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Drácula como a representação de um abusador sexual


O Conde Drácula é, sem dúvidas, o vampiro mais famoso do mundo. Publicado por Bram Stoker em 1897, o livro rapidamente se tornou um clássico do gênero de terror gótico e permanece relevante ainda hoje, tendo o personagem principal e alguns de seus coadjuvantes (como o famoso Van Helsing) furado a bolha de terror e estando presentes em histórias infantis, filmes, séries, desenhos, lendas e outras formas de arte popular. O que pouco se discute, no entanto, é a mensagem que o texto original parece passar de maneira subliminar: seria o vampiro a representação de um predador sexual?

Na obra de Stoker acompanhamos principalmente sete personagens, dos quais três são vítimas diretas do vampiro. Jonathan Harker é o primeiro, sendo um advogado que viaja à casa do Conde para lhe auxiliar com assuntos jurídicos. Ao longo de toda a viagem ele é repreendido pela população local, que parece querer lhe alertar para os perigos que o aguardam. Ele, no entanto, persiste e logo chega à casa de Drácula, um local isolado de onde é impedido de sair, se tornando um prisioneiro de seu anfitrião e suas três esposas igualmente assustadoras e atraentes. O vampiro demonstra interesse por Harker, solicitando sempre sua companhia para jantar, entrando em seu quarto quando deseja e o cercando de maneira incessante mesmo quando Jonathan quer ficar sozinho. Já as vampiras demonstram uma lascívia exacerbada em seu comportamento, e se mostram ávidas para se alimentarem (através de um beijo) do advogado, mas são impedidas pelo Conde com um aviso assim que ele descobre que Jonathan está sozinho com elas em um dos cômodos da mansão:

“Como ousam vocês, qualquer uma de vocês, tocá-lo? Como é que vocês se arriscam simplesmente a vê-lo, se eu o proibi? Para trás, eu lhes ordeno! Este homem me pertence! Livrem-se de se misturarem com ele, do contrário terão de se haver comigo. […] Bem, agora prometo-lhes que, depois de ele o haver decidido comigo, poderão beijá-lo à vontade. Agora basta! Vão-se embora!”

Após um longo período de reclusão, no qual não tem companhia além da do Conde, presenciando todo tipo de atrocidade cometida por ele e suas esposas (como quando elas são presenteadas pelo vampiro com um bebê, do qual se alimentam), e sendo impedido de se comunicar com qualquer outra pessoa ou deixar a casa, Harker consegue fugir e vai parar em um hospital, onde sua aparência abatida e completamente traumatizada chama a atenção de todos. Ele se recusa a falar sobre o que ocorreu, e é descrito por sua noiva, Mina, como uma ruína de si mesmo, tendo perdido sua “tranquila dignidade”. Mesmo em seu diário, através do qual acompanhamos sua jornada, muitas informações parecem faltar se considerarmos o longo período em que foi prisioneiro do vampiro e de suas esposas.

Se em 2023 homens vítimas de abuso sexual já são alvo de um tabu social, para a sociedade inglesa do século XIX as coisas eram ainda mais intensas devido à moralidade exacerbada da sociedade vitoriana e seu preconceito contra tudo que fugisse do padrão moral estabelecido, que seria relacionamentos apenas entre homens e mulheres, e dentro do casamento. Toda a atitude de Harker pode ser interpretada como a de uma vítima: a necessidade de evitar o assunto a todo custo, tentando reprimir o trauma; a insônia e dificuldade em se alimentar; o sentimento de vergonha por não ter sido “forte o suficiente” e até mesmo o medo de ser desacreditado se revelar o que de fato aconteceu enquanto estava no castelo de Drácula. Chega até a necessitar da reafirmação de Mina de que ela ainda quer se casar com ele mesmo após ver o estado completamente traumatizado em que se encontra. Trauma este que permanece mesmo após o casamento, e o qual Mina relata em algumas passagens do seu diário, sem conseguir entender o que houve, mas ainda disposta a apoiar o marido.

O Conde, por outro lado, parece esquecer de Harker e passa a perseguir Lucy, melhor amiga de Mina. Ele a encontra sempre durante a noite, quando Lucy está em um estado de sonambulismo e não pode agir de maneira consciente. Através de seus beijos, aos poucos suga o sangue e a vida da jovem mulher, deixando-a em um estado doentio que preocupa todos ao seu redor, incapazes de entender a origem de sua doença. Apesar dos esforços de Van Helsing para salvar a senhorita, o assédio do vampiro com Lucy é tamanho a ponto de levá-la à morte, transformando-a em mais uma de suas esposas: Lucy perde sua aura inocente e passa a atrair crianças da região para se alimentar delas e oferecê-las a Drácula. Antes uma moça jovial, carinhosa e ansiosa para o seu casamento, após o ataque do vampiro Lucy se transforma completamente, mostrando semelhanças com seu agressor que levam seus amigos a exterminá-la para que não contamine outras pessoas: “Sua ternura se transmudara numa crueldade empedernida e sem entranhas, e a jovialidade da sua pureza nada mais era que a mais grosseira e voluptuosa devassidão”.

Ao contrário da reação de Harker após o abuso, Lucy passa por outro tipo de transformação. Ela não apenas se iguala ao vampiro em natureza como adquire como alvo crianças pequenas, que confiam nela por ser uma jovem mulher bonita e aparentemente inofensiva. Ainda que de forma alguma seja uma regra que vítimas de abuso sexual se tornem predadores sexuais, há sim uma parcela destes que, ao terem suas vidas investigadas, revelam um passado em que foram vítimas. Este parece ser o caso de Lucy e das outras esposas do vampiro ao longo da obra, ainda que não conheçamos suas histórias. Devemos também levar em consideração as ideias vitorianas a respeito da vida sexual das mulheres, segundo as quais uma moça solteira ao se relacionar com um homem (ainda que se trate de um caso de abuso, e não um romance extraconjugal) estaria terminantemente corrompida e se tornaria uma ameaça ao bem-estar social.

Após o sucesso de seu assédio com Lucy, o vampiro volta suas ofensivas para Mina Harker, melhor amiga da sua última vítima e esposa de Jonathan. Mina é uma jovem inteligente, virtuosa e de rápido raciocínio, que conquista a amizade do grupo determinado a caçar o vampiro e exterminá-lo. Sua beleza, bom humor e brilhantismo a tornam um alvo para Drácula, que a ataca durante a noite sem que ela ou o marido percebam, na mesma casa onde se encontram todos aqueles que lutam contra o vampiro. Usando o mesmo modus operandi que usou com Lucy, Drácula coloca Mina sob um estado de sonambulismo e hipnose, de modo que ela não presencia os ataques do vampiro. Em algumas das ofensivas, Mina até mesmo havia tomado um remédio para dormir, de forma que não havia a menor possibilidade de que ela pudesse estar consciente quando o vampiro invade seu quarto e a torna uma de suas vítimas. Durante um de seus ataques, Mina consegue despertar e se mostra perplexa, envergonhada e incrédula com as atitudes de Drácula:

“Foi neste preciso instante que meu coração ficou paralisado: ao lado da cama, como se tivesse surgido de dentro daquela névoa… estava de pé um homem alto e esguio, todo vestido de preto. […] Por instantes meu coração deixou de pulsar e pensei em gritar, mas nada pude articular, pois estava literalmente paralisada. No curto intervalo que se seguiu ele me falou num murmúrio mordaz e cortante, apontando para Jonathan: ‘silêncio! Se abrir a boca esfacelarei a cabeça dele diante dos seus olhos!’ […] E então, oh meu Deus! Deus se apiede de mim! Ele abaixou os lábios impregnados de mau-hálito sobre minha garganta. Senti minhas forças se esvaírem e já me sentia semiconsciente. Quanto tempo durou esse martírio eu realmente não posso precisar. Para mim, porém, pareceu transcorrer uma eternidade até ele me libertar de sua asquerosa, aterradora e malcheirosa boca. Ainda vi o sangue vivo gotejar de seus lábios! […] E, abrindo a gola da camisa, com suas afiadas unhas abriu uma veia em seu peito. Logo que o sangue começou a escorrer, tomou umas das minhas mãos e, fazendo ela uma concha, com a outra obrigou-me a dobrar o pescoço até comprimir minha boca sobre a ferida ensanguentada, forçando-me com tamanha violência que eu, ou morria sufocada, ou teria que engolir seu asqueroso… Oh meu Deus! Meu Deus! O que eu fiz? O que eu fiz para merecer semelhante castigo? Eu que sempre procurei trilhar o caminho da humildade e da razão. Deus, tenha piedade de mim!”

A hipótese do vampiro como um predador sexual pode ser reforçada por outra ideia comum à época em que ele foi escrito: que a vida, o vigor humano, estaria relacionado ao sangue e ao sêmen, fluídos corporais que seriam diretamente relacionados uma vez que um produzia o outro e, quando perdidos, poderiam levar a doenças graves e até mesmo à morte. Acreditava-se que a prática sexual poderia levar a um “esgotamento” do sangue, o que causaria doenças graves, e, por isso, tanto o sexo quanto a masturbação deveriam ser evitados, sendo importante manter ambos “limpos”, sem misturas. Dessa forma, podemos entender que a cena acima possui fortes conotações sexuais. Ao ser obrigada a tomar o sangue do vampiro, Mina estava de certa forma sendo obrigada a praticar sexo oral nele.

Em outra cena do livro Lucy precisa de uma transfusão de sangue, e recebe de prontidão a doação de seu noivo, que compara o ato com uma espécie de arranjo matrimonial, uma vez que as chances dela melhorar e eles de fato se casarem são pequenas. No entanto, Lucy recebe também a doação de dois outros rapazes que chegaram a lhe pedir em casamento no passado, e a quantidade de “parceiros” de Lucy é causa de piada para Van Helsing, que a considera uma poliandrista. Pois se o sangue seria equivalente ao sêmen, receber a transfusão de vários parceiros significa que Lucy teve relações sexuais com vários parceiros que não eram o seu marido. Após sua morte os doadores até fazem um acordo para não mencionar as transfusões ao seu noivo, para não chatear o homem que acaba por perder sua amada e preservar a memória da jovem doce e inocente que ela um dia foi. Através da conclusão de Van Helsing podemos confirmar, então, a visão de Stoker de como o sangue possui uma relação forte com o ato sexual e como isso implica um teor sexual nos ataques do vampiro.

Vale mencionar também que muito se discute ainda hoje sobre o vampiro ser ou não inspirado no famoso escritor Oscar Wilde. Se não amigos próximos, ele e Stoker foram ao menos conhecidos por muitos anos antes da prisão do autor de O Retrato de Dorian Gray, cuja descrição física lembra muito a descrição feita do vampiro. Em 1885, dois anos antes da publicação de Drácula, Wilde foi sentenciado por prática de “grave indecência com outros homens”, e seu julgamento foi amplamente divulgado e discutido pela sociedade londrina, que acreditava que o escritor estava corrompendo a juventude e a moral vitoriana. Se o vampiro foi de fato inspirado no escritor, então podemos afirmar que a visão que Stoker tinha dele após o julgamento era a de um homem perverso, manipulador e em uma incessante cruzada para corromper o maior número possível de pessoas (homens e mulheres).

Por fim, é inegável que o livro possui conotações sexuais que não apenas foram percebidas pelos leitores durante a época de sua publicação (a obra foi alvo de muitas críticas nesse sentido ao ser lançada), como também revolucionaram o imaginário popular sobre o mito vampiresco, adicionando um tom luxurioso na imagem do vampiro que repercute ainda hoje em obras literárias e audiovisuais que tratam do tema. Poderia se discutir mais, no entanto, acerca de como essas conotações não eram simplesmente um erotismo velado para “apimentar” a história, como ocorre hoje, mas uma alegoria muito exposta sobre abuso sexual. Ainda que o imaginário popular sobre Drácula tenha crescido e se alimentado de diferentes fontes ao longo dos anos (muitas pessoas que sequer leram o livro conhecem o vampiro pelas inúmeras representações que há dele na mídia), é importante buscar a referência original do trabalho de Stoker para darmos nome ao que o vampiro mais famoso do mundo representa: um abusador serial, que fez muitas vítimas ao longo do caminho.

Referências




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