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No covil do monstro: o subconsciente e a sociedade em A Hora do Pesadelo (1984)

Para a tradição do cinema de horror estadunidense, poucas coisas poderiam ser mais assustadoras do que o monstro criado por Wes Craven em A Hora do pesadelo (A Nightmare on Elm Street), filme de 1984. Freddy Krueger (Robert Englund) é o homem com o rosto em carne viva e dedos de lâminas que te persegue enquanto você dorme e te fere no mundo real. Não à toa, ele se tornou uma das figuras mais célebres dessa tradição. Todavia Wes Craven consegue fazer uma obra realmente especial por outros motivos além de Freddy, tendo percebido que há algo que as pessoas temiam mais do que um maníaco imortal: para o público cristão e conservador, a vida sexual dos jovens era um medo muito maior e mais real do que histórias de monstros, sobretudo quando se tratava de mulheres. Nesse sentido, o diretor e roteirista do filme aborda os pesadelos mais profundos de sua sociedade através de imagens marcantes e uma protagonista muito influente para os próximos filmes do gênero. 

As cercas brancas dos quintais adoráveis são hereditárias

Como diz a premissa básica do gênero de filmes slasher, a história se baseia no conflito entre um indivíduo — geralmente uma mulher jovem —  contra o inimigo — geralmente um homem — que persegue as pessoas com armas cortantes (facas, foices, facões, lâminas, serras-elétricas). Vale destacar também que o herói faz parte de um grupo, e os outros não têm a mesma sorte que ele na luta contra o inimigo. Muito provavelmente, os outros personagens não são tão dignos de sobreviver quanto o protagonista: sendo puro e bondoso, o personagem que sobrevive é o completo oposto do vilão. Além disso, o termo final girl é cunhado em um estudo de Carol J. Clover intitulado Homens, mulheres e motosserras: gênero no cinema de horror moderno (Men, Women, and Chain Saws: Gender in the Modern Horror Film), designando-o para as personagens femininas que sobrevivem. 

Vejamos o exemplo de Halloween, de John Carpenter: a babá, Laurie Strode (Jamie Lee-Curtis) é uma jovem pura, esforçada e obediente, e Michael Myers (interpretado por vários atores) é um maníaco que parece estar sempre à frente de todos, sobrevivendo a qualquer ataque. As vítimas de Myers são jovens que têm relações sexuais livremente, ato passível de uma punição para ele. Assim, embora Michael seja um vilão, ele segue a mesma régua moral que a perspectiva do filme, fazendo crer que Laura é uma pessoa melhor que as outras personagens porque ela não comete atos libidinosos ou ilegais. Isso reverbera também em sua sorte com o vilão: os atos estúpidos dos personagens contra Myers contrastam com a ligeireza e astúcia de Laurie. Dessa forma, as personagens conhecidas como final girls são uma representação interessante de mulheres em filmes de terror, pois, apesar das vítimas desses filmes serem mulheres, são sempre mulheres que, contraditoriamente, os derrotam. 

Esse exemplo ajuda-nos a entender a lógica por trás da audiência dos filmes de slasher e como esse padrão é satirizado no filme de Craven. As histórias — sejam na literatura, no teatro ou no cinema — sempre foram usadas como meio de entender a realidade, mas, não raramente, foram interpretadas de modo a doutrinar um grupo. O dogma ao qual nos referimos ao tratar de filmes de terror da década de 1980 é o dogma cristão e conservador dos Estados Unidos, pois, como na maior parte do ocidente, é a moral dominante. A Inquisição é um exemplo do uso extremo do poder político para a imposição de uma moral. O conservadorismo da direita política estadunidense certamente também tomou, ao longo das décadas, medidas para a preservação e disseminação desses valores. Assim, o assassino fantasiado dos filmes de slasher passeando pelas vizinhanças pacíficas dos Estados Unidos é uma reverberação na arte da paranoia coletiva dos centros urbanos sobre as consequências de não se seguir essa lei. Nesse sentido, quanto mais as pessoas seguirem a moral estabelecida pela maioria, mais harmônica será a vida nos subúrbios e menos haverá a possibilidade de existir um desses vilões. De modo perspicaz, o título original faz referência, inclusive, à rua em que se passa o longa. O pesadelo é na Elm Street. Mas essa rua, que existe de fato, serve como exemplo das vizinhanças estadunidenses da década de 1980. A Elm Street é uma rua qualquer, e, por isso mesmo, é todas as ruas. 

Parece, portanto, ser um dever de cada geração cuidar da geração mais nova para que os valores permaneçam, considerando que a arte não só se adequa às necessidades de sua época, como também pode ser manipulada para o controle de determinados grupos, por meio da educação ou simplesmente através de doutrinação. Toda geração possui suas próprias justificativas para ser reacionária, fazendo o conservadorismo parecer sempre uma ideologia em extinção para que assim ele possa continuar forte. Dessa forma, a tragédia maior das narrativas de terror é o fato de que um inimigo sobre-humano possa agir sobre os jovens que não seguem a moral. Desse modo, a lógica cristã também está embutida na ação desse grupo social, pois segue a mesma ideia de Deus como um ser que pune os pecadores, presente sobretudo no Antigo Testamento da Bíblia. O medo, força-motriz dos slashers, combina muito bem com a estética cristã, e poucos captaram isso como Wes Craven. É o medo que guia todas essas histórias, seja para gerar angústia ou gratidão.

Sexo, drogas e uma oração

É evidente, agora, que um lugar-tipo dos filmes de terror é a punição dos jovens que não seguem os princípios cristãos. Mas isso se agrava quando a jovem em questão é uma garota. Em A hora do pesadelo, a primeira e última vítima de Freddy é uma mulher, seguindo o padrão desses filmes. Contudo, como veremos adiante, a presença feminina nos filmes do diretor extrapolam a representação clássica e se revela um pouco transgressiva. Ainda que alguns críticos não tenham reconhecido A hora do pesadelo como um roteiro particularmente inovador, consideramos que o subconsciente tem um papel fundamental no filme, adicionando camadas ímpares às suas personagens e à resolução dos conflitos.

A começar pela primeira morte, Tina Gray (Amanda Wyss), amiga de Nancy Thompson (Heather Langenkamp), morre após transar com o namorado quando os pais não estão em casa. Enquanto a relação acontece, no segundo andar, Nancy e seu namorado, Glen Lantz (Johnny Depp), tentam dormir. Nancy parece não ter a menor preocupação com sexo no momento, ao contrário de seu namorado, que ao ouvir as vozes do casal murmura consigo que odeia moralidade. Os ensinamentos dos pais, portanto, aparecem de modo direto através dessa fala, e quase que como a aparição de um espírito, esses olhos invisíveis parecem vigiá-los o tempo todo. Seria Freddy à espreita? Seria Deus esperando um deslize? De uma forma ou outra, a relação sexual traz consequências para aqueles que praticaram e para aqueles que obedeceram à lei da moralidade. Aos gritos, Tina Gray é extirpada por uma força que só existe em seus sonhos mais profundos.

Até esse momento, o filme parece de fato se comportar como um slasher comum: a pobre garota é perfurada inúmeras vezes enquanto se debate na cama e se arrasta por todo o quarto. Porém, há uma primeira diferença entre esse filme e os demais: Freddy não é apenas um psicopata humano. Freddy já foi esse tipo de ameaça, mas hoje é uma criatura que persegue suas vítimas nos pesadelos, causando ferimentos no mundo físico. Ao passo que a ameaça é metafísica, outros embates são possíveis. Por exemplo, a fé e o medo ganham um espaço maior para debate na narrativa, como acontece com O Exorcista (The Exorcist), filme de William Friedkin. Nesse caso, até o covil do vilão se transforma, pois não é um lugar real — uma vez que esse foi destruído no incêndio que matou Freddy —, mas os pesadelos das personagens. 

Assim, as desvantagens das personagens contra ele também não são as mesmas: ao contrário dos outros vilões que são superiores às mulheres por serem homens, Freddy é superior porque tem o poder de invadir o seu íntimo mais profundo: sua mente. Nesse sentido, vale citar que a esfera sexual é sempre abordada nos slashers, inclusive, o tipo de arma usada pode ser uma referência ao sexo, uma vez que os assassinos são psicopatas obcecados por sexo e perfuram as mulheres que assistiram ter relações ou se despirem. Elementos sexuais são postos como pistas de que o vilão invade a vida íntima e doméstica de suas vítimas. Em A hora do pesadelo, embora isso também ocorra, o modo como Freddy invade a esfera individual é diferente. Ele conhece mais do que seu corpo, ele conhece seus pesadelos. 

E é nos pesadelos que Nancy descobre suas fraquezas e forças. Em certo momento do filme, o crucifixo acima da cama se transforma nas mãos do monstro tentando ultrapassar a parede para pegar a garota. Com o passar dos acontecimentos, Nancy faz uma reza:

“Se eu morrer antes de acordar, peço a Deus para minha alma levar.”

E é essa crença em Deus que faz com que a protagonista dos slashers seja uma final girl. Mas e se não há Deus? E se a protagonista não for apenas um apanhado de estereótipos femininos? A isso Freddy responde aparecendo de rosto inteiro pela primeira vez no filme ao encurralar Nancy em uma rua escura de seus pesadelos e mostrando as garras na frente do distorcido rosto:

“Isto é Deus.”

Os infernos que criamos

Os sonhos, ainda mais que os pesadelos, criam infernos. Isso porque foi o sonho dos pais de ter seus filhos seguros e vingados que criou Freddy Krueger. Os pais fizeram justiça com as próprias mãos, assumindo o papel que tipicamente seria o do vilão. Quando isso acontece, um homem mortal torna-se um inimigo fatal. O fogo usado para queimar Freddy representa o inferno criado por aquela geração. Assim, o inferno, interpretado como algo bom por punir aqueles que fazem o mal, se volta contra os bons cristãos e eterniza Freddy Krueger. Ao queimar, sua punição se transforma em redenção e seu poder de ferir é potencializado.

E como vencer algo invencível? Nancy tenta queimar Freddy também. Ao contrário de outras final girls, Nancy não só tenta sobreviver, como se vingar. Sua relação com sua mãe é — subjetiva e objetivamente — combustível contra o mal que as assola. Outra final girl que passa por isso é Sidney Prescott (Neve Campbell), a protagonista de Pânico (Scream), outra excelente obra de Wes Craven. Nancy se difere de outras representações femininas por diversas razões, algumas já mencionadas, mas sobretudo por sua relação com o mundo: ela tem conflitos com a mãe, mas as duas claramente se amam e tentam se proteger; ela não teme se relacionar com homens, por isso, tenta salvar o ex-namorado de sua amiga, bola um plano com seu namorado e é amiga de seu pai. Enquanto outros filmes colocam a feminilidade e a masculinidade como opostos, sendo a feminilidade sinônimo de fragilidade e a masculinidade, de violência, esse filme mostra Nancy como a adolescente que ela é. Sua personalidade não é afetada em prol do paradigma patriarcal imposto na maioria dos slashers. Não há nenhum drama para ela sobre transar ou não, ou sobre se relacionar com homens. E no fim, ela usa sua imaginação para derrotar Freddy. 

Além de características essenciais como essas, Nancy também se difere devido à perspectiva do filme: ela não é sexualizada, pois as cenas que dão indícios da obsessão sexual de Freddy acontecem usando outros recursos que não sua nudez ou relação sexual. Por exemplo, há uma cena memorável em que ela cai no sono na banheira e as garras aparecem na frente de seu corpo, enquanto suas pernas estão abertas. Mesmo nessa cena, o ataque não chega a acontecer, ficando apenas na sugestão da dor e invasão do privado. 

Assim, Nancy não é apenas a personagem que vence o mal por ter sido pura. No fim, ela não usa as mesmas armas de Freddy, mas retira o seu poder. O encerramento perfeitamente harmônico da vizinhança e da família tradicional é a forma perfeita de finalizar a obra. Especialmente porque essa harmonia é quebrada, e escutamos ao fundo a cantiga infantil:

“Um, dois, Freddy está vindo pegar você.”

O mal parece ser mais poderoso do que o bem. E o sonho se torna um pesadelo, tal como o título indica, tal como os terrores são. Como qualquer obra, o filme não deve ter o propósito de educar ou satisfazer seu público. Wes Craven definitivamente consegue cutucar algumas feridas de sua sociedade, e, ao incomodar, sua obra se eleva. 

Referências




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