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Franz Liszt e a Lisztomania: mais que um pianista, um ícone pop


O magnetismo dos ídolos musicais provoca fortes manifestações físicas: pernas bambas, frio na barriga, coração palpitante. Vez ou outra, esses sintomas se aprofundam coletivamente e geram um grande frenesi nos fãs. Não se trata de um fenômeno recente: bem antes do sucesso estrondoso dos grupos de k-pop, ou mesmo das plateias emocionadas dos Beatles nos anos 60, os suntuosos salões de concerto do século XIX deliravam com as apresentações de Franz Liszt, o pop star de seus tempos. 

Liszt nasceu em Doborján, na Hungria – atualmente Raiding, na Áustria – no ano de 1811. Contemporâneo e amigo de músicos primorosos como Frédéric Chopin e Clara Schumann, o início de sua história não fugiu muito do clichê: seu pai, apaixonado por música, era pianista e o ensinou a tocar piano quando ele tinha apenas sete anos de idade. Com oito anos, Franz começou a escrever suas primeiras composições. Aos nove, um grupo de ricos austríacos passaram a patrocinar sua educação musical. O pequeno Liszt foi para Viena e tornou-se aluno de Carl Czerny que, por sua vez, havia tido Ludwig van Beethoven e Johann Nepomuk Hummel como mestres.

Sua trajetória de criança prodígio a pianista virtuoso teria sido relativamente comum se, especialmente na década de 1840, suas performances não fossem marcadas por um público fanático. O termo lisztomania – atualmente conhecido também por nomear um dos singles mais famosos da banda francesa Phoenix – foi cunhado pelo poeta Heinrich Heine para descrever as intensas reações provocadas pela mera presença de Liszt. Como o sufixo -mania dá a entender, era de fato compreendida como um quadro patológico, uma condição fisiológica incontrolável. Fãs tremiam de euforia enquanto autoridades temiam por epidemias.

“Era como uma doença infecciosa, e simplesmente chamá-la de histeria em massa dificilmente faz jus ao que realmente aconteceu. Seu retrato [de Liszt] foi usado em broches e camafeus. Admiradoras à beira do desmaio tentavam cortar seu cabelo, e elas avançavam sempre que ele rompia uma corda de piano para transformá-la em uma pulseira.”

Há registros de furtos realizados por jovens admiradoras, que almejavam uma lembrança do pianista a qualquer custo: lenços, luvas, pontas de charuto e restos de café, apenas para serem guardados a sete chaves. Liszt está presente em uma seleta lista de personalidades que, antes das mídias sociais ou da comunicação de massa, esbanjavam tanto carisma e talento que conquistaram a opinião popular, para o bem ou para o mal, de maneira orgânica. Assim como Lord Byron, e na mesma época, Franz Liszt chamava a atenção tanto pelo que fazia quanto por quem era, ostentando uma personalidade extravagante que o distinguia dos demais.

Liszt retratado por Henri Lehmann (1839)

A lisztomania era um fenômeno inusitado, pois ainda não havia uma cultura de celebridades tão potente como a que nos cerca no século XXI. Na verdade, o período do Romantismo, bem representado por Byron e Liszt, é considerado um momento histórico crucial para a edificação da cultura moderna de celebridades, com os traços multimidiáticos e avassaladores que até hoje a definem. Trata-se, porém, do firmamento de algo que já existia: de acordo com a pesquisadora Elizabeth Barry, as antigas cerimônias para nomeação de cavaleiros já funcionavam como máquinas da fama. Em qualquer cenário, a grande diferença entre a personalidade cultuada e a pessoa conhecida pode ser explicada pela crítica de William Hazlitt, em seu ensaio On the living poets, de 1818:

“A fama é a recompensa não dos vivos, mas dos mortos. O templo da fama está sobre a sepultura: a chama que arde em seus altares é acesa das cinzas dos grandes homens. A fama em si é imortal, mas não é gerada até que o sopro do gênio se vá. Pois a fama não é a popularidade, o grito da multidão, o burburinho ocioso da moda, o sopro venal, a lisonja reconfortante do favor ou da amizade; mas é o espírito de um homem sobrevivendo a si mesmo nas mentes e pensamentos de outros homens, imortal e imperecível.”

Hazlitt, ao escrever, pretendia esnobar a popularidade terrena e vazia que as estrelas da época detinham. No entanto, ser uma celebridade, conforme entende-se hoje, é conjugar a emoção com a eternidade, e foi exatamente isso que Liszt conquistou, em vida e na morte. As reações emocionadas que ele gerava em suas fãs, afinal, não são muito diversas do que os fandoms atuais praticam: gritos, coros, vertigens, perseguições. A especialista em comportamento de fãs Ruth Deller acredita que o estereótipo da fã que grita e desmaia na presença do ídolo pode ter suas origens na cobertura feita pelos jornais na época de Liszt.

"Liszt a koncertteremben", por Theodor Hosemann (1842)

Um dos efeitos mais curiosos da lisztomania é que o público começou a comprar partituras das composições de Liszt, mesmo quando as peças estavam muito além de suas habilidades ao piano, apenas para tê-las; até então, as peças eram adquiridas com o propósito muito prático de serem estudadas e executadas em casa. A editora que publicava suas composições era a Friedrich Hofmeister Musikverlag e, de acordo com uma das biografias de Liszt, as boas vendas das partituras do ídolo eram um dos principais fatores que permitiam a publicação de obras de Schumann, Chopin, Charles-Valentin Alkan e outros pianistas que não eram tão rentáveis na época.

Os motivos pelos quais as partituras de Liszt tornaram-se colecionáveis podem ser muitos. Uma das explicações possíveis foi teorizada pelo pensador Walter Benjamin, que notou a prática burguesa de colecionar e a existência de uma relação representativa entre indivíduo e objeto. Para o autor, a arte da coleção exige que cada item seja desconectado de suas funções originais, para que atinja a plenitude a partir da relação íntima que é construída com seu colecionador, por afeto ou memória. Em uma coleção, os objetos não precisam ser úteis: só precisam evocar alguma paixão ou recordação. Até mesmo por isso, a experiência de colecionar foi relacionada com a burguesia, que era quem podia se dar ao luxo de consumir objetos esvaziando-os de utilidade e preenchendo-os com arte.

“Mal segura-os nas mãos, parece estar inspirado por eles,
parece olhar através deles para longe, como um mago”

Benjamin indicou um termo para isso: o intérieur. É uma parte cheia de ilusões e sonhos do sujeito que, em meio à ascensão burguesa, permite que a lógica dos interesses e a frieza dos negócios possa ser esquecida por um instante. Comprar partituras das elaboradas composições de Liszt, assim, era um dos mecanismos da burguesia ascendente de satisfazer seus anseios por memória e identidade. Além das peças musicais, panfletos biográficos e litografias do artista também eram comercializados – muito embora Liszt tenha confessado em uma carta a um amigo que, ironicamente, não suportava retratos litografados, pois eles sempre o representavam de maneira muito burguesa.

Para uma fã lisztomaníaca, ter um artefato de Liszt em casa tinha uma dimensão a mais. Para além de um refúgio ao intérieur, era ter um pedaço de seu próprio coração em mãos. Era como identificar seu afeto, relacionando-se mais intimamente com seu ídolo e consigo mesma; ao mesmo tempo, trazia uma desejada sensação de pertencimento, pois significava fazer parte de um movimento que pulsava na época. Colecionar ainda é uma típica conduta de fãs, e há espaço para as paixões mesmo em meio às dinâmicas de consumo questionáveis firmadas pelo molde capitalista atual.

Duzentos anos depois de Liszt, sem a possibilidade de confirmar se suas feições eram mesmo tão charmosas e se suas performances eram tão hipnotizantes, o que resta é prestigiar seu legado criativo por meio das interpretações de pianistas modernos. E, em caso de fortes emoções, há como juntar-se aos muitos fãs espalhados pelo mundo, ainda que a comunidade atual seja bem mais discreta do que as lisztomaníacas originais.


Comentários

  1. Parabéns pelo texto, muito bem escrito. Pensava que a betomaia tinha nascido com os Beatles, mas não! Os famosos se reeditam! Fãs são pessoas carecem do ídolo! Valter Diógenes.

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