últimos artigos

A solidão feminina em A assombração da Casa da Colina, de Shirley Jackson

A assombração da Casa da Colina foi publicado em 1959 pela primeira vez e, ao lado de Sempre vivemos no castelo, é o romance de mais sucesso da autora estadunidense Shirley Jackson, cuja produção literária também abrange livros de memórias e contos. Tal sucesso não é por acaso: sua influência na literatura de horror em língua inglesa é notória, e a repercussão de suas obras foi polêmica desde a época de seu lançamento. O tema de suas histórias percorre diversos elementos do terror, mas principalmente as casas assombradas e suas assombrações. Para uma mulher que nasceu em 1916, na Califórnia, exercer a criatividade por meio da escrita certamente não foi fácil, ou bem visto. Entender isso é um primeiro passo para entender a escrita poderosa de Jackson e como um fantasma nunca é um simples fantasma, mas a porta de entrada para algo muito maior.

Eleanor Vance

Para falar de A assombração da Casa da Colina é preciso, em primeiro lugar, falar sobre Eleanor Vance, a protagonista deste clássico. Afinal, ao ler o romance, nos tornamos íntimos dela, a ponto de quase enlouquecer ao seu lado. Sua jornada com o sobrenatural começa quando ela recebe uma carta misteriosa a convidando para um experimento na Casa da Colina. O convite foi feito por Dr. Montague. Com ele, Luke e Theodora, Eleanor passará por um experimento na casa a fim de compreender a fama dos fenômenos paranormais que sobre ela recai. Mas sua ligação com o sobrenatural é, em tese, algo do passado: Dr. Montague tenta selecionar duas mulheres que tenham tido ligações com o sobrenatural para que assim elas possam atrair os fenômenos. Theodora, por exemplo, tem o poder de ler mentes. Sem saber o que a esperava, Eleanor parte para a Casa da Colina. 

A autora leva quase trinta páginas — de um livro relativamente curto — narrando a viagem de Eleanor até a tal casa. A demora em chegar é um combustível para o suspense, mas, é também um modo de nos aproximarmos dessa personagem peculiar. Eleanor sente um prazer enorme em dirigir seu carro — que dividia com a irmã — pela primeira vez e para um lugar totalmente novo. Eleanor rumava ao desconhecido, como nós. Assim, há um certo reconhecimento do leitor com a personagem. Através de seus pensamentos, que transbordam na narração, é possível captar sua essência quase que ao todo naquele começo de livro: Eleanor não teve muitas pretensões em sua vida e após a morte da mãe, ela estava livre. Não tinha muito dinheiro, não tinha muitos amigos, e detestava sua irmã e seu cunhado. 

“Por todo o lado oculto de sua vida, desde que se entendia por gente, Eleanor vinha esperando por algo como a Casa da Colina. [...] Eleanor se agarra à crença de que um dia algo aconteceria.”

E aí está algo que difere esse livro de outros do gênero: Shirley Jackson não tem pressa alguma em construir o horror. A expressão “calmaria antes da tempestade” é levada às últimas consequências, quando, de modo surpreendente, percebemos que a estadia na Casa da Colina pode ser deleitosa. O experimento, um tanto quanto suspeito, é visto, na verdade, como uma empolgante aventura. A viagem é tranquila, os personagens são, no geral, agradáveis, e as conversas são tranquilas. Toda essa experiência contrasta com um mal que se voltará contra Eleanor e o seu novo grupo de amigos. Esse mal não estava entre eles, mas ao redor deles. Esse mal era a própria casa. 

Assombrações

"A Casa da Colina, desprovida de sanidade, se erguia solitária contra os montes, aprisionando as trevas em seu interior; estava desse jeito havia oitenta anos e talvez continuasse por mais oitenta. [...]   O silêncio se escorava com equilíbrio na madeira e nas pedras da Casa da Colina; e o que entrasse ali, entrava sozinho."

As descrições precisas sobre a arquitetura da casa fazem jus à tradição gótica. Nesse sentido, a casa não é apenas um cenário para a história, mas um personagem. Além do terror evidente, a história também parece se sustentar, a princípio, em teorias científicas. Dr. Montague é, afinal, um cientista, que voluntariamente pretende ir à Casa da Colina e estudá-la. Um exemplo disso é o fato de que a casa é toda assimétrica, para dar a sensação de que algo está errado. Assim, o conceito do inquietante freudiano é direta ou indiretamente explorado para causar terror nos personagens e também possui influência na construção da própria narrativa, sobretudo através da forma como Eleanor se sente com o passar dos acontecimentos. 

Sua relação com a casa é ambígua desde o princípio. Ao mesmo tempo que se sente enfim livre, sua primeira impressão sobre a casa causa uma quebra no princípio de felicidade que ela vivenciou no trajeto até lá: 

"A Casa da Colina é repugnante, é doente; vai correndo embora daqui."

Enquanto o doutor faz um estudo sobre a casa e seus fenômenos, Shirley Jackson parece fazer um estudo da construção de narrativas de horror, usando precisamente cada momento da história para fazer refletir sobre a natureza do mal, e também para sentí-lo. Como dissemos anteriormente, nos sentimos íntimos de Eleanor e não demora muito para nos sentirmos em casa na Casa da Colina, o que é a verdadeira armadilha desse mal e da própria narrativa. Assim, a casa é um mal porque reflete algo inescapável para a mente humana: ela representa o desejo. Desejos não realizados, para ser mais preciso. E por isso sua armadilha é essa felicidade paradoxal, a qual Eleanor jamais pudera experimentar:

"É a minha segunda manhã na Casa da Colina e sinto uma felicidade incrível."

O desejo e sua não-realização também está ligada ao arrependimento, o que para Eleanor é trazido através do luto pela morte de sua mãe. O luto, além disso, é apresentado como algo que a prende ao que partiu. Luto e culpa estão juntos como barreiras que impedem Eleanor de seguir em frente e ter uma felicidade plena. A vida que ela não viveu é a maior assombração que a casa consegue, de certo modo, criar para ela. Eleanor estava frágil e a casa usa isso contra ela. Bem como o mal da casa demora a se manifestar por completo, deixando os personagens sob uma estranha aura de calmaria, assim se sente Eleanor em sua vida, desconfiando da paz que sentiu após a morte da mãe. E assim funcionam também as próprias assombrações da casa: desconfiando dos vivos, desconfiando do que deu certo, remoendo um passado de sofrimento. Shirley Jackson apresenta uma felicidade complexa para criar uma personagem complexa: ser feliz e então ter isso tirado de você é um terror muito real. 

Herdeiras do terror

A condição da culpa e de estar preso a alguém é uma situação muito particular de mulheres. No caso, as experiências que Eleanor perdeu foram em função do tempo que ela dedicou aos cuidados para com sua mãe. Além disso, essa “não-realização” também está presente no desejo de ser amar e ser amada. Tal desejo nunca chega a ser atingido, em um novo paradoxo: ela se dedicava à mãe, mas não era uma relação de carinho recíproco como ela desejava em seu âmago. No fim, apesar de projetar esse desejo em seus colegas, principalmente em Theodora, é a casa que, desejando ser habitada, satisfaria o desejo de pertencimento que Eleanor nutria. 

E desse modo, a representação da solidão feminina é muito potente, uma vez que as assombrações são uma janela para experiências individuais perturbadoras. A história da casa é também uma história sobre duas mulheres que não tiveram seus desejos realizados e que viveram vidas de solidão. E Theodora, no presente da história, funciona como um espelho para Eleanor, da vida que ela gostaria de ter. Todas essas narrativas, juntas, é o que tornam A assombração da Casa da Colina tão singular: é a narrativa de muitas, contada como um terror e de forma magistral. Por fim, é a não-realização de Eleanor e a impossibilidade da casa que, somadas, resultam no fim trágico do romance. Não há um final feliz, porque isso talvez seja mais irreal do que os próprios fantasmas. O mal continua, imponente, mas a vida também. 

E assim, Shirley Jackson constrói uma das narrativas de terror mais icônicas da literatura mundial, através de personagens femininas que sofrem e que sonham. E, independentemente de seus intuitos, sua obra basta. A recente adaptação do romance como uma série de sucesso é apenas um dos indicativos da perpetuidade desse clássico. Ao longo do tempo, inúmeras mulheres leram essa história, e apesar das mudanças nesse gênero literário, os fantasmas do terror continuam a levar uma estranha empolgação para leitoras. Um sentimento que encontramos nas persongens, um sentimento que pode ter tido Shirley Jackson ao se aventurar na escrita. Um sentimento que, graças à literatura, sobrevive. 

Referências

  • A assombração da Casa da Colina (Shirley Jackson) 
  • Shirley Jackson (Claudio Zanini)
  • "Whose hand was I holding?": Familial and sexual politics in Shirley Jackson's The Haunting of Hill House, presente no livro Shirley Jackson: Essays on the literary legacy (Tricia Lootens) 



O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)