últimos artigos

A natureza como personagem em O Morro dos Ventos Uivantes


A literatura de teor gótico teve seu início em 1764, com a publicação de O Castelo de Otranto, do escritor inglês Horace Walpole (1717-1797). Essa literatura é envolvida por alguns escritores do Romantismo que quiseram fugir dos valores racionalistas e materialistas da sociedade burguesa na Inglaterra, principalmente no século XIX. O Romantismo Gótico é responsável por trazer à tona as facetas mais sombrias e melancólicas do homem, expondo elementos de loucura, morte, satanismo, sonhos e mistério, criando, a partir disso, uma literatura propriamente fantasiosa.

Antes da publicação de Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, em 1774, a literatura mantinha a natureza como cenário, algo que aparecia somente no fundo. Ela estava ali, mas não era relativamente importante. Servia para enfeitar, para fazer parte da composição dos elementos ditos como “belos” dos ideais clássicos gregos.

Com a publicação do romance epistolar citado acima, o Romantismo toma forma na Europa, a começar pela Alemanha. Já é notável a natureza ganhando espaço nas obras. No próprio Os Sofrimentos do Jovem Werther, é evidente o poder da natureza sobre o protagonista. Quando está um dia chuvoso, Werther está triste. Mas quando o sol aparece iluminando as montanhas, então a felicidade retorna. Isso também ocorre com seus pensamentos que são, muitas vezes, motivados, impulsionados pelo nascer ou pôr do sol, nevasca ou vento e etc.

Mas como isso acontece na Inglaterra?

Sabemos, por conhecimento empírico, que terras britânicas exalam frio e chuva devido à posição geográfica. Se escritores como Jorge Amado, Machado de Assis e Casimiro de Abreu se inspiraram nas praias cristalinas margeadas por coqueiros e noites estreladas do calor evidente de um país tropical como o Brasil, por outro lado, Lord Byron, Mary Shelley e Emily Brontë não tiveram outra escolha senão a névoa e a tempestade. As baixas temperaturas são evidentes e os ventos são constantes. Essa é a literatura gótica inglesa. A natureza é selvagem, indomável e, quase sempre, servindo de impulso para os sentimentos das personagens e as ações destas.

John Keats, poeta inglês do século XIX, escreveu:

Apesar do desânimo, da carência desumana
De naturezas nobres, dos dias sombrios,
De todos os caminhos doentios e obscuros
Feitos para nossos procurando: sim, apesar de tudo,
Alguma forma de beleza afasta a mortalha
De nossos espíritos sombrios.

Nesse trecho do poema Endymion (1818) vemos um exemplo de como a natureza se apresenta para o poeta. O poema, tipicamente romântico, mostra, a partir de adjetivos (característica própria do Romantismo) a sombra e a obscuridade provenientes de uma natureza gélida misturada com as sensações humanas sobre tal. A presença de adjetivos que trazem uma conotação melancólica, angustiante e nebulosa mostra a hipérbole que o poema exala.

A natureza em O Morro dos Ventos Uivantes


Para o poeta inglês William Wordsworth (1770 – 1850) e para muitos outros também, o acordo entre sujeito e objeto (aqui entendido como homem e natureza, respectivamente) é feito pelo panteísmo, isto é, uma única coisa, não havendo separação entre estes. Porém para os românticos era necessário haver a separação, justamente para poder colocar a natureza num pedestal. É necessário, então, remover a natureza de si, mantendo-a longe, no alto. No entanto, acompanhado desse distanciamento entre homem e natureza, vem o distanciamento psicológico de que tratou Viktor Chklóvski, formalista russo, em seu texto A arte como procedimento: “Os objetos percebidos diversas vezes começam a sê-lo por um reconhecimento; o objeto encontra-se à nossa frente, nós o sabemos, mas não o reconhecemos mais”. Ou seja, é quando colocamos a natureza para fora de nós e, consequentemente, num pedestal, que nos distanciamos dela e passamos a não a associa-la como pertencente à nossa humanidade.

Pintura de Branwell Brontë (1839)

Porém o que Emily Brontë faz, a todo tempo, em O Morro dos Ventos Uivantes, é “bater na tecla” de que a natureza e o ser humano estão vinculados, fazem parte de um todo e, com isso, devem permanecer juntos. O que para muitos românticos era incabível, isto é, a natureza estar no mesmo nível que nós, já que trazê-la a nós significaria regressá-la, Emily abona. Isso ocorre na obra porque a natureza não é descrita como nós sempre a vimos: bela. O belo e o feio dialogam. Por que o conceito de “belo” seria um dia ensolarado e tranquilo no qual borboletas voam às flores e há uma leve brisa de verão soprando? Por que não pode haver beleza na escuridão, no frio, nas tempestades e nas ventanias? Por que chamamos de “feio” o que sempre foi nosso? Em muitos momentos os sentimentos dos personagens são comparados com uma natureza vista, então, como “nada bela”:

“Meu amor por Heathcliff se parece com as rochas sempiternas sob a superfície: uma fonte de pouquíssimo prazer visível, mas necessário.”

Emily Brontë faz, portanto, o leitor questionar o real significado de “belo”. Tempestades podem ser bonitas, pois fazem parte da natureza e, junto disso, o ser humano e sua personalidade raivosa e vingativa. O que é visto como “feio”, pode ser, sim, visto como belo.

Na obra, toda a natureza reage. Os ventos não sopram, uivam. A chuva não molha, encharca. O frio não gela, endurece. Tudo é exagerado, tudo é dramático. Mas talvez tal exacerbação fosse necessária para induzir o leitor a acreditar na potência da mãe-Terra. Acabar com a luxúria da sociedade burguesa significa voltar-se à natureza e, portanto, voltar-se a si, já que a água, o fogo, as árvores e os ventos nos mostram nossa origem, nossa casa:

“Naquele desolado morro, a terra estava endurecida sob uma geada negra, e o ar fazia com que todo o meu corpo tremesse.”

A raiva do vento, a fúria de um trovão, a audácia da noite, resulta nos mesmos sentimentos de perversão, cólera e ímpeto que os personagens experienciam. A narrativa se constrói com base em elementos naturais. Se a natureza é selvagem, então os personagens também o são, pois uma coisa é a outra. A natureza nos pertence porque também pertencemos a ela. O que está dentro está fora, e vice-versa, daí o uso de muitas metáforas e símiles para explicar os sentimentos dos personagens:

“...e usou essa arma, e sua língua, com tal aptidão que a tempestade se acalmou de um modo mágico, e somente ela permanecia lá, arfando como o mar depois de ventos fortes...”

Observamos, também, o nome da propriedade onde mora a família Earnshaw, que dá nome ao próprio romance: O Morro dos Ventos Uivantes. Tal nome foi traduzido, juntamente da obra, pela primeira vez aqui no Brasil por Oscar Mendes. Mas no original, Wuthering Heights refere-se a um tipo específico de tempestade atmosférica que ocorre na região da Inglaterra onde a trama se desenrola. Essa tempestade, causada por um vento muito forte, pode ser pensada não somente como nome da propriedade, o nome daquilo que os abriga, mas também como a responsável por expulsá-los e atormentá-los, já que a natureza na obra está, a todo tempo, movendo seus sentimentos e decisões. A casa é a tempestade atmosférica, e vice-versa.

Emily Brontë

Como dito anteriormente, para os românticos, no geral, a natureza é vista como algo que está fora e que manipula os sentimentos e pensamentos das personagens. Portanto, especificamente nessa obra, Emily Brontë traz à tona elementos que conectam a natureza com o homem, tornando-os não somente próximos, nem inseparáveis, mas fundindo-os em uma única coisa. Catherine e Heathcliff são, respectivamente, o morro e o vento.

Catherine é o que está lá, é a “coisa” local, a terra, que não tem movimento, pelo menos não sozinha, ou seja, necessita de uma força externa para movimentá-la. Já Heathcliff, por ser estrangeiro, por ter vindo de um local que não a Inglaterra (é tratado como cigano devido a coloração de sua pele) pode ser associado ao vento, pois esse sempre está em movimento e vem de algum lugar, não sendo próprio do local onde se encontra. Catherine relata que é Heathcliff quem a devasta, pois antes de sua chegada ela era feliz e tranquila, mas quando se conhecem e começam a passar o dia todo juntos, então, é aí que Heathcliff a devasta, já que ela se apaixona e isso mexe com tudo e todos ao seu redor. O vento devasta a terra com seus uivos e suas tempestades atmosféricas.

Ainda na metade da história, quando Catherine já está morando na propriedade da Granja da Cruz do Tordo (residência de Edgar e Isabella Linton), pois está casada com Edgar, ela se lamenta em muitos momentos sobre sua morada na casa ao lembrar de sua antiga vida, quando era criança e tudo era mais fácil e ela corria pela charneca, rolava na grama e subia em árvores com Heathcliff:

“Oh, estou queimando! Quem me dera ser de novo aquela criança, meio selvagem, audaciosa e livre.”

Catherine pensa na infância e sente saudade, pois voltar à infância significa voltar a Heathcliff e à natureza. A melancolia presente na fala denota a imensa saudade que Emily Brontë faz sua personagem passar, já que estar naquela casa luxuosa representa fazer parte da burguesia, da vida na pompa. E o que Catherine quer mesmo é voltar à sua vida selvagem, quando ela tinha contato com a natureza. Observamos aqui a grande influência da natureza nos sentimentos de Catherine. Ela não é vista apenas como algo que está lá fora e que pode ser encontrado quando Catherine estiver ao ar livre, mas que não voltará, já que a infância e a natureza são frutos da mesma coisa: o passado selvagem. Agora Catherine precisa ser educada e comportada. Sua liberdade é ferida. A natureza é onde Heathcliff está, é onde suas memórias e seus dias felizes estão. A Granja da Cruz do Tordo representa o grande medo do Romantismo, isto é, o presente e o futuro, que servem como prisão do homem.

Ainda, como temos uma história dentro de outra, pois a história de Heathcliff e Catherine é contada ao sr. Lockwood por Nelly, também personagens da obra, podemos pensar na Natureza sendo o grande cobertor de ambas, ou seja: talvez tenhamos uma terceira história. A natureza seria o que manipula os personagens, seus sentimentos e ações, mas também é o que os abraça, servindo como uma enorme redoma que envolve a narrativa.

Então, diferentemente de outros movimentos em que a literatura a trouxe como harmônica e agradável aos sentidos e a ela própria, no Romantismo e, principalmente no Romantismo Gótico, temos uma natureza raivosa e vingativa, mas que é bonita justamente por se mostrar tão viva. A natureza, por isso, devasta a todos porque é forte e poderosa, sendo superior a qualquer um e, com isso, mostrando-se não uma mera coadjuvante, mas a protagonista dos sentimentos dos personagens e de si mesma. Emily Brontë talvez quis mostrar-nos, através de sua obra, que humanizar o vento e a neve, as heras e folhas, a terra e a chuva, pode significar retornar ao que é dignamente nosso desde o nascimento: a natureza selvagem humana.
Vitória Schmidt
21 anos, estudo Letras – português/inglês e moro no Rio Grande do Sul. Sou uma amante da literatura, principalmente do Romantismo Inglês e da literatura Moderna brasileira. Também sou apaixonada pelas outras artes e por história.

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)