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A loucura em perspectiva em O Alienista, de Machado de Assis


Escrito entre os anos de 1881 e 1882 para o jornal A Estação, O Alienista, de Machado de Assis, ironiza e critica a prática do alienismo por Simão Bacamarte, passando pela condução de seus estudos sobre a razão e a loucura humanas e as intrincadas relações políticas que permeiam seu universo.

A história do conto se passa na cidade de Itaguaí, após a volta suntuosa do alienista Dr. Simão Bacamarte, renomado nas sociedades carioca, portuguesa e espanhola. Seu retorno para Itaguaí o leva a decidir casar-se, não motivado pelo amor à futura esposa, D. Evarista, mas à ciência, visto que ela carregava “bons genes”, estando assim “apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes”. O casal, no entanto, não têm filhos, e o médico passa a dedicar sua vida aos estudos da mente humana.

Seguindo os pilares dessa que configurou-se como a primeira especialidade médica, Simão Bacamarte submete um projeto na Câmara, preconizando o recolhimento e tratamento das pessoas que são consideradas não-sãs em um lugar chamado Casa Verde. Como é possível observar de antemão, o personagem Bacamarte leva a ciência como fio condutor de suas escolhas, e a sanidade é um ponto especialmente importante, visto que esse será seu projeto pessoal pelo restante da vida.

Pensando em paralelos de contexto histórico, pode-se associar a Casa Verde ao Hospício de Pedro II, inaugurado em 1852, sendo a primeira instituição do tipo na América Latina. Sua arquitetura era baseada no estilo neoclássico francês, e entre suas sete estátuas, duas homenageavam os alienistas Philippe Pinel e Étienne Esquirol. Nesse período, o Hospício exerceu um significado político de ser um marco científico para o Brasil, por tratar seus alienados mentais com ciência e rigor de uma área de estudo. Em O Alienista, a Casa Verde, assim como o Hospício, passa a ser um grande marco científico para Itaguaí, sendo vista com ótimos olhos tanto pelo poder público quanto pela esfera privada, e a comemoração é tanta que a inauguração da Casa resulta em uma festa de sete dias.

É a partir desse mote que somos apresentados ao pensamento do alienista acerca da sua própria prática teórica, aos seus estudos e métodos para determinar o que é uma pessoa alienada da razão. E se a princípio a Casa Verde e Simão Bacamarte são figuras importantes para a cidade, oferecendo, de certa forma, uma “limpeza” da sociedade, os recolhimentos de pessoas vistas como sãs, trabalhadoras e de bom coração, como José Borges de Couto Leme, pessoa estimável, e de outros como Chico das Cambraias, fogalzão emérito, e o escrivão Fabrício, instauram o terror nos moradores da cidade.

Bacamarte, durante o conto, põe em cheque por quatro vezes seu direcionamento para o tratamento dos pacientes da clínica, como aponta Lima Andrade (2014):

"A primeira tipificação da loucura, a mais simplista, determinava como louco aquele com comportamento anormal em relação à maioria. A segunda teoria, mais ampla e determinista, parte do princípio de que a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, '[...] fora daí, insânia, insânia e só insânia (Assis, 1994, p 08)'. A terceira teoria qualificava a loucura em tipologias que se restringem a quatro categorias: os leais, os justos, os honestos, os imparciais. O equilíbrio dessas qualidades implicaria em lucidez, sendo o desequilíbrio o contrário."

Um ponto perceptível ao longo da narrativa é a predisposição do alienista em ser o detentor da verdade absoluta, mesmo que a dita verdade se altere ao longo do tempo. Bacamarte, além de cínico e quase antirreligioso, também é dono de uma personalidade soberba. Ao longo do enredo, essas marcas de personalidade tornam-se até um ponto de questionamento, colocando em dúvida se todos esses recolhimentos são realmente motivados por um rigor científico. Após a prisão de um dos políticos, que fez oposição às ideias do alienista, a questão se intensifica.

Tais questionamentos levam a população de Itaguaí, liderados pelo barbeiro Porfírio, a confrontar o alienista e depois tomar a Câmara, com a intenção de derrubar a Casa e desgraçar socialmente Bacamarte. Assim que Porfírio assume o papel de líder vemos uma situação bem costumeira da politicagem, pois, assim que chega ao poder o barbeiro/líder, este abandona a ideia de demolição da Casa Verde, havendo uma tentativa de fazer um acordo mais brando com o alienista, o que deixa a população enfurecida.


Aliás, o pano de fundo da política no conto dá o tom de como esse entrelaçamento de fato aconteceu no nosso mundo não-ficcional. Um século antes da popularização do alienismo na França, o poder político aliado às instituições de caridade tocadas pela Igreja se juntaram na formulação de uma política de recolhimento de pessoas em situações de pobreza, desempregadas e em situação de rua para uma espécie de “filtro” entre a mão de obra “válida” e “inválida”. Para a primeira, havia o incentivo do trabalho na própria instituição e o da prática religiosa. Para os “inválidos” apenas o encarceramento. Essa prática também era usada como mote para o encarceramento de pessoas “perigosas para o Estado”, como opositores políticos. Michel Foucault nomeou essa experiência como ”a grande internação”.

No Brasil do final do século XIX e início do XX, esse entrelaçamento não passa despercebido. Em um contexto de centros urbanos lotados e condições sanitárias ruins, a medicina atuava junto ao Governo para criar medidas que visavam melhorar essas condições por meio da educação, e por esse mote, o pensamento que dominava na época era que a culpa desses hábitos ruins vinha dos trabalhadores e de classes mais pobres. E é aí que esta “limpeza” esbarra em ideias eugênicas da época e juntam-se em um projeto maior. É aqui no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, que também acontece o terrível episódio conhecido como holocausto brasileiro, que foi o encarceramento em massa da população em situação de rua, dos considerados “desviantes da sociedade”, como LGBTQI+, prostitutas e idosos. O episódio foi uma verdadeira barbárie, chegando a levar mais de 60 mil vidas.

No mundo ficcional de Machado, o tema da política é trabalhado a partir de três perspectivas que se cruzam, sendo elas: a sede de poder que faz Porfírio liderar uma rebelião contra Bacamarte e tomar a Câmara, tratando de fazer acordos mais brandos com o alienista; o encarceramento de um dos políticos que fizeram oposição à Bacamarte e, por consequência, a atenção desses legisladores para o encarceramento aparentemente randômico de quatro quintos da população, e também, de forma mais breve, o lucro do Estado com as internações.

Após idas e vindas de pessoas, descontentamento da população, brigas políticas e mudanças de perspectiva acerca de quem deveria ser encarcerado ou não, Bacamarte libera todos os internos da Casa Verde e se interna no lugar. No ato de sua internação seu propósito é o de estudar a si próprio, o único na cidade cuja sanidade é tão equilibrada a ponto de servir como o paciente zero a quem as pessoas deveriam seguir.

Há alguns anos, a preocupação com a saúde mental tem sido mais discutida. Pensar e cuidar da saúde mental em tempos de pandemia, com o peso das notícias que nos cercam, lutos e contextos políticos, é um exercício crucial de autocuidado. É olhar os nossos e a nós mesmos. Em um contexto de seguidos retrocessos governamentais de desfinanciamento do nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e o desmonte sucessivo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), precisamos ficar atentos ao todo que nos cerca e defender essas iniciativas que de fato beneficiam a sociedade. Além disso, a reflexão sobre o incentivo governamental de Comunidades Terapêuticas pelo atual governo Bolsonaro é um ponto crucial para o entendimento de motivações e fios condutores de políticas públicas, e é nesse sentido que a luta antimanicomial tem atuado com vigor.

Diante disso tudo, a leitura de O Alienista é uma experiências bastante única, abordando vários pontos de reflexão sobre ciência, o significado do que é considerado loucura em contextos específicos, relações políticas complexas e as intenções que nem sempre são expostas, mas fazem parte dos porquês de determinadas atitudes. O conto é um retrato histórico bastante rico sobre o seu tempo, mas também um ponto de partida para uma análise de questões atuais sobre a saúde mental e das lutas sociais que nos cercam.

O que foi o alienismo?


O alienismo estudado por Simão Bacamarte foi um campo bastante popular a partir do final do século XVIII, e começo do XIX, tendo surgido na França com o médico Philippe Pinel após a publicação dos seus livros Nosografia Filosófica (1798) e Tratado Médico-Filosófico Sobre a Alienação Mental, ou A Mania (1801).

Os estudiosos da época o tornaram uma resposta da ciência médica para a questão da "loucura", antes pensada apenas sob as lentes da religião. Como aponta Ramos Teixeira (2012), a "loucura" foi redescrita como alienação mental – isto é, como uma doença que deveria ser tratada por um tipo especial de medicina, segundo os paradigmas do tratamento físico-moral pineliano e da teoria das paixões, passando a ser entendida como uma afecção médica provocada pela combinação de causas físicas e morais. Neste contexto, surge um novo especialista, o alienista, a quem compete tratar, usando uma expressão da época, "dos infelizes privados do uso da razão". Aparecem também os hospícios, lugares de triunfo e operação desta nova concepção.

O nascente alienismo buscou retirar a tal "loucura" do terreno das especulações metafísicas e religiosas, apresentando-se como uma alternativa mais moderna e humanitária ao já existente cuidado religioso, oferecido aos que possuíam a condição na Europa, por diversas irmandades religiosas e hospitais de caridade.

Referências



Texto: Larissa Marinho
Imagem de destaque: Tati Ferrari (ao fundo, foto de Marc Ferrez. Acervo: Instituto Moreira Salles).

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