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Corpos incorruptos e a caça aos vampiros na vida real

Todos nós morreremos. A morte é a única certeza da vida, e dela podemos esperar a finitude completa do ser biológico. Após a morte, nossos corpos começam a se decompor, num processo chamado de autólise, que inicia duas horas depois da morte e se dá em todas as células do corpo, fazendo com que elas se destruam espontaneamente. Esse mecanismo facilita o trabalho das bactérias, que entram em ação logo em seguida, acabando com o resto da matéria orgânica. A partir disso, o processo se acelera, levando em média duas semanas para que o corpo entre no estágio chamado de “restos mortais”, em que o que sobra são ossos e cabelo, sem mais pele ou carne. Entretanto, apesar de esse ser o processo padrão, há corpos que simplesmente parecem desafiar a natureza, permanecendo intactos como se tivessem morrido naquele instante, mesmo anos após o falecimento. Tais corpos são chamados de incorruptos. 

Os corpos incorruptos na história 

Corpos incorruptos são aqueles que não avançam os estágios de decomposição, permanecendo inalterados sem qualquer recurso de embalsamamento. Existem alguns casos que se tornaram bem famosos, geralmente envolvendo a Igreja Católica. Um deles é o do Padre Pio. Ele foi um frade italiano da ordem dos frades capuchinhos que, em vida, era conhecido por realizar milagres e ser capaz de levitar e se bilocar, ou seja, de estar presente em dois lugares ao mesmo tempo. Quando morreu, Padre Pio foi velado durante muitos dias, como é costume para os integrantes sacerdotais da Igreja Católica, tendo sido enterrado em setembro de 1968. Em 1982, foi iniciado o processo na igreja para que ele fosse canonizado, tornando-se um santo. Mas somente em 2002, o processo foi concluído, tendo sido canonizado na Praça de São Pedro, no Vaticano, pelo Papa João Paulo II. No aniversário dos quarenta anos de sua morte, em 2008, o corpo de Padre Pio foi exumado e constataram que, durante quatro décadas, ele não havia se decomposto. Desde então, seu corpo está em exibição pública na cripta da igreja de Santa Maria das Graças, em San Giovanni Rotondo, na Itália, e todos os que vão lá podem vê-lo como se ainda fosse 1968. Em perfeito estado, o corpo de Padre Pio permanece preservado, e os fiéis consideram isso um milagre divino.

A Igreja Católica possui uma lista consideravelmente grande de corpos incorruptos, geralmente associados à santidade. Em 2001, foi iniciada uma investigação sobre esses corpos, reunindo diversos peritos e legistas para examiná-los. Concluíram que, em alguns casos, a incorruptibilidade era consequência do cuidado durante os ritos fúnebres, como no caso do Papa João XXIII, que faleceu em 1963 e foi exumado trinta e oito anos após a morte, tendo sido encontrado em perfeitas condições, como se tivesse morrido naquele dia. Quando analisaram melhor, descobriram que a causa da extraordinária preservação do corpo se devia ao fato de que, em decorrência dos cinco dias de cerimônias fúnebres que a Igreja Católica solicita quando um membro morre, seu corpo havia sido banhado em substâncias químicas para se manter em bom estado durante esse tempo. Em reportagem especial para a revista Época, o legista da Universidade Católica de Roma, Vincenzo Pascali, declarou que “o oxigênio não podia entrar no ataúde de chumbo, o que impediu o apodrecimento”. Casos assim não são exclusivos do catolicismo, mas são mais conhecidos através dos ritos de exumação deles por esse ser um costume da instituição. Outros casos que ficaram famosos não possuíam associação com a igreja, como o corpo incorrupto de Katherine Parr.

Katherine Parr foi a sexta esposa do rei Henrique VIII da Inglaterra. Morta em 1548, a antiga rainha teve seus ritos fúnebres da época cumpridos, tendo sido enterrada alguns dias após a morte em um caixão de chumbo que moldava seu corpo. Antes disso, ele havia sido lavado com líquidos desinfetantes e envolto em camadas de cerecloth, um tecido encerado próprio para funerais nobres da época. Ao longo dos anos, o castelo de Sudeley, onde viveu e foi enterrada, foi abandonado e se tornou em ruínas, perdendo o uso e a glória dos tempos antigos. Dois séculos depois, em 1780, quando não restava quase nada das ruínas do castelo que pudesse lembrar o passado majestoso que o lugar já tivera, o terreno foi vendido e o novo dono encontrou um caixão enterrado a uma profundidade de dois pés. O nome do novo proprietário era John Lucas, e ele, curioso para saber a quem pertencia aquele caixão em suas terras, abriu a tampa. Há registros em cartas que descrevem que John Lucas lá encontrou um corpo em perfeito estado, como se ainda estivesse vivo, apenas dormindo. Ele retirou o tecido que cobria o corpo e, curioso, fez um corte em um dos braços do cadáver, cuja carne estava branca e macia. Satisfeito com a descoberta intrigante, John Lucas fechou o caixão e foi embora. Alguns anos depois, no verão de 1783, o narrador por cujo diário sabemos do ocorrido teve de entrar novamente naquelas terras, agora não mais acompanhado de seu patrão, mas sim de seu filho. Curioso para verificar se o corpo ainda estava lá, ele e o filho abriram novamente o caixão. Mas, de acordo com o registro dele, o corpo já estava com mau cheiro e o lugar onde John Lucas havia cortado estava marrom e em estado de putrefação em consequência do ar que havia entrado no ataúde. Eles notaram, antes de lacrar a sepultura com uma laje de pedra, que havia uma inscrição lá dentro. Copiaram o que estava escrito e foram embora. No entanto, em seu diário permaneceu o registro do que lá estava escrito em uma placa de chumbo: "aqui jaz a rainha Katherine, esposa do rei Henrique VIII, e esposa de Thomas, Lorde de Sudeley, alto almirante da Inglaterra e tio do rei Eduardo VI. Morta em 5 de setembro de 1548". Como prova, o violador do túmulo cortou uma mecha de cabelo e arrancou um dente de Katherine Parr, que ainda hoje se encontra exposto no museu do castelo de Sudeley.

Um caso mais recente é o de Miranda Eve, o corpo de uma menina de três anos encontrado em um jardim em São Francisco, nos Estados Unidos. Há fotos nas quais se pode ver o corpo em perfeito estado de conservação, como se se tratasse de uma boneca deitada em um caixão com uma tampa de vidro. Não se sabe exatamente o que preservou o corpo, mas após uma investigação cuidadosa de peritos e legistas, foi revelado que Miranda Eve na verdade se chamava Edith Howard Cook, morta em 1876, e encontrada em 2016, durante uma reforma da casa no lugar onde havia sido enterrado o corpo da menina, num antigo cemitério desativado há quase sete décadas. O caso comoveu os moradores da cidade de São Francisco, assim como muitas pessoas na internet, já que foi amplamente coberto pela BBC. No entanto, apesar do espanto geral em encontrar um corpo morto há quase um século e meio em perfeito estado de conservação, não há nada de extraordinário no caso. Com exceção da Igreja Católica, que pelos seus costumes realiza exumações periódicas em certos mortos que em vida foram pertencentes ao sacerdócio, e casos como o de Miranda Eve e Katherine Parr, cujos corpos são achados por coincidência, não temos o costume de desenterrar os nossos mortos para verificar em qual estágio de decomposição se encontram seus corpos. Mas nem sempre foi assim.

Os surtos de tuberculose e o desenterro dos mortos  

No século XIX, uma longa epidemia de tuberculose se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos. A doença, até então associada ao Romantismo, a poetas e intelectuais, passou a ser vista como uma verdadeira maldição por algumas pessoas. Enquanto o cientificismo crescia e a tratava como uma doença capaz de ser curada por longas estadas em hotéis situados nas montanhas, superstições relacionavam o estado do tuberculoso com algo muito mais sombrio, algo vindo diretamente do túmulo.

O que precisamos entender sobre o passado é que não havia as explicações científicas e confiáveis que temos hoje a respeito do funcionamento do mundo e das doenças. Embora ainda atualmente há quem duvide da ciência, por muitos séculos as pessoas sábias dos lugares eram aquelas com conhecimentos astrológicos ou padres, que não possuíam muita instrução para além da Bíblia. E nós precisamos de respostas, sempre precisaremos. Quando não encontramos uma, arranjamos algo que possa explicar aquilo que não conseguimos entender logicamente. E um corpo que não se decompõe até hoje é algo difícil de entender.

Por muito tempo, quem tinha tuberculose era suspeito de ser um vampiro. A doença consome o corpo, fazendo com que a vítima definhe até o ponto de ficar com a pele cinza e olheiras profundas, com sangue escorrendo pelas bordas da boca e retração das gengivas, causando a sensação de dentes maiores. Não era raro que, após a morte dessas pessoas, membros da comunidade local violassem o túmulo do suposto vampiro, encontrando muitas vezes o corpo ainda incorrupto, sem sinais aparentes de decomposição. A crença no vampiro levou à exumação de centenas de corpos na Europa e Estados Unidos. Geralmente, se acreditava que o homem vampiro era um predador sexual que, além de sugar a vitalidade da vítima, também se aproveitava sexualmente dela. Essa crença se originou do fato de que, ao abrirem os túmulos dos cadáveres suspeitos de vampirismo local, as pessoas encontravam muitas vezes os pênis dos corpos eretos, como se tivessem tido relações sexuais recentemente. O que não se sabia é que esse é um efeito comum do pós-morte. Já as mulheres, na cultura ocidental, eram mais relacionadas a doenças. Acreditava-se que se mantinham vivas causando doenças nos membros da família, literalmente sugando a vida de cada um deles, um por um. Não é de se espantar, portanto, que tantos túmulos foram violados. Com as epidemias de tuberculose e famílias inteiras morrendo em decorrência da doença, é claro que esse mito seria estimulado no pensamento das pessoas.

O caso mais documentado de um surto de vampirismo aconteceu em 1732, na Sérvia. Um Arquiduque chamado Arnold Paole matou quinze pessoas, e pelo menos sete delas viraram vampiras. A afirmação de que ele era um vampiro vem da exumação do corpo: lá, ele foi encontrado com o rosto corado, sem sinais de apodrecimento e com movimentos espasmódicos. Claro que hoje sabemos que nada disso é motivo para suspeitar de algo sobrenatural, mas naquela época isso era mais do que o necessário para considerar alguém um vampiro. Era tão comum exumarem túmulos que o Papa Bonifácio VIII, em 1302, promulgou uma lei contra esse hábito detestável. E, em 1755, a imperatriz austro-húngara Maria Tereza proibiu terminantemente que violassem os corpos dos mortos na caça aos vampiros. Mas nada disso adiantou, e o método de extermínio vampírico continuou ao longo dos séculos.

O mais assustador é que esse costume continua presente em algumas regiões. Em 2003, Petre Toma, um homem considerado líder do clã do vilarejo onde morava, na Romênia, faleceu. Após a sua morte, algumas pessoas da família de Petre começaram a ficar doentes. A sobrinha dele, Mirela Marinescu, contou que viu Petre em sonhos e que ele a atacara. O filho e o marido de Mirela também adoeceram, e não demorou muito para que o povo do vilarejo juntasse as peças. No começo de 2004, seis homens se reuniram e foram até o cemitério. Chegando lá, desenterraram o corpo de Petre Toma. Assim que o corpo estava fora do caixão, eles o abriram, retirando o coração que, de acordo com testemunhas, estava cheio de sangue fresco. Já com o coração fora do corpo do suposto vampiro, aqueles homens o levaram para fora do cemitério e queimaram o órgão, recolhendo as cinzas e misturando-as com água. A água com as cinzas do coração virou um tônico, que a família de Petre Toma bebeu para se livrar da doença causada pelo vampiro. De acordo com jornais, como The Guardian, todos os membros da família Marinescu melhoraram após beberem o coração de Petre Toma.

É assustador pensar que isso aconteceu há menos de vinte anos. A notícia se espalhou pelo mundo não apenas pelo fato macabro, mas também por ter acontecido na Romênia, terra do Drácula e das lendas de vampiros mais conhecidas aqui no ocidente popular. Marinescu e os homens que o acompanharam foram pegos na exumação não autorizada e profanação do cadáver, mas nem todos são apanhados. Ainda existem pessoas que acreditam ser vítimas de vampiros. E é bem provável que o mito tenha sobrevivido com tanta força por causa da influência literária e de produções culturais que beberam da fonte de histórias estranhas sobre corpos que não se decompõem e pessoas que adoecem. Uma dessas histórias, que inspirou diversas outras, aconteceu no século XIX, no interior dos Estados Unidos.

Em 1882, Mary Brown, a esposa de um agricultor chamado George Brown, de Rhode Island, morreu por consumição. Essa palavra não é mais usada há muitos anos, mas até aquele momento era assim que a tuberculose era chamada, justamente por seu efeito terrível que causava em suas vítimas, consumindo suas forças até o fim. Cerca de 80% das pessoas que contraíam tuberculose naquela época morriam logo, e não era nenhum choque que Mary Brown tivesse padecido. O problema foi que, com o passar dos meses, outras pessoas da família Brown começaram a adoecer. Um ano após a morte de Mary, a filha mais velha dela, Mary Olive, também morreu da mesma doença. A família obviamente estava muito abalada pela perda de dois membros em tão pouco tempo, mas aquela era a época em que viviam e eram poucas as famílias que não haviam perdido alguém para a consumição. A vida seguiu em frente e, alguns anos mais tarde, foi a vez do filho da família, Edwin Brown, adoecer. Como ele já havia visto a forma como a doença se desenrola, Edwin se mudou para Colorado Springs, local conhecido por seu clima seco, que na época se pensava ser curativo para a tuberculose. Durante alguns anos ele permaneceu lá e, embora não parecesse muito bem, ao menos estava vivo. Mas, um dia, ele retornou a Rhode Island e, em dezembro de 1891, piorou consideravelmente. Seja pelos cuidados recebidos em Colorado Springs, seja por outro motivo, Edwin resistia, ainda que fraco. Porém, sua irmã mais nova não teve a mesma sorte. Mercy Brown adoeceu com o que chamavam de tuberculose galopante, por seu caráter rápido e letal, consumindo as forças da pessoa em questão de dias. Em janeiro de 1892, Mercy Brown estava morta.

Da família Brown, só havia sobrado Edwin, que estava de cama, ainda sofrendo de consumição, e George Brown, o patriarca que perdeu todas as filhas e a esposa para a doença, que mais parecia ser uma maldição. E era isso mesmo que o povo do local começou a pensar. Afinal, uma doença tão terrível acabar assim com uma família inteira, parecia realmente algo estranho até mesmo para as altas taxas de mortalidade da época. Convencido por pessoas da cidade de que a doença que levara a maior parte da família não era física, mas de causa sobrenatural, George Brown fez algo que a maioria de nós pode achar impensável. Em 17 de março de 1892, ele e um grupo de homens foram até o cemitério local e desenterraram os corpos das mulheres da família Brown. Túmulo a túmulo, aqueles homens retiraram a terra, as tampas dos caixões e examinaram os corpos lá dentro. O objetivo? Saber se alguma delas não estava completamente morta, tendo tomado a forma de vampira, sugando a vitalidade dos membros restantes da família para conseguirem viver no pós-morte. Para aquelas pessoas, isso era verdadeiro e possível. A crença em mortos-vivos é algo muito antigo; basicamente todo lugar e época possui um mito relacionado a vampiros. Mas esse caso ficou famoso por um detalhe macabro: a prova de que precisavam para ter certeza de que uma daquelas mulheres seria a vampira local era que seu corpo não tivesse se decomposto.

O primeiro caixão aberto foi o da matriarca da família, Mary Brown, morta e enterrada havia uma década. Logo as suspeitas sobre ela se desfizeram, assim que eles viram que seu corpo estava em avançado estado de decomposição, como deveria estar, já que ela esteve morta durante todos aqueles anos. O segundo caixão examinado foi o da filha mais velha, que seguiu a mãe no além-túmulo. O corpo de Mary Olive, porém, também se encontrava num estado normal de decomposição. Só havia sobrado o corpo de Mercy Brown para ser exumado. Contudo, havia um detalhe: ela não tinha sido enterrada ainda. Isso pode parecer estranho para nós, já que em março daquele ano, Mercy já havia morrido há dois meses; mas acontece que janeiro é o auge do inverno nos Estados Unidos, o que muitas vezes tornava o enterro impossível de realizar, já que para tal é necessário cavar a terra congelada, retirando a neve e tentando não congelar seus dedos no processo, o que era bem difícil no século XIX. Portanto, o corpo dela estava guardado em uma construção de pedra, que servia como um freezer gigantesco. O que encontraram lá, em tais condições, era justamente o que procuravam: um corpo incorrupto.

Claro, nós sabemos que isso não quer dizer grande coisa, já que só havia se passado dois meses da morte de Mercy e ela estava preservada numa cripta de gelo, basicamente, o que conserva os tecidos e retarda o processo de decomposição. Mas os moradores daquele local, que já estavam convencidos de que a consumição da família Brown era obra de um ser das trevas, um vampiro, não tiveram dúvidas e fizeram o que tinham de fazer. Naquela mesma noite, abriram o corpo de Mercy Brown, arrancaram o coração e o fígado do cadáver, queimaram os órgãos em cima de uma pedra próxima e, com as cinzas, fizeram um tônico. A finalidade do tônico? Supostamente era para ser um remédio para Edwin, o irmão de Mercy Brown, que seria curado do ataque de vampirismo da irmã quando bebesse a cinza dos órgãos dela. Obviamente isso não funcionou, e Edwin morreu dois meses depois de beber o coração e o fígado da irmã.

O caso de Mercy Brown está longe de ser a primeira ou a última ocorrência de exumação e profanação de cadáveres na caça aos vampiros. Mas ele se tornou famoso porque, além de chocante, saiu nos jornais. O New York World publicou a história toda, chamando a atenção de muita gente. Dentre essas pessoas estava Bram Stoker, o autor do mais clássico livro sobre vampiros, Drácula, publicado em 1897, apenas cinco anos depois da morte de Mercy Brown, a primeira vampira estadunidense, e do tônico feito com os órgãos dela. O resto é literatura. 

Referências 



Arte em destaque: Mia Sodré

Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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