Todavia, como o crítico Adorno propõe em sua palestra sobre lírica e sociedade, quanto mais o “eu-lírico” dos poemas — neste caso, das canções — se afasta do mundo material, mais ele protesta contra ele. Ou seja, resistir, com nossa subjetividade, é resistir ao mundo capitalista, o qual vê as pessoas como coisas. Nesse sentido, a música popular brasileira, que já é política por sua tentativa de unidade cultural, é também política por trazer em suas músicas temas relevantes para todos, tais como a política, mas, também, o amor. E a linguagem também é importante para isso, ou seja, o modo como se constroem as letras dessas músicas.
Assim, as canções que falam sobre o cotidiano, sobre o simples encontro de amantes, falam sobre a realidade que tanto é negada para a classe trabalhadora. O entretenimento, a paixão, o relacionar-se livremente com o próximo… Todas essas pequenas coisas de que precisamos e gostamos por sermos humanos nos são negadas no mundo moderno, corrompido pela lógica do acúmulo de riquezas. Mas a música popular brasileira, deve ser, a rigor, toda música criada em solo nacional. E portanto, é melhor pensar nesse "movimento" mais como músicas que no geral eram de uma determinada classe social e que passam, então, a serem ouvidas mais amplamente.
Com letras belíssimas, algumas canções de amor marcaram a música brasileira e comoveram multidões de ouvintes a repetir, com os cantores, seus versos. O amor, tema universal daqueles que escrevem, cantam, compõem, está condensado nas letras e notas destas canções.
Oceano (1989)
A palavra “paixão” vem do latim “passio”, que significa sofrimento. Ainda na Grécia arcaica, eram comuns as canções líricas para tratar do Eros. O amor, em especial o não correspondido, era tratado como uma doença. Por mais dramático que pareça ser, essa é uma das formas mais apaixonantes de se tratar o amor romântico: o amor, como sentimento máximo é o que nos move a viver e morrer. E na arte, a representação dos sentimentos mais profundos está ligada a esse mistério. Na música Oceano do álbum Djavan, do próprio Djavan, as metáforas mais grandiosas são aplicadas para tentar descrever esse sentimento monstruoso, que envolve inúmeros outros sentimentos consigo:
"Amar é um deserto e seus temoresVida que vai na sela dessas doresNão sabe voltar, me dá teu calor"
Assim, o amor não é apenas sofrer, como sinônimo de uma vida sem vida. O eu-lírico ainda diz:
“Não há nada em lugar nenhumQue vá crescer sem você chegar”
O amor é um deserto, o qual castiga aquele que o sente. Mas a pessoa para quem o eu-lírico direciona a canção é, quando com ele, a solução para essa dor. O amor precisa de um amado, e assim o eu-lírico transborda em um “oceano”, que dá o título da obra:
"Vem me fazer feliz porque eu te amoVocê desagua em mim, e eu, oceanoE esqueço que amar é quase uma dor"
Djavan tem muitas músicas além de Oceano que falam sobre a experiência do amor. Por exemplo, Te devoro ou Samurai. E no geral, as experiências amorosas se misturam a outras experiências da vida. A simbologia de suas canções é marcante: usar elementos naturais para falar dos sentimentos é algo recorrente, e em Oceano isso atinge um nível espetacular. A saudade de alguém, a falta desse outro na vida do eu-lírico e os devaneios em torno da paixão, tudo isso faz parte dessa canção até hoje tão ouvida.
As canções de amor que você fez pra mim (1968)
E como falávamos de Djavan, alguns artistas ficam mais reconhecidos do que outros como compositores do que consideramos "canções de amor". Um deles, clássico desde sempre, é Roberto Carlos. Através de uma canção sobre canções, ele usa a metalinguagem para relacionar a arte como meio de eternizar uma relação. Com Erasmo de Carlos, ele compôs As canções que você fez pra mim. Todavia, a interpretação de uma música às vezes transforma essa obra em algo a mais. É o caso da interpretação maravilhosa de Maria Bethânia, um dos mais importantes nomes da MPB.
"Você disse tantas vezes que me amava tantoTantas vezes eu enxuguei o teu prantoE agora eu choro sóSem ter você aqui"
Um girassol da cor do seu cabelo (1972)
A música de Lô Borges e Samuel Rosa pode não ser a mais icônica da música popular brasileira, mas, sem dúvida, é uma das mais singelas representações das marcas que o amor deixa em nós. Através de símbolos, como o girassol, o eu-lírico se recorda de uma mulher que ele amou. E a poesia, as memórias e a melodia se misturam: é como mostrar o que fica quando uma paixão vai se dissolvendo ou se transformando.
Mas, mais do que isso, há também o sofrimento. Assim como em Oceano, a canção é feita para sanar — ou tentar sanar — a vontade de preencher o vazio deixado por alguém. A tentativa de lidar com essa paixão, que por ser paixão, machuca, resulta nessa confissão. É uma confissão que diz:
"Eu só preciso ter vocêPor mais um diaAinda gosto de dançar"
Ao mesmo tempo, é a imaginação de um diálogo, no qual o eu-lírico diz para a amada:
"Você ainda quer morar comigo" e "Bom dia/ Como vai você?". Mas, sem resposta, ele repete as palavras que fazem parte dessa espiral de pensamentos quase delirantes. O tom final da música e o ritmo acelerado com qual ela se encerra confirma ainda mais a sobreposição frenética de pensamentos.
“O meu pensamento tem a cor de seu vestidoOu um girassol que tem a cor de seu cabelo?”
Aos poucos, a composição poética, sobre a qual ele fala no começo, começa a ser confusa. Ele já não consegue mais compor, falando da “cor dos pensamentos”, ou lembrar com nitidez da amada, confundindo a cor do vestido e do cabelo dela.
Para confirmar ainda mais a influência dessa pessoa em sua vida, ele diz: "Se eu cantar, não chore não, é só poesia" e "Se eu morrer, não chore não, é só a lua". O cantar e o morrer se relacionam como consequências iguais do amor. A lua e a poesia são o mesmo, demonstrando a visão da arte como elemento natural. E sendo a arte, a lua e a vida coisas naturais, ele pede que ela não lamente.
Mas a estrofe-síntese da música é esta:
"Ainda moro nesta mesma ruaComo vai você?Você vem?Ou será que é tarde demais?"
O verso "Ou será que é tarde demais?" é o que antecede a espiral de pensamentos difusos do qual falamos. A ideia da "quase" realização do desejo enlouquece, ainda mais do que o desejo em si. É a ruptura de esperanças que se baseiam em algo que quase chegou a ser verdade. É como acordar de um sonho e descobrir que não era verdade. A desilusão fere porque, como miragem, surge no momento mais sensível e alimenta nossos desejos mais profundos.
Assim, as canções de amor têm sido feitas desde sempre, mas mudam conforme a sociedade também muda. No Brasil, existem algumas vozes mais lembradas do que outras, que tocam nas rádios, nas trilhas de filmes e novelas, e que, acima de tudo, fazem parte da história de tantos. Amor, um sentimento tão universal e tão individual, nunca pode ser esgotado, sempre há o que pensar sobre ele. E as produções musicais, ainda mais do que a própria experiência amorosa, restam como instrumento de memória de algo muito maior do que um simples encontro de amantes. Como diz na música As canções que você fez pra mim:
"Ficaram as cançõesE você não ficou"
Referências
- "Palestra sobre lírica e sociedade", em Notas de Literatura I (Theodor W. Adorno)
- Lira Grega: Antologia de Poesia Arcaica (Giuliana Ragusa)
- Mas, afinal, que gênero é esse que chamam de MBP? (Jornal da USP)
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