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Gótico: um pesadelo em Villa Diodati

Escrever é como dar à luz. Parir ideias e dar vida a suas histórias em forma de letras e depois entregá-las ao mundo é muito parecido com o nascimento de um bebê, e o processo da escrita é um trabalho solitário e, por vezes, angustiante. Há momentos em que a história está completamente formada na mente do escritor, mas se torna impossível colocar no papel, um desespero bate e é muito comum se sentir um fracasso. Mas as histórias têm sua hora para nascer. Assim como os bebês, uma história leva tempo para se formar.

Comparar maternidade com a escrita era algo comum para Mary Shelley, principalmente porque a escrita foi um refúgio nos momentos difíceis, como após as mortes dos filhos. Mary Shelley teve quatro filhos, e apenas um sobreviveu até a vida adulta.

Ao contrário do que muitos pensam, Frankenstein não é uma resposta ao sofrimento passado por uma mulher que viveu ao redor de poetas cruéis; essa história está longe de ser verdade. Sim, de certa forma, o personagem título, Victor Frankenstein, foi inspirado no poeta inglês, marido de Mary, Percy Shelley. Shelley, além de um exímio escritor, era também completamente fascinado pelas ciências e pelo oculto. Pesquisar sobre a vida de Shelley é encontrar muitas vezes passagens do tipo: "abria furos no teto para procurar fadas", "assustava as irmãs com histórias de fantasma", "ficou frustrado por não conseguir destruir a casa após um experimento científico" e "procurava espíritos com a mesma avidez com que fazia observações em seu microscópio e tentava invocar o diabo"

Percy Shelley

Percy tinha uma imaginação muito fértil e enxergava o mundo de forma singular, se interessava por diversos assuntos e investia com o coração em tudo e todos por quem era apaixonado. Percy e Mary eram uma dupla. Não havia competição entre eles. Percy respeitava as opiniões de Mary tanto quanto ela as dele. De fato, sua erudição foi a primeira coisa que chamou a atenção do poeta em sua futura esposa. Percy era, sem dúvidas, o maior incentivador de Mary. O mesmo ocorria com Lord Byron. Os amigos de Percy não gostavam muito de Mary e, após a morte do poeta, muitos se afastaram dela. Eles a consideravam fria e distante. Byron, mesmo com todas as histórias que envolvem sua persona, foi um dos poucos a oferecer ajuda a ela após a viuvez. E assim como Percy, o lorde apreciava muito as conversas e debates que tinha com Mary. Percy e Byron eram grandes admiradores da filósofa e escritora, Mary Wollstonecraft, mãe de Mary Shelley.

É importante deixar claro que o relacionamento que Mary e Percy tinham foi definido como um acordo, em momento algum Percy a enganou a respeito da forma com que levava seus relacionamentos e enxergava o mundo, e Mary concordou com tudo. Ela queria viver um grande amor, ansiava por encontrar um homem apaixonado e apaixonante e viver uma aventura escandalosa com ele. Mas às vezes, sonhar é melhor do que realizar. Mary acreditava verdadeiramente que a mulher deveria ter o direito de ser emancipada e ser dona de sua própria vida, contudo, não estava totalmente de acordo com a ideia do amor livre. Ao dizer "sim" a Percy, ela não apenas mentiu para ele, mas também para si mesma. 

Mary passou a infância e boa parte da vida adulta sob a sombra dos pais. Afinal, ser filha de uma mulher brilhante como Mary Wollstonecraft e de um homem não tão brilhante (mas que acreditava plenamente sê-lo) colocou um grande peso nos ombros de Mary; ela deveria ser tão brilhante quanto a mãe, certo?

Mary Shelley

Se devemos falar de um homem que tem grande papel no período de agonia pelo qual Mary estava passando ao escrever Frankenstein, devemos falar sobre seu pai, William Godwin. A partir do momento em que Mary fugiu com Percy, Godwin passou a ignorar a existência da filha, assim como o fez boa parte da sociedade. Mas o que os outros pensavam dela não machucavam tanto Mary quanto a indiferença e as palavras duras do pai. Principalmente Mary, que tinha verdadeira adoração por Godwin. O fato de que Godwin ignorava Mary, mas continuava a escrever para Percy pedindo dinheiro deixava a escritora ainda mais decepcionada e ferida. A relação que a Criatura tem com Frankenstein muito se assemelha com a de Mary e o pai. Ela pensava constantemente em como era fácil para um homem ignorar seu próprio filho se este não agisse ou fosse de acordo com o que o pai desejava. Além disso, a ideia de poder trazer novamente alguém do mundo dos mortos fazia Mary sentir um certo acolhimento, pois se ela fosse Victor Frankenstein e pudesse dar vida de novo aos seus filhos com a ajuda de um relâmpago, ela jamais os abandonaria. 

Esta é uma longa introdução, mas ela se faz necessária, pois é importante conhecer a história real mesmo que para realizar uma obra de ficção. Principalmente no caso de pessoas que de fato existiram, em especial os Shelleys, que registravam suas vidas em diários, histórias e poemas de fácil acesso ao público. O problema não é criar uma história de ficção inspirada em fatos, mas, sim, quando se decide escolher um único lado, demonizar personagens e criar uma narrativa ilusória para vender como a história real

Em muitos casos, cinebiografias falham em transmitir emoção, ou, ao contrário, são carregadas de sentimentalismo barato. O que diferencia a filmografia de Ken Russell, mais especificamente suas cinebiografias, é que para além do fato de o diretor britânico ser verdadeiramente um fã das personalidades que retrata, ele não está interessado apenas em criar uma nova história, mas, sim, em criar arte. Para Russell, fazer arte não é muito diferente de fazer sexo, e em ambos os casos, o prazer deve ser o principal combustível. Não me refiro propriamente ao ato sexual, mesmo que este seja um tema recorrente nas obras de Russell, mas, para além disso, ao prazer e à paixão que o britânico colocava na direção de seus filmes, fossem baseados em eventos reais ou não. O real para Russell está intrinsecamente ligado à fantasia, ao excesso, à loucura e à sexualidade. E essa quase caricatura da realidade, com seus personagens agindo sob a lei do desejo, transforma a filmografia de um dos mais brilhantes diretores britânicos em uma obra fascinante e surrealista impossível de desviar o olhar. Segundo Linda Ruth Williams: 

"As fantasias de Russell não substituem a realidade; em vez disso, ele usa a fantasia como uma forma de explorar a vida interior e cultural de seus súditos. A fantasia é onde diferentes identidades sexuais e psíquicas podem ser experimentadas. E é na fantasia que ele mais se diverte, mas também leva muito a sério."

Gótico (1986) é um ótimo exemplo de sua forma única e transgressora de contar ou reimaginar uma história. E mesmo com uma trama envolta em monstros, pesadelos, orgias, visões e blasfêmias, ainda segue sendo um dos filmes mais verdadeiros a retratar os famosos acontecimentos de Villa Diodati e o nascimento de Frankenstein.

Gótico (1986)

Em uma entrevista concedida em 1987, o ator Julian Sands explica em poucas palavras e muita precisão a síntese da história:

"Acho que esses retratos estão enraizados na realidade. Se as pessoas pensam de outra forma, é por causa da cal vitoriana posterior delas. Estes não eram apenas belos poetas românticos. Eles eram hedonistas subversivos e anárquicos perseguindo uma linha particular de amoralidade. O filme retrata Lord Byron como demoníaco e Shelley à beira da loucura, mas o filme é uma peça expressionista, e isso não é uma expressão irracional de suas realidades.''

Fantasmas, poetas e pesadelos

"O relâmpago é a força fundamental do universo. O imaculado, seu espírito."

A trama de Gótico é bem simples, o longa tem pouco menos de uma 1h30 e se passa em uma única noite. O filme se baseia na história a respeito da noite em que Mary Godwin (Natasha Richardson) supostamente teve a ideia para escrever Frankenstein. E ela não era a única figura ilustre naquela noite. Ela chegou acompanhada do poeta Percy Bysshe Shelley (Julian Sands), seu futuro marido, e Claire Clairmont (Myriam Cyr), sua meia-irmã. O destino era a mansão de Lord Byron (Gabriel Byrne), que  já estava acompanhado de seu médico pessoal, John Polidori (Timothy Spall). Antes dos personagens principais serem apresentados, temos uma visão geral de como a vizinhança de Byron o enxerga, e assim o espectador já tem uma ideia do que esperar do famoso lorde, como é dito em certa cena: 

"— E ali, senhoras e senhores, no outro lado do lago está a famosa Villa Diodati, onde Lord Byron, o maior poeta inglês vivo, reside no exílio. Romântico, erudito, duelista e autor do famoso Childe Harold, se viu obrigado a deixar sua terra natal após muitos escândalos, dentre os quais se incluem incesto e adultério com Lady Caroline Lamb. 'Louco, malvado e perigoso', assim ela o definia."

A persona vampiresca e perigosa que Byron adota durante o longa não apenas diz respeito ao fato de que o lorde serviu de inspiração para a história de O vampiro (1819), escrita por Polidori, mas também está de acordo com o que a sociedade da época incumbiu a ele. Um verdadeiro mito foi criado a respeito de sua vida polêmica, seu gênio difícil e seus relacionamentos escandalosos. E é ao redor de sua vontade e de sua aparente sede por sangue que a trama se desenrola.

"— Sempre tortura a quem lhe amam?
— É um papel que me impuseram.
— Sim, o vampiro. Um papel que lhe cai muito bem."

Após a ingestão de láudano, um opiáceo, os ânimos começam a ficar exaltados, pois Byron propõe brincadeiras para aplacar o tédio. À noite, após Shelley ficar fascinado com a tempestade e os estrondosos relâmpagos no céu, o lorde propõe a leitura de algumas histórias de fantasma, e não demora muito para outra proposta vir à tona: e se eles mesmo criassem histórias de fantasmas?

"— Em Genebra, os homens trancam suas filhas à noite por medo do inglês que ronda os campos [...] Que tal escrever sobre um nobre inglês que estripa as mulheres, chupa-lhes o sangue até deixá-las completamente secas?"

Após tentarem invocar os mortos, o que acaba com Claire aparentemente possuída pelo espírito da mãe de Mary, o grupo se separa e começa a viver seus próprios pesadelos pessoais. Um fato curioso é que Mary é a única que não ingere alucinógenos, porque o ponto importante do filme não é a realidade adulterada do mundo desperto. Mary, assustada com os eventos que se seguiram antes e após da possessão de Claire, pega no sono ao lado da irmã ainda inconsciente, e é a partir de então que um pesadelo começa a ser formado.

"Houve um tempo em que fomos muito felizes. Nos conhecemos no túmulo de minha mãe. Ele escrevia poemas de amor. Nos beijamos e juramos amor eterno. Ano passado, em março, tivemos um filho que nasceu prematuro e morreu. Algumas vezes sonho que meu bebê voltou outra vez à vida."

Nesse ponto, a narrativa começa a ser desconstruída, pois assim como Mary, o espectador não sabe mais o que é real ou não. E no mundo dos sonhos, tudo é possível, principalmente se o sonho em questão representar perigos tão reais. Não apenas medos sobrenaturais, mas aqueles medos mais intrinsecamente guardados dentro do mais profundo eu de uma pessoa, que não se tem coragem de dizer em voz alta. O mundo dos sonhos é o lugar onde a monstruosidade e a realidade se colidem, onde o real e a imaginação travam uma batalha. É um mundo capaz de criar um horror impossível de desviar o olhar, pois está acontecendo dentro de sua própria mente, uma fábrica de pesadelos com criaturas que desejam ganhar vida no mundo desperto.

A partir desse momento do filme, a trama se baseia na adaptação da introdução que Mary escreveu para a edição de Frankenstein publicada em 1831, décadas após os eventos do verão assombrado de 1816. Nessa introdução, Mary diz que apenas após um sonho teve a ideia para o que viria a se tornar um dos mais importantes romances da literatura mundial. Entretanto, essa informação não parece ser verdadeira, e é muito simples descobrir isso investigando os escritos pessoais de seus companheiros naquele verão, em especial Percy Shelley e John Polidori. 

Shelley em momento algum escreveu que Mary teve dificuldades em começar a escrever, pelo contrário, na verdade, ela começou imediatamente a escrita de sua história. E mesmo Polidori, que raramente pode ser considerado uma fonte confiável de informação graças às suas incontáveis mentiras de conhecimento geral, corroborou isso. Polidori era obsessivo e calculista. Naquele verão em particular, estava obcecado por Mary. Anotava e observava a escritora para onde ela ia, o que a deixava se sentindo incomodada. Ele anotava em seu diário todas as interações que tinha com Mary, e não há registros de que a escritora teve dificuldades para começar a escrever, pelo contrário, Polidori corrobora a versão de Percy de que todos começaram a escrever imediatamente, exceto ele. Percy e Byron apenas finalizaram suas histórias anos depois, com os poemas épicos Prometeu desacorrentado (1820), de Shelley, e Manfredo (1817), de Byron. Mary foi a única que continuou a escrever ininterruptamente sua história até finaliza-lá. Então, por que inventar uma dificuldade inexistente e um sonho para incluir na história de criação de Frankenstein?

Percy Shelley tinha o que chamavam de alma de um verdadeiro poeta. Era de conhecimento geral seus sonhos proféticos e visões assustadoras. Inclusive, um evento retratado no filme de fato ocorreu: a cena em que Shelley começa a gritar em desespero, falando que teve uma visão de uma mulher com olhos no lugar dos seios. Ninguém presente na mansão ousou dizer que não acreditava nele, afinal, Shelley afirmava ter visto e seu horror era palpável. Todos ali presenciaram aquilo. Ao insinuar que também tinha sonhos proféticos e inspiradores, Mary não apenas se colocava no mesmo patamar de Shelley, mas também como portadora de uma verdadeira alma de artista. Charlotte Gordon, em seu livro Mulheres extraordinárias: as criadoras e a criatura, disse: 

"No início do século XIX, artistas do sexo feminino eram, por definição, uma monstruosidade. Apesar de todos os esforços de Wollstonecraft e de seus amigos radicais, a sociedade ainda acreditava que mulheres deveriam gerar bebês, não arte. [...] Uma visão onírica faria apenas reforçar as credenciais românticas de alguém. Sonhos eram espontâneos, não se podia forçá-los a existir. Mas sonhos também não eram particularmente democráticos. Eles não acontecem a qualquer um, pelo menos não o tipo de sonho extraordinário que Mary descreveu. Artistas, poetas: esses eram os verdadeiros profetas, aqueles que tinham a mais profunda visão. Assim, ao mesmo tempo que minimizava sua iniciativa, buscando a aceitação do seu trabalho enquanto escritora do sexo feminino, ela também afirmava sua identidade de artista."

A história do sonho de Mary pode ser real ou não, mas é combustível para a trama do filme se desenvolver. Tudo começa quando, ao deitar na cama, Mary observa a pintura O pesadelo (1780), do pintor suíço Johann Heinrich Füssli. A cena retratada na pintura não apenas é importante para que Mary entre no mundo dos sonhos, como também é familiar a ela. Sua mãe, Mary Wollstonecraft, tinha uma relação pessoal e bastante complexa com Füssli. Após cair no sono, Mary se transforma na protagonista do quadro, mas, no lugar do pequeno diabinho em cima de seu peito, sente o peso de Claire adormecida. 

A casa também se transforma, e o nome Gótico se torna mais do que apropriado. Uma mansão mal-assombrada no século XIX, com personagens sendo atormentados e perseguidos por fantasmas e monstros em meio ao famoso zoológico que Byron carregava junto consigo. A casa se torna um cenário de filmes clássicos de monstro. Tudo se torna ainda mais fascinante ao notarmos que a história é sobre a noite em que Frankenstein foi criado, e que a Criatura de Victor é um dos monstros mais famosos dessas clássicas histórias de terror.

O pesadelo, de Johann Heinrich Füssli (1781)

Dentro do mundo dos sonhos, é quase impossível conter seus impulsos, é quando seu verdadeiro eu pode vir à tona. Apenas adormecida, Mary admite os conflitos com Claire, e isso começa a partir do momento em que ela literalmente sente o peso de carregar a irmã. Mas ainda assim, sabe o que aguarda a irmã quando ela se tornar uma mãe solteira. 

O que também fica evidente são suas inseguranças a respeito do relacionamento com Shelley e sua atração por Byron. É inclusive durante essa parte que Mary entende que Byron não está interessada nela, e tampouco em sua irmã, que seu interesse por Shelley vai além de suas poesias. Polidori também é confrontado com seus pensamentos obsessivos, seu ciúme e inseguranças. Trava uma batalha consigo mesmo a respeito de sua religiosidade e seus sentimentos de desejo e vingança evidentes por Byron e Shelley.

"— O horror possui uma beleza irresistível, Shelley. Seria o suave pescoço de uma mulher tão desejável se não fosse por nosso desejo secreto de ver nele uma gota de sangue? Esqueça as mulheres, Shelley. Não desperdice suas brilhantes palavras com elas. Os poetas foram feitos uns para os outros."

No ápice de seu pesadelo, Mary se vê presa em uma sala com diversas portas, e à medida em que abre cada uma delas, se depara com visões de como cada um de seus companheiros vai morrer, inclusive seus próprios filhos. Apenas após ela despertar que os horrores da noite terminam em um passe de mágica. O filme termina pouco depois, quando todos estão no jardim da casa em um tranquilo e adorável piquenique. Quando Byron pergunta a Mary se ela teve alguma ideia do que escrever, ela confirma que sim. Como uma verdadeira escritora e uma grande artista, Mary agora pode prever o futuro em seus sonhos proféticos, ela pode transformar toda aquela angustiante experiência em uma história de monstros que procuram vingança contra seu criador.


Referências



O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥
Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

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