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O horror da fúria feminina em três obras clássicas

Ultimamente, tem se tornado popular um certo movimento de adoração ao chamado female rage, ao girl rage, termos que poderíamos traduzir como raiva, fúria e ira feminina. Nesta tendência atual, há uma retomada das jovens de hoje à apreciação de momentos icônicos do cinema que expressam o lado sombrio do amplo repertório de sentimentos que uma mulher pode ter. Essa apreciação nem sempre existiu. Hoje, jovens cantoras podem gritar em seus vídeos musicais para expressar através da arte a raiva e a angústia que sentem ao enfrentar o mundo e, ainda assim, ter um lugar nas listas dos mais ouvidos. Contudo, no histórico das artes, as mulheres foram majoritariamente representadas e interpretadas pela dualidade do anjo ou do monstro. 

O patriarcalismo propagou uma certa imagem feminina como modelo ideal para que as mulheres não se sentissem livres na expressão do seu interior, mostrando que até no ato de sentir há tratamento injusto. As boas moças eram moças dóceis, extremamente calmas e elegantes, de delicadeza extrema. Anjos. Sabe-se, no entanto, que a raiva enlouquecida das mulheres, assim como o choro horrendo e a tristeza inconsolável, sempre existiu. Suas expressões literárias mais popularizadas foram muitas vezes trazidas negativamente nas figuras das bruxas, demônios e criaturas fantasmagóricas. As mulheres más, as que não podiam evitar sentir e vociferar, as que uivavam de dor, as que não guardavam para si suas mágoas e se revoltaram contra o poder injustamente instituído, apareceram e foram interpretadas como criaturas diabólicas, monstros. Há um legado bem antigo de mulheres violentas na literatura, tornadas monstros pelo imaginário geral, que revoltam o público há séculos com seus comportamentos explosivos e disruptivos. Neste texto, podemos pensar três destas figuras que ficaram célebres na literatura após seus episódios de rompantes brutais de fúria feminina, e como elas são comumente interpretadas a partir destes símbolos do horror e do macabro, mesmo quando possuem camadas muito mais profundas que justificam suas explosões.

Medeia, a feiticeira bárbara da Cólquida 

Medeia é uma personagem antiga da mitologia grega. E, como é característico dos mitos, várias versões da história desta personagem foram popularizadas na Grécia Antiga. Aqui fala-se da princesa e feiticeira da Cólquida, uma região à leste no Mar Negro, que casa-se com o herói argonauta Jasão quando este vai a seu país para roubar o lendário Velocino de Ouro. Após fugir com o amado neste episódio, a jovem Medeia se muda de mala e cuia para Corinto, na Grécia, mas não antes de trair seu pai, seu povo, e destroçar seu irmão. A mais popular versão de Medeia, que associamos a essa figura de bruxa má hoje em dia, foi popularizada pela peça trágica de Eurípides, primeiramente encenada na cidade de Atenas em 431 a.C. Nesta sombria versão, o casamento de Medeia e Jasão é arruinado porque o herói decide largar a feiticeira para casar-se com a princesa de Corinto, provocando uma ira desenfreada na sua ex, que, em um plano grotesco de vingança, assassina não apenas a princesa e o rei de Corinto, mas também seus próprios filhos, de modo a deixar o argonauta arrependido de suas decisões, solitário e amargurado pelo resto de sua vida.

Para além da história conhecida, da bruxaria maléfica, do veneno e do filicídio, podemos pensar na personagem Medeia pelos subtextos que sua história proporciona. É importante lembrar que o contexto de apresentação do teatro grego era como um evento cívico, com bases religiosas, obrigatório em Atenas. Toda a pólis deveria assistir a essas peças que sobreviveram hoje como “o melhor do teatro grego”, e a muitas outras que se perderam no tempo. Com isso, é importante perceber que as obras precisavam representar questões importantes da vida grega. O papel da mulher é uma questão clara que podemos perceber em Medeia. Apesar disso, Medeia não é exatamente o modelo de mulher grega que o governo ateniense gostaria de propagar às plateias femininas. Medeia é, na verdade, uma completa estrangeira, vinda de uma região geograficamente distante, com costumes e comportamentos verdadeiramente bárbaros, uma mulher assustadora. Não assustadora simplesmente pelo ato do filicídio, que, por mais que seja reprovável, é um ato que se encaixa no campo do familiar para um público grego com vasto conhecimento das histórias escabrosas da mitologia grega nas quais pais devoram filhos e dão seus filhos como prato principal de banquetes. A feiticeira da Cólquida é assustadora porque, ao ter filhos com um dos últimos heróis gregos, produz uma das últimas linhagens heroicas gregas, para logo exterminá-la. Medeia é, na verdade, uma bruxa assassina de heróis, quando o único comportamento que honra de fato uma mulher é ser uma boa mãe, boa esposa, boa dona de casa, boa detentora dos costumes da sociedade. 

A feiticeira não age por diversão, é claro. É, na verdade, possível observar durante a peça de Eurípides diversos momentos em que a mãe mostra afeto pelos filhos e hesita quanto a prosseguir com seu plano. Porém, sua necessidade de se vingar do marido e impedir que seus inimigos a vejam como uma piada prevalece. A feiticeira reconhece no ato de traição de Jasão o rompimento de juramentos sagrados feitos sob o testemunho da deusa Hécate, sua matrona, deusa lunar e, por isso, ligada aos ritos da fertilidade e do parto. Medeia parece querer o reconhecimento da lei que prevaleceu na Grécia antes da instituição da democracia, no qual a família era o centro vital a ser protegido. Já Jasão, herói grego, opera pela lei que naquele momento rege Atenas, a lei da pólis, que leva em conta o cidadão grego, o homem grego, como individualmente importante. Seu abandono à esposa significa que Medeia será abandonada à própria sorte, na medida em que, na Grécia Antiga, a mulher está sempre subordinada a um homem, seja seu pai, marido ou irmão. São estas figuras que negociam o corpo da mulher entre si, determinando, como a própria Medeia descreve, “um dono a nosso corpo”. Ao quebrar essa corrente matrimonial, Jasão abandona Medeia sem um “tutor legal”, já que, ao trair sua família para fugir com o herói, a feiticeira não tem para quem voltar. A bruxa desabafa: “[...] me arrastou à terra estranha, sem mãe e sem irmãos, sem um parente só que recebesse a âncora por mim lançada na ânsia de me proteger da tempestade”. Medeia torna-se claramente arrependida de sua fuga da Cólquida, que a levou para ser uma prisioneira em outro canto do mundo. Abandonada e ofendida religiosamente, Medeia vê sua motivação para vingança brutal. 

Medeia, por Frederick Sandys (1868)

Antonio Candido interpreta o uso da tragédia pela função de “fazer uma denúncia, alertando para a emergência de antigos saberes integrando novas práticas sociais como o uso do conhecimento mágico das ervas e  filtros  para  atender  desejos individuais”. Em uma época em que Atenas enfrentava pestes e guerras, a magia era uma prática que crescia na cidade e assustava algumas pessoas. Ao mesmo tempo, devido a esses eventos, a cidade sofreu um grave problema de baixa demográfica, e ficava a cargo de um grupo social específico resolver uma questão dessas. Um grupo social específico que constantemente sofria com problemas maritais e patriarcais, no que a própria Medeia discursa para o coro, nesta peça composto por mulheres idosas coríntias (versos 255 à 300), “O meu marido, que era tudo para mim – isso eu sei bem demais —, tornou-se um homem péssimo. Das criaturas  todas que têm vida e pensam, somos nós, as mulheres, as mais sofredoras”. As mulheres gregas podem sentir simpatia por Medeia, por se identificarem com suas dores, que a elas são também cotidianas. Porém, de forma alguma desejariam agir como ela, através de atos bárbaros, correndo o risco de se tornarem uma pária por não cumprirem com seus deveres femininos na pólis. Elas nunca desejariam ser bruxas bárbaras como Medeia.

Medeia se vinga da forma que irá mais afetar Jasão. Maria Amália Longo Tsuruda aponta que “A descendência tinha suma importância na sociedade grega porque se esperava que os filhos se encarregassem dos cuidados e da manutenção de seus pais na velhice e eram a garantia da realização dos rituais devidos aos mortos”. Derramar o sangue dos inocentes torna-se maior do que o ato em si, mas um símbolo da destruição de um preceito patriarcal. Ao matar seus filhos e sua futura esposa, a feiticeira destrói as chances do ex-marido de possuir descendência. Sua ligação com Hécate e Circe e seu conhecimento dos venenos tornou Medeia uma bruxa misteriosa, obscura e cruel na tradição clássica. Tenebrosa por romper com seu papel materno “natural” e por envenenar os símbolos de um Estado grego em crise, a princesa bárbara solta um grito furioso contra a ordem patriarcal que destina às mulheres à passividade.

Bertha, a assombração no sótão

Já no século XIX, em Jane Eyre, de Charlotte Brontë, outra personagem sobrenatural emerge do texto na figura da misteriosa e fantasmagórica Bertha Mason. Um dia casada com o sr. Rochester, a moça é dada como louca e é isolada da sociedade ao ser trancada no sótão da mansão Thornfield Hall, tornando-se um verdadeiro espírito vingativo, perfeito para este casarão, cinzento, isolado e assombrado pelas memórias do passado. Na história de Jane Eyre, um romance tomado por referências góticas e sombrias, temos Bertha representada como esse ser demoníaco, um fantasma que se esconde por trás das paredes, uma criatura de outro mundo, que solta risadas assustadoras no calar da noite, ataca violentamente desavisados e incendeia cortinas no quarto dos que dormem tranquilamente. Ao lermos esta personagem somente pela ótica de outros personagens, o que vemos da mulher é essa figura digna de filme de terror que, numa primeira leitura, pode nos fazer baixar o livro cuidadosamente para checar se Bertha não nos espreita no canto escuro do quarto.

Agora, uma nova visão trazida principalmente pelo desenvolvimento da crítica literária pós-colonial do século XX, nos faz rapidamente prestar atenção em diversas nuances do texto de Brontë que trazem uma nova perspectiva à personagem Bertha. Essa nova visão é trazida também pelo romance pós-colonial da autora dominicano-britânica Jean Rhys, que configura uma espécie de prequel da obra de Brontë, Vasto mar de Sargaços. Estrangeira e longe de casa, como Medeia, Bertha é indicada pelo texto como uma mulher mestiça da Jamaica, à época um território inglês, cuja família fez acordos de casamento, com interesses econômicos, para que a moça se casasse com o nobre Rochester. O futuro marido de Jane Eyre arrepende-se amargamente de seu primeiro matrimônio ao perceber o que ele considera ser a loucura que corre nas veias da família de sua recém noiva. Se analisarmos, no entanto, alguns dos problemas listados pelo distinto senhor inglês, podemos questionar um pouco essa classificação de loucura, principalmente ao pensarmos no trabalho do Império Britânico em reproduzir um discurso muito específico diante de suas colônias. 

Primeiro, é interessante notar como Rochester enfatiza o fato de que a mãe de Bertha é uma mestiça, e não só isso, mas uma louca e uma bêbada, algo que Bertha teria copiado de sua progenitora. O fator da mestiçagem é muito chamativo para nos fazer questionar a visão de um homem inglês imperialista que, ao ganhar dinheiro viajando pelas colônias inglesas, não deve ter a mentalidade mais progressista e esclarecida do planeta. O estereótipo do negro que bebe, que é indolente, e que é extremamente agressivo, é algo profundamente difundido pela mentalidade colonial. A mulher negra, como poderíamos supor que tanto Bertha quanto sua mãe o são, é até hoje vítima dessa imagem da agressividade e bestialidade. A mulher negra está sempre irritada, é sempre violenta. Neste sentido, podemos ver que a animalização de Bertha não é gratuita. Essa mulher com longos e selvagens cabelos escuros, “volumoso e desgrenhado como uma juba”, que andava de um lado a outro rastejando sobre pés e mãos, e rosnava como um animal selvagem , como é descrita pela primeira vez claramente Bertha nas palavras de Jane, surge como uma óbvia besta demoníaca que nunca poderia ser aceita na sociedade inglesa. Ela agride tanto a seu irmão, que no romance de Jean Rhys aparece como uma das partes interessadas na negociação de seu casamento, quanto ataca raivosamente seu próprio captor e marido. Bertha tem raiva, está furiosa, e sua fúria de mulher duplamente silenciada, pelo patriarcalismo e pelo colonialismo, é representada como uma possessão demoníaca e espiritual, cuja risada teremos medo de ouvir quando a noite estiver silenciosa demais.

O professor Marcos Stulzer de Almeida compara Bertha à figura célebre do mito de Lilith. Ambas são representadas como criaturas demoníacas, primeiras esposas que, ao se rebelarem contra o autoritarismo do homem que acompanhavam, recusarem a submissão e a passividade, são expulsas da sociedade de que participavam. Podemos ver no romance de Charlotte Brontë até algumas indicações da possível sexualidade de Bertha, quando Rochester revela à Jane que sua primeira esposa o arrastava a agonias aterradoras e degradantes, na medida em que Bertha era uma mulher destemperada e  incasta. Lilith é jogada para fora do Jardim do Éden, e Bertha é trancafiada em um sótão soturno. Ambas as mulheres irão, a partir disso, buscar uma vingança agressiva, sombria e noturna, o que novamente nos remete aos procedimentos de Medeia. Enquanto Lilith percorre a noite assassinando homens e crianças em seu sono, Bertha percorre os corredores de Thornfield Hall enquanto todos dormem, em busca de escapatória, mas sem deixar de tentar causar algum caos aos moradores daquela casa, principalmente ao homem responsável por seu cativeiro.

Ilustração de Bertha por F. H. Townsend (1847)

A obra teve uma recepção complicada na época de sua publicação, na medida em que suas tentativas de desafiar o papel feminino na sociedade vigente eram algo que desconcertou o seu público. A história de Brontë era violenta e rebelde. Por conta disso, Jane Eyre foi tomado pelo movimento feminista mais tarde como essa obra proto-feminista, que pensava questões de libertação da mulher em uma época na qual isso era extremamente difícil, na leitura das muito válidas reflexões que Jane Eyre faz sobre sua própria realidade. No entanto, podemos nos perguntar, hoje, para que mulheres este feminismo estava servindo. Hoje, época em que buscamos ter uma visão muito mais interseccional das discussões sobre os direitos negados à mulher, é importante enxergarmos Bertha e pensar suas ações, questionar o seu ato de assombrar.

A famosa citação da protagonista de Jane Eyre, “Não sou um pássaro; e não há rede que me prenda; sou um ser humano livre, com uma vontade independente que agora exerço para deixá-lo”, é muito interessante se pensarmos não pela perspectiva da mocinha, mas pela do fantasma que agoniza acima de sua cabeça. Jane solta essa fala ao responder Rochester, que pede à moça que não lute como um pássaro selvagem e violento que arranca as próprias penas em desespero. Bertha é um ser humano, e foi, na verdade, uma mulher linda e desejada em Spanish Town, e seu casamento a reduziu a um animal assustador que anda nas sombras e ri loucamente em acessos de insanidade. Mas nos momentos em que está sã, tenta exercer sua humanidade, sua vontade independente, e fugir de Thornfield Hall. E toda vez isso é impedido por aqueles que não veem uma moça mestiça e voluntariosa como um indivíduo digno de humanidade. Podemos apenas conjecturar o quão enlouquecedor é ter passado quase uma década neste jogo, e retornar toda vez à condição de pássaro enjaulado. Como não lutar como um pássaro violento e selvagem, e talvez numa melhor escolha de palavras, desesperado, ao ser privada de sua liberdade? No entanto, sentir intensamente sempre foi algo indecoroso para mulheres. Bertha, então, arranca suas asas em agonia. 

O final de Bertha, sua vingança final de queimar a jaula que a manteve cativa por tanto tempo, é consumada com a tentativa de encontrar a liberdade através do voo. Bertha joga-se do telhado de Thornfield Hall e respira um ar diferente daquele de dentro do sótão por uma última vez, e então bate fatalmente no chão. É possível enxergar o suposto suicídio de Bertha como um ato simbólico de libertação, um ato de resistência contra o que a oprime, e, contudo, pode-se concordar que seria muito melhor não ter que chegar a extremos. Jane Eyre acredita libertar a si mesma, e pode viver outro dia. Por mais que Jane tenha sido mal recebida pela crítica de sua época, por virar as costas para determinadas normas patriarcais, a jovem preceptora não precisa morrer para encontrar sua felicidade. É, na verdade, trágico perceber como a felicidade desta mulher branca vem exatamente da destruição da mulher não-branca. Enquanto Jane pode sonhar com sua liberdade de voar fora da gaiola, Bertha não tem essa mesma sorte. Ela é um espírito que precisa ser exorcizado sem piedade em prol da continuação da normatividade social alheia.

Carrie, o demônio sangrento 

Num momento mais recente, outra criatura demoníaca surge na imagem de uma jovem adolescente de um subúrbio estadunidense. Carrie, do romance homônimo de Stephen King de 1974, impressiona a todos até hoje com o seu ato final de vingança no baile da escola, principalmente por sua violência e pela estética especialmente macabra trazida nas suas adaptações cinematográficas. Após anos de humilhação e repressão que vinham de todos os lados na cidade onde vivia, a jovem que ao atingir a puberdade desenvolve poderes telecinéticos, explode em um rompante de ira ao ser mais uma vez constrangida na frente de todos levando um banho de sangue de porco quando é coroada rainha do baile. Sendo esta a gota d’água para Carrie, a moça incendeia o ginásio da escola e causa a destruição de toda a sua classe e dos azarados que se encontravam naquele lugar em uma irrupção de todos os sentimentos que vinham sendo guardados de forma passiva e comedida. Nesse sentido, Carrie é revelada como esta figura monstruosa do caos, um verdadeiro demônio se pensarmos nas relações cristãs que são frequentes no livro. Quase uma bruxa possuída, Carrie é uma adolescente dominada pela fúria tempestuosa que grita para finalmente mostrar que existe e que é também alguém que sente e que não pode ser oprimida para sempre.

No entanto, a narrativa de Carrie se faz nos eventos que antecedem o baile. Cada momento de violência sofrido pela menina, seja proveniente de seus colegas de classe ou de sua própria mãe, constroem uma gradação progressiva que culmina na explosão da personagem. O corpo de Carrie é a principal questão posta em cena. Um corpo adolescente e em formação que provoca o riso dos outros adolescentes, porque adolescentes são criaturas cruéis. Um corpo que começa a menstruar e se disponibiliza para a iniciação sexual é algo que provoca ojeriza na mãe religiosa. A experiência feminina é exaustiva, principalmente quando se é atacada por todos os lados e não há um lar receptivo para onde voltar, onde se possa chorar em paz. Podemos pensar no conceito muito falado e pouco executado de sororidade quando as colegas de Carrie riem e jogam absorventes na menina que está apavorada na sua ignorância sobre o processo de menstruar. Mulheres são postas umas contra as outras desde o início dos tempos como forma de enfraquecê-las diante da manutenção do poder patriarcal. Essa educação violenta começa na juventude e impõe regras rígidas da moral que afetam muito mais as mulheres do que os homens. Ao ver Carrie como um alvo fácil de ser eliminado, essas meninas não pensam duas vezes em torturá-la cruelmente, sem medir esforços para ridicularizar e excluir a menina da sociedade. Diego Paleólogo aponta o bullying como uma prática encantatória e ritualística, na medida em que a repetição da violência verbal e física são atos de ignição para os poderes sobrenaturais da protagonista. De fato, se observarmos o início desta história, uma das expressões utilizadas para descrever Carrie no chuveiro rodeada de outras garotas é “o próprio bode de sacrifício”. A última etapa deste longo ritual de sacrifício adolescente em prol da manutenção patriarcal é o sangue de porco, que transforma Carrie no monstro destrutivo do baile.

Na mesma medida, Margaret White, mãe de Carrie, não é nada facilitadora no papel de desenvolvimento de sua filha. Reprimindo tanto a si mesma quanto a filha por fazer interpretações deturpadas dos ensinamentos bíblicos, a mulher torna quaisquer comportamentos que ela considera desviantes em pecado. A partir disso, Carrie é criada de forma a ter comportamentos estranhos para o mundo exterior a que vive com sua mãe, e é, por conta disso, vista como estranha. O sangue é grande questão para Margaret, na medida em que transforma a jovem em uma mulher apta ao sexo, e vemos que o vermelho e o sexual são problemas de grande incômodo quando esta mãe critica o vestido vermelho com decote que Carrie escolheu para sua ida ao baile. A vida sexual é uma grande maldição e a mesma mãe que escolhe não avisar uma jovem de 17 anos sobre a existência da menstruação é uma mãe que estabelece a atividade sexual como um crime da dignidade e da integridade de uma adolescente. Ainda assim, mesmo que Carrie busque viver à maneira decidida pela mãe por ser aterrorizada em casa, a adolescente não consegue escapar do sentimento que Margaret sente por ela, uma profunda rejeição, porque aquela menina é o maior símbolo de que ela mesma é uma pecadora. Nesse sentido, não há para onde fugir, não há lugar que aceite Carrie e que a deixe tentar ser alguém além do cumprimento de normas morais e supraindividuais arbitrárias.

É interessante perceber como a menstruação é o pontapé inicial para que os poderes de Carrie, que já eram presentes antes, porém latentes, se manifestem de fato de forma estrondosa. Como já foi bem dito em outro texto do Querido Clássico (Carrie White e a monstruosidade feminina), o ciclo menstrual é comumente relacionado a um certo ganho de poder da mulher. Da mesma forma, está relacionado às práticas de bruxaria por proporcionar visões, além de relacionar-se historicamente com as fases da lua e, portanto, com questões da natureza que normalmente são relegadas ao campo do imaginário da bruxa. No caso desta narrativa, a relação à bruxaria é feita pelo signo do diabólico e da perversão. Os poderes de Carrie são carregados pela ideia do demoníaco. O ato de menstruar, que normalmente indicaria a possibilidade da reprodução, da criação de vida, para Carrie significa a possibilidade de causar destruição. Em Carrie, temos esse movimento de monstrualização da garota, que, ao menstruar, parece separar-se do meio humano e divino das mulheres, como espera-se que surjam no imaginário patriarcal. Na cena inicial em que Carrie é descrita no chuveiro após a educação física, uma cena que na adaptação de 1976 foi analisada por alguns pesquisadores como semelhante a um banho de ninfas, percebe-se que a personagem protagonista é, diferentemente das outras jovens tagarelas, apenas narrada, e demora a ter falas próprias. Mesmo depois do momento da menstruação, quando suas colegas gritam e riem, os únicos sons que Carrie produz são da ordem do não-humano. Ela grunhe, grita, gorgoleja, geme, mas não fala. Sempre apresentada como diferente dos outros, Carrie carrega a cruz da sobrenaturalidade e da estranheza não por ter habilidades telecinéticas, mas por ser a jovem menina em formação que é em um mundo onde não há espaço para ser nada além do que espera-se dela.

Encarcerada pela estrutura social que a rodeia, assim como Medeia e Bertha, Carrie deseja perturbar a norma imposta e vingar-se de seus carcereiros, e é isso que faz. Exausta de todo o sofrimento, a menina libera todo o seu ódio e fúria em cima daqueles que lhe fizeram mal, em movimento quase catártico. Seu surto final é sua tentativa de romper com esse sistema defeituoso, que falha não só com Carrie, mas com muitas garotas tentando crescer em um mundo que não foi feito para elas. Este romance, que pode ser entendido como uma tentativa de denunciar a crueldade humana, pode também ser lido como o relato da existência solitária das meninas dentro da nossa sociedade, uma condição que as leva ao limite. O romance, após os eventos do baile, ainda deixa claro que mesmo depois da morte de Carrie a cidade ainda considera a jovem uma estranha, uma bruxa, demoníaca.

Fúria feminina como força 

O horror contido nas ações dessas mulheres após serem constantemente violentadas pelo sistema que rege suas vidas nos faz pensar. É claro que os exemplos analisados aqui são formas catárticas que vemos reproduzidas na literatura do “chegar ao extremo”. Emily Tom, no seu texto the craze for feminine rage: why we love to see women angry, vai dizer que assistir a essas personagens executando suas catarses de fúria é uma forma de gritar com o rosto no travesseiro, termos nós mesmas as catarses de forma indireta. Temos clara noção de que estamos testemunhando ficção, e podemos utilizar a arte como nossa forma de nos sentirmos validadas nas nossas emoções para, talvez, retornar ao mundo real em paz. A raiva feminina sempre foi um inconveniente, algo de que devemos nos envergonhar. Essa imagética do feminino produziu monstros literários que são citados por décadas como a lembrança de que uma mulher furiosa é um monstro. Lilith reproduzida um milhão de vezes para que a humanidade se lembre da face negativa do feminino em contraposição à Eva. E, no entanto, lembremos que essa face demonizada do sexo feminino é produção intencional que serve aos interesses e aos propósitos de alguém. Mulheres são forçadas a enxergar Jane Eyre contra Bertha Mason. A vexar jovens que parecem diferentes em um ritual eterno e cíclico de humilhação e sangue. Pouco se lembrava que bruxas insanas como Medeia são, como é dito na obra Mulheres, mitos e deusas, de Martha Robles, potência na luta contra as determinações dos deuses, que preferem a dor, o enfrentamento ou a morte à humilhação de se render à fatalidade. É bom observarmos que de vez em quando os ciclos se rompem, e, pelo menos entre as garotas, mulheres que expressam sua dor não precisam ser vistas como monstros, mas como grandes forças da natureza, e no mínimo, como arte. 

Referências 




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Comentários

  1. Eu AMEI esse texto! Nunca tinha parado pra fazer uma analise como essa da situação dessas três mulheres, especialmente da Bertha. Adorei!

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