetas, videntes e futurólogos. Não são o trabalho de romancistas [...] O futuro, em ficção, é uma metáfora.”

(Ursula K. Le Guin, 1969)

Essa noção de temor do desconhecido é explorada em foco no episódio The Fear (1964). Uma mulher que vive longe da cidade por temer os problemas que a convivência humana acarreta, recebe um policial em sua casa que investiga uma suposta queixa de perturbação. Ao decorrer do episódio, ambos descobrem indícios de que um gigante rondava a região e que ele era o responsável pelo incêndio. Em certo momento, se deparam com o tal gigante e, ao atirar nele, o policial percebe que tratava-se apenas de um boneco inflável. Em seguida, notam que uma nave espacial minúscula, com seres também pequenos em seu interior, está em rota de fuga, com medo dos gigantes que, sob outra perspectiva, são os seres humanos. O boneco inflável nada mais era do que uma forma de tentar afugentar os humanos, assim como os truques a respeito de sua presença. Ao final do episódio, os personagens discutem que, se seres pequenos visitaram a Terra, o que aconteceria se gigantes de verdade chegassem até aqui? Note que a noção de seres gigantes ou muito pequenos aparece em alguns episódios da temática como maneira de demonstrar que o poder e a superioridade, bem como a subordinação, são substâncias voláteis que podem mudar de estado conforme as condições. 

“O ingrediente principal do medo é o desconhecido.”

(The Fear, episódio 35, temporada 5, Além da Imaginação)

Eventos reais, como o avanço tecnológico e o homem no espaço, são transformados em narrativas de ficção científica ao desafiar as convenções por meio da imaginação infinita de possibilidades. Se ainda hoje sabemos pouco sobre o espaço sideral e possíveis moradores de outros planetas e galáxias, nos anos 1950 e 1960 esse tema evidentemente era motivo ainda maior de curiosidade. O desconhecido é um campo rico para a construção de uma narrativa fantástica e insólita, já que diante dele resta apenas a capacidade humana de conjecturar hipóteses. A série foi responsável por inaugurar vários conceitos que se tornaram comuns no cinema e na televisão do gênero, como os alienígenas que raptam seres humanos para experiências diversas, o disco voador, a intervenção do Estado e do exército diante de um possível ataque extraterrestre, aliens com capacidade intelectual elevada em relação aos homens, dentre outros. O que sabemos com certeza é que o desconhecido e o medo diante de um evento que perturba a rotina e a realidade inspiram os mais diversos sentimentos que estão além da imaginação. 

Referências 




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Victória Haydée
Sul-mato-grossense, cientista social por formação e escritora por vocação. Vampira oitentista fã de new wave.

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