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A Borboleta, um ensaio de Emily Brontë


Este texto faz parte de um projeto de tradução dos ensaios das irmãs Brontë não publicados em língua portuguesa. Os direitos autorais do texto original são livres. Tradução de Mia Sodré.

A Borboleta 

Em um desses estados de espírito em que todo mundo se encontra às vezes, quando o mundo imaginário sofre de um inverno que mirra sua vegetação; quando a luz da vida parece extinguir-se e a existência transforma-se num deserto estéril onde vagamos, expostos a todas as tempestades que explodem sob o céu, sem esperança de encontrar descanso ou abrigo — num desses ânimos sombrios, estava eu caminhando, durante uma tarde, no limite de uma floresta. Era verão; o sol ainda brilhava alto no oeste e o ar ressoava com o canto dos pássaros. Tudo parecia feliz, mas, para mim, isso era apenas aparência. Sentei ao pé de um antigo carvalho, entre cujos ramos o pintassilgo havia acabado de iniciar suas vésperas. "Pobre idiota", eu disse a mim mesma, "é para guiar a bala até seu peito ou para guiar a criança até sua ninhada que você canta tão alto e claro? Silencia essa melodia prematura, empoleire-se no seu ninho; amanhã, quem sabe, ele estará vazio." Mas por que me dirigir apenas a você? Toda a criação é igualmente louca. Contemple essas moscas brincando acima do riacho; as andorinhas e os peixes diminuem seu número a cada minuto. Eles, por outro lado, se tornarão, a seu tempo, a presa de algum tirano do ar ou da água; e o homem, seja por diversão ou necessidade, matará os assassinos deles. A natureza é um quebra-cabeça inexplicável; ela existe num princípio de destruição. Todo ser vivo deve ser o incansável instrumento de morte para outros, ou ele mesmo deverá deixar de existir, mesmo assim nós celebramos o dia de nosso nascimento, e louvamos a Deus por ter nos introduzido em tal mundo. 

Durante meu monólogo, colhi uma flor que estava ao meu lado; ela a recém havia desabrochado, mas uma lagarta feia havia se escondido entre as pétalas e elas já tinham começado a murchar e desvanecer. "Triste imagem da Terra e de seus habitantes!" Eu exclamei. "Esta minhoca vive somente para machucar a planta que a protege. Por que ela foi criada, e por que o homem foi criado? Ele atormenta, mata, devora; ele sofre, morre, é devorado — aí está toda a história. É bem verdade que há um paraíso para os santos, mas o santo deixa aqui abaixo miséria o suficiente para entristecê-lo mesmo diante o trono de Deus. 

Joguei a flor na terra. Naquele momento, o universo me parecia uma grande máquina construída apenas para produzir o mal. Quase duvidei da bondade de Deus, em não aniquilar o homem no dia em que ele primeiro pecou. "O mundo deveria ter sido destruído," eu disse, "esmagado da mesma forma como esmago este réptil, que não fez nada da vida além de tornar tudo o que toca em algo tão nojento quanto ele." Mal havia removido meu pé do pobre inseto quando, como um anjo censurador mandado do céu, uma borboleta veio agitando entre as árvores, com grandes asas de ouro brilhante e roxo. Brilhou apenas por um momento diante de meus olhos; então, erguendo-se das folhas, desapareceu nas alturas da abóbada azul. Fiquei muda, mas uma voz interna me disse: "Não deixe a criatura julgar o Criador; aí encontra-se um símbolo do mundo que está por vir. Assim como a feia lagarta é a origem da esplêndida borboleta, este globo é o embrião de um novo paraíso e de uma nova Terra, cuja beleza mais singela excederá infinitamente sua imaginação mortal. E quando você vir o magnífico resultado daquilo que lhe parece tão básico agora, como desprezará sua presunção cega, que acusou a Onisciência por não ter feito a natureza perecer em sua infância. 

Deus é o deus da justiça e da misericórdia; então, certamente, todo pesar que ele inflige a suas criaturas, sejam elas humanas ou animais, racionais ou irracionais, todo sofrimento da nossa natureza infeliz, é apenas uma semente daquela colheita divina que será colhida quando o Pecado, tendo usado sua última gota de veneno, a Morte, tendo lançado sua seta final, ambas perecerem na pira de um universo em chamas e deixarem suas antigas vítimas para um eterno império de alegria e glória. 

Emily Brontë
11 de agosto de 1842


Comentários 

Emily Brontë era filha de um clérigo anglicano, chamado Patrick Brontë. Seu pai, embora escrevesse ficção ele mesmo, frequentemente utilizava a desculpa de que o fazia com motivos religiosos por trás, para exaltar a Criação e as coisas divinas, ou mesmo dar lições de moral em seus leitores. No entanto, seus escritos nos levam a crer que ele gostava mais da escrita de ficção do que deixava transparecer - e, por isso mesmo, tenta não encorajar suas filhas nesse caminho, embora suas tentativas não tenham dado tão certo.

Patrick não era um pai severo, mas temia pelo caminho que seus filhos tomariam. Como alguém que representava a autoridade religiosa na comunidade de Haworth, ele passava a Emily e suas irmãs, Charlotte e Anne (assim como a Branwell, que quase nunca é lembrado, apesar de também possuir uma obra literária em conjunto com Charlotte), o senso de dever e respeito para com as coisas divinas e para com a natureza. É sabido que grande parte da educação familiar foi dada por ele, que gostava de passear pela charneca com suas filhas, mostrando-lhes o que havia na natureza - algo que pode ser claramente percebido nos escritos das irmãs.

Portanto, não é de se espantar o tom devoto ao final do ensaio acima. Emily, embora tenha a fama de a mais misantropa das irmãs, teve uma educação cristã e, sendo produto de seu tempo, e de sua família, deixava transparecer suas crenças em seus textos, ficcionais ou não. O tom mal-humorado do início dá lugar a uma reflexão sobre o cristianismo. De fato, a voz de Emily era ácida e soturna, tal qual podemos ver nos primeiros parágrafos de A Borboleta, mas ela tentava lembrar-se de quem era e daquilo em que acreditava, o que parece ter atenuado boa parte de sua personalidade contestadora. Ainda assim, é possível encontrar, tanto em O Morro dos Ventos Uivantes, quanto em seus ensaios e poemas, uma mulher que não satisfazia-se em aceitar o mundo como ele é somente porque fora criada para tal, dentro dos limites da religião, mas que tinha seus muitos momentos de questionamentos e revoltas. Tal tom contestador e sarcástico é o que a torna uma das escritoras mais interessantes da língua inglesa, melhor compreendida hoje do que em seu próprio tempo. 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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