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Amadeus: a fofoca histórica que ganhou o Oscar


Áustria. Algum inverno da década de 1820. Ao som do Primeiro Movimento da Sinfonia n. 25 de Mozart, ouvimos o compositor Salieri gritar de dentro seu quarto "Eu confesso!! Eu o matei!! Eu matei Mozart!!". Os empregados da casa, suspeitando que o pior acontecesse, destroem a porta que até então estava trancada. O que vemos é um homem idoso, sangrando pelo pescoço, caindo no chão. É na intensidade e comoção da Sinfonia n.25 que assistimos Salieri atentar contra a própria vida.

Logo depois, a música se acalma e assistimos seu corpo sendo carregado numa espécie de cesto de vime pelas ruas sujas de neve em direção ao socorro médico, enquanto espiamos, de uma janela, as sombras de um baile e pessoas dançando. Assistimos o contraste entre a luz, as cores do salão e a alegria das pessoas, versus as ruas escuras, frias e o corpo sendo carregado. A vida versus a morte. A música acompanha a contraposição: ora calma, ora intensa. E, assim, somos apresentados aos créditos iniciais. São poucos os filmes que, aos três minutos iniciais, são tão dramáticos e envolventes. A partir daí, como uma ópera, o filme alterna o drama, o cômico e a melancolia. Tudo ao som das mais belas composições de Mozart, um dos compositores mais emblemáticos da história da música ocidental.

Lançado em 1984, Amadeus foi dirigido por Milos Forman e ganhou, entre várias estatuetas, o Oscar de Melhor Filme. Depois que Salieri é socorrido e está se recuperando, um padre chega para ouvir sua confissão, e é a partir deste momento que acompanhamos a regressão de Salieri e conhecemos seu passado e o de Mozart na corte de Viena, entre os anos de 1781 e 1791.


Inspirado na peça de mesmo nome escrita pelo inglês Peter Shaffer e estreada em 1979, o filme parece ser uma biografia bem-humorada de Mozart e sua misteriosa morte precoce, aos 35 anos de idade. Na época, suspeitava-se que o compositor havia sido envenenado, logo depois que alguém, anonimamente, havia encomendado um réquiem. As suspeitas caíram sobre os ombros de Salieri que, movido pela inveja de não possuir tamanho talento, teria encomendado este réquiem para tomar como de sua própria autoria e tocar no funeral de Mozart.

No entanto, a grande questão que o filme traz é: o que é Arte? O que torna um artista imortal? Salieri, assim como Caim, tinha cíume do dom divino com o qual Mozart havia nascido, apesar de toda a sua vulgaridade. Como poderia ele, Salieri, tão devoto a Deus, ser tão mediano? Sua produção artística era toda dedicada aos céus e, mesmo assim, por que Deus não lhe presenteou com talento como fez com Mozart? Por que ele, Salieri, era tão medíocre? E por isso, como Caim matou seu irmão Abel movido pela inveja e cíume, Salieri matou Mozart.

Como tudo começou


Wolfgang Amadeus Mozart (1756 - 1791) entrou para a história como um dos compositores mais tocados e conhecidos até os dias de hoje. Uma criança prodígio, a habilidade com o piano revelou-se muito cedo e suas primeiras composições autorais surgem por volta dos cinco anos de idade. De família humilde, de classe média, Mozart nasceu em Salzburg, uma pequena cidade da Áustria. Seu pai era professor de música e, logo cedo, ao reconhecer o talento do filho, fez algo extraordinário: por anos, a família viajou por toda a Europa, de cidade em cidade, para apresentar Mozart e sua irmã, alguns anos mais velha, em salas de concertos. As duas crianças tocavam para a aristocracia, e Mozart o fazia, inclusive, de olhos vendados.

Mozart criança

Essa experiência internacional e urbana contribuiu para que Mozart construísse um repertório único. Transitar entre as camadas mais populares e aristocráticas, em diversas capitais da Europa, permitiu que logo cedo Mozart pudesse unir o vulgar com o clássico e desafiar doutrinas da música clássica. Por exemplo, Mozart trouxe temas vulgares para suas óperas, que até então eram todas sobre a mitologia e heróis gregos e romanos na língua italiana. Suas óperas trazem temas como traição, sexo e a sátira contra a burguesia. Ele também foi um dos pioneiros a escrever óperas em alemão. 

Já adulto, Mozart volta com sua família para Salzburg. Porém sobreviver de sua música e tornar-se um compositor profissional e reconhecido só seria possível em uma grande capital. Por isso, Mozart muda-se para Viena em 1781, onde é contratado pela corte vienense. Aos poucos, Mozart foi ganhando reconhecimento, mas sua personalidade não jogava a seu favor e a sonhada estabilidade financeira não chegou. Além disso, o compositor austríaco enfrentava resistência dos compositores italianos, já que sua presença ameaçava o status quo de que estes gozavam.

Um desses compositores era Antonio Salieri (1750 - 1825) que, além de compositor, era também diretor musical - o Kapellmeister - da corte do Imperador José II. Para a história, Salieri ficou como o compositor medíocre e invejoso, cujas obras foram esquecidas e renegadas, enquanto Mozart é um dos compositores mais tocados até os dias de hoje.

Antonio Salieri

Mozart e Salieri


Mas assim como Deus não era justo em escolher Mozart como seu preferido, a história também foi injusta com Salieri. Apesar de, atualmente, já ter sido provado que Mozart não morreu por envenenamento, mas sim por causas naturais, Salieri continua com a fama de assassino ciumento. A última composição de Mozart foi Réquiem, fruto de uma encomenda anônima e, enquanto escrevia esta obra, já não se sentindo bem, Mozart acreditava que estava sendo envenenado pelo mesmo desconhecido que fez a encomenda. Para quem não sabe, Réquiem, que deriva do latim réquiem e significa “descanso”, “repouso”, é um gênero musical tocado em missas fúnebres. Réquiem em Ré Menor, de 1791, escrita por Mozart, é uma obra-prima do gênero. Se você não conhece, vale muito a pena ouvir um pedacinho. É uma das músicas mais lindas já escritas.


Aqueles que conviviam com Mozart espalharam esses rumores que, somados ao já conhecido desafeto entre os compositores italianos e o compositor austríaco e a admiração assumida que Salieri tinha pelas músicas de Mozart, resultou nessa teoria que atravessou continentes e séculos, chegando em Moscou, Rússia, em 1830. Inspirado pela mitologia da criança prodígio, o artista incompreendido, a morte precoce, rumores de envenenamento e a encomenda anônima de um réquiem, o poeta russo Alexander Sergeyevich Pushkin escreveu a peça de teatro Mozart e Salieri.

A apresentação começa com um violinista performando um trecho de Don Giovanni, a ópera mais obscura de Mozart. Em seguida, surgem os dois únicos personagens, Mozart e Salieri, que discutem entre si o significado da arte, a genialidade artística e o dom divino. 150 anos depois, o roteirista e dramaturgo inglês Peter Shaffer escreve a peça Amadeus, com mais personagens, momentos importantes da vida dos compositores no roteiro e, principalmente, misturando a narrativa com trechos das óperas mais famosas e importantes de Mozart. Porém a discussão sobre o que é a Arte, com "a" maiúsculo, o propósito do artista e a inveja continuam sendo o coração da história.

Amadeus, o filme


Dos palcos, Amadeus foi para as telas graças à parceria entre o produtor Saul Zaentz e o diretor Milos Forman, que já haviam trabalhado em conjunto no filme Um Estranho no Ninho (1975) com Jack Nicholson. Os elementos vistos em 1830 nos teatros de Moscou continuam. Salieri, em sua confissão, diz que durante sua infância num pequeno vilarejo na Itália, já se encantava com a música e via nela a divindade, tamanha beleza que a arte podia proporcionar. Então faz um acordo com Deus: em troca de sua castidade e total devoção, pede o dom e a oportunidade de escrever músicas e dedicá-las ao Criador. No almoço seguinte em família, seu pai, ignorante no assunto das artes, morre engasgado e, a partir daí, Salieri está livre para ir atrás de seu sonho e dedicar-se à música e a Deus.


Ele chega longe na corte austríaca, capital da música. Tudo iria muito bem até o dia em que ele conhece Mozart. Já conhecido pelas capitais europeias pelas turnês que seu pai fazia quando ele ainda era criança, Mozart já gozava de certa fama como um compositor talentoso. Porém como um grande admirador da música, Salieri sabia que Mozart era um compositor admirável que possuía um talento superior aos outros e estava ansioso para conhecê-lo pessoalmente. Todavia tudo em que Salieri acreditava vai por água abaixo. Observando de longe, Salieri flagra Mozart "brincando" de esconde-esconde e pega-pega com uma moça que vestia um vestido exageradamente decotado. Eles se arrastam no chão, se pegam embaixo da mesa e Mozart, com uma risada escandalosa e uma peruca espalhafatosa, conta piadas sujas e indecentes.

Como pode, se pergunta Salieri? Como pode aquele ser Mozart, o compositor que escreve as mais lindas músicas? Não é possível, só poderia ser um erro, pensa Salieri. Porém sua dúvida é definitivamente respondida quando ele olha a partitura, lê a música - e nós, espectatores, vemos e ouvimos a partitura junto com Salieri - e Mozart, aquele mesmo homem vulgar, chega correndo para pegar seus papeis.


A partir desse momento, Salieri se sente injustiçado. O preferido de Deus é um homem rude, obsceno e, principalmente, indigno. Salieri então rompe com o Criador e, fingindo ser amigo de Mozart, usa de seu poder e influência política na corte austríaca para tramar contra ele. Contudo a admiração pela obra de seu rival nunca diminui. Presente em todas as óperas, encantado com suas músicas, nós vemos e ouvimos a música que Salieri lê nas partituras e sentimos com indignação como é possível tamanho talento e beleza nas obras de Mozart.

O filme trabalha de forma magistral som e imagem. Ao abrir um conjunto de partituras, os trechos de músicas acompanham o trocar de páginas. Vamos "lendo" com Salieri as músicas lá escritas. Os trechos das mais importantes e famosas óperas escritas por Mozart são performadas com intensidade e beleza, nos dando vontade de assistir todos os espetáculos por inteiro. Além disso, o filme brinca com os momentos e sentimentos vividos por Mozart e como estes influenciaram sua obra. A alegria e energia em Il Seraglio, a primeira ópera que escreve na língua alemã assim que chega na Áustria, a genialidade e originalidade em As Bodas de Fígaro, considerada por muitos a melhor ópera já escrita, e a aflição e angústia de Don Giovanni, escrita após a morte de seu pai. Mas principalmente, a dor e tristeza da sua última grande composição e obra prima: Réquiem.

Se lembrarmos como a música clássica é restrita a um grupo bastante pequeno da população e que, nos dias de hoje, adquiriu um ar elitista, é surpreendente o sucesso que o filme teve e a quantidade de indicações ao Oscar que recebeu. Além de Melhor Filme, tanto os atores de Mozart (Tom Hulce) quanto Salieri foram indicados ao Oscar de Melhor Ator, sendo que F. Murray Abraham, que interpreta Salieri, foi quem ganhou a estatueta. O filme também ganhou o Oscar de Melhor Direção, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção de Arte, Melhor Mixagem de Som, Melhor Figurino e Melhor Maquiagem e Penteados.

Aliás, o figurino merece uma menção à parte. Constrastando com as vestes sóbrias e escuras de Salieri e seu cabelo amarrado e discreto, Mozart é colorido, extravagente e usa perucas cor-de-rosa. Sua esposa, tão vulgar quanto ele, usa decotes exagerados e seu pai, uma influência autoritária e complicada na vida de Mozart, fantasia-se com a famosa máscara teatral - uma triste e outra feliz - expondo o sentimento dúbio e complicado que o compositor tem com a figura paterna.


O filme é divertido, belíssimo e nos faz refletir sobre a Arte, a mediocridade, a inveja e o divino. Fazendo uso da licença poética e contado sob o ponto de vista de Salieri, Mozart é representado como um homem talentoso, porém excessivamente pecador. Além de escandaloso e vulgar, é libertino, cede aos prazeres da carne e do jogo, de difícil convivência, não sabe administrar seu dinheiro e é falido. Devemos, no entanto, lembrar que se trata de uma obra de ficção. Para compreender mais sobre a vida de Mozart, o documentário Em busca de Mozart (Phil Grabsky, 2016) mostra a genialidade do compositor sob o ponto de vista de muito trabalho, estudo e a experiência que adquiriu ao longo de sua infância durante suas viagens pela Europa.

Este foi o único erro de Salieri: acreditar que a Arte é divina e um presente de Deus para ser criada pelos humanos para Ele. Mas não. Apesar de toda a vulgaridade, a Arte é feita pelo homem para o homem. No meio de tanta dificuldade que é ser humano e viver e sobreviver em sociedade, só o homem em sua humanidade é capaz de criar beleza para tornar sua existência mais suportável e fazer valer a pena. Não deixem de assistir Amadeus e conhecer um pouco a obra de um dos mais importantes compositores e o poder que sua música tem em nossos corações e sentimentos mesmo séculos depois de sua criação.


Referências


Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

Comentários

  1. Giovana, não conhecia essa história toda, fiquei bastante intrigada por tudo. Quero assistir o filme assim que possível. Obrigada pelo texto!

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