últimos artigos

O medo como fonte do sublime: o horror e o terror na literatura e na arte

Quando o nome de Ann Radcliffe é mencionado, é possível que a primeira obra a ser resgatada da memória seja Os mistérios de Udolpho (The Mysteries of Udolpho). A autoria da escritora também paira sobre o ensaio Do sobrenatural na poesia (On supernatural in poetry), texto que adotamos aqui como ponto de partida para a condução de nossas reflexões. Escrito na forma de diálogos entre dois personagens, esse escrito contribuiria para a distinção do gótico feminino e do gótico masculino na literatura; em síntese, essas duas linhas dizem respeito a uma narrativa guiada pelo terror (gótico feminino) ou pelo horror (gótico masculino). A autora explica: 

Terror e horror são tão opostos que o primeiro expande a alma e desperta as faculdades a um grau elevado de vida. O outro as contrai, congela e quase as aniquila.

O horror parece estar mais relacionado a uma reação física diante do evento causador de um espanto: é aquele estado de paralisia que se apodera de nossos corpos quando algo assombroso se coloca diante de nós. O terror está mais próximo de uma antecipação do evento pavoroso que logo ganhará espaço e de como essa inquietação nos leva a vislumbrar caminhos tortuosos para a concretização daquele medo, permitindo alcançar uma certa expansão imaginativa.

A distinção de Radcliffe para terror e horror possui, como plano de fundo, discussões do período que tratavam sobre o teor de violência e o tratamento conferido às personagens femininas na ficção gótica. Radcliffe é mais afeita à insinuação do que à representação gráfica da violência, sendo assim mais inclinada ao terror, embora também tenha acrescentado passagens de horror em suas obras, não colocando a distinção entre as duas possibilidades narrativas como definitiva, firme e precisa. Os contornos delimitados em torno do que seria horror ou terror, então, não seriam tão nítidos e a atuação de ambos poderia ser partilhada por um mesmo texto. Mesmo as expressões utilizadas para tais tradições (gótico feminino ou gótico masculino) foram postas em debate por autores como Daniel Serravalle de Sá. Embora o uso do termo feminino na designação do tipo de ficção possa ser interpretado como uma forma de oferecer pertencimento e identificação, é possível que a palavra também abra margem a um entendimento que posicione apenas o terror como pertinente às escritoras, não encarando o horror como uma possibilidade de escrita por este recorrer a meios menos sutis de expôr os eventos ficcionais mais ásperos. 

Ao propor a “expansão da alma” como um efeito do terror, Radcliffe se aproxima das considerações de Burke acerca do sublime e do medo ao sugerir a imaginação como necessária para a existência da antecipação do horror. O autor considera "o terror [...] em todo e qualquer caso, de modo mais evidente ou implícito, o princípio primordial do sublime". Este trecho acrescenta à nossa discussão a intensidade do terrífico, de forma que tal característica atua como um indicativo de perigo ou dor — do terrível — e esse impacto, capaz de mesmo ameaçar a vida, se constituiria como causado pelo sublime:

Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis, ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz.

Objetos terríveis como obras literárias, que exploram o medo sob sua face ficcional, estariam aptos a desencadear a mais forte emoção em seus leitores? É preciso que o terror seja real para que o sublime exista? Na próxima seção, aprofundaremos essas questões em torno do medo como fonte do sublime.

O medo como impacto que conduz ao sublime

Antes que ele houvesse chegado longe, o poder da tempestade se fez iminente — seus trovões ecoantes mal tinham um intervalo para uma pausa — , sua chuva forte e espessa sulcou um caminho através do dossel da folhagem, quando um raio azul bifurcado pareceu cair e brilhar aos pés de Aubrey [...] Ao desmontar do animal, aproximou-se com a esperança de encontrar alguém apto a guiá-lo até à cidade e confiante em obter, ao menos, abrigo da chuva torrencial.

Neste trecho de O Vampiro (The Vampyre), John Polidori evoca sons e visualidades da tempestade que buscam despertar uma impressão de assombro e força gerada pela presença do elemento natural (“trovões ecoantes”, “raio azul bifurcado”). Também chamando a elementos da natureza que imprimem a ela um caráter terrífico, Longino nos apresenta à descrição textual dos aspectos mais terríveis como um recurso capaz de tornar o discurso sublime. Abrimos parêntese para mencionar que há certa confusão sobre “Dionísio Longino”: o nome poderia se referir a Dionísio de Halicarnassus ou Cássio Longino, conforme o manuscrito mais antigo a mencionar Do Sublime (On the Sublime), datado do século X, mas os nomes dos possíveis autores passaram a ser condensados devido à omissão da partícula “ou”, fato que desencadeou o equívoco.

O autor baseia sua visão de sublime em textos literários, extraindo suas observações a partir de obras épicas (especialmente Odisseia e Ilíada), embora não se restrinja a textos poéticos, citando também discursos e tragédias, ponto que nos leva a compreender o sublime como despertado pela própria arte. O texto literário, nessa perspectiva, poderia ser organizado de modo a atingir o que o autor chama de “grau de elevação” a partir do terrível natural — um sentimento de assombro e de êxtase, distante da ordem do racional: 

O sublime impõe-se com força irresistível e fica acima de qualquer ouvinte.

E dadas tais ideias de intensidade e afastamento da racionalidade não haveria uma fórmula explicativa para a definição do sublime. A construção textual organizada dessa forma poderia levar o leitor a sentir como seu aquilo que lê, dado o sentimento de prazer derivado da ideia de elevação, ocorrida no momento em que o encontro com as palavras respondem ao anseio de perceber, conforme Marta Várzeas. Mas seria possível mesmo atingir o sublime se baseando somente em uma certa forma de redigir um texto? 

A experiência sublime dependeria das intenções do escritor, assim como as do leitor. Como nos explica Yves São Paulo, em Longino, para a composição de momentos de êxtase sublime, o escritor precisaria ter uma disposição intelectiva, também demandando do leitor uma disposição à elevação para notar a singularidade dos momentos narrados. Isso nos permite inferir que Longino considera que nem todos seriam capazes de vivenciar o sublime, mas só aqueles dispostos e capazes de notá-lo. A elevação diz respeito a uma autossuficiência, convocando à liberdade de coisas chamadas por Longino como pequenas (ligadas à materialidade, ao lucro), que impediriam o caminho à elevação. Essa sensação, então, parece não residir exatamente em um nível textual, mas fora dele; poderia ser despertada por uma obra literária, mas nasceria fora dela, dentro de quem a sente.

Longino não nos dá uma definição precisa do que seria o sublime, mas traz fontes que permitiriam produzir um discurso sublime. Dentre elas, temos “a capacidade de produzir pensamentos elevados” e “uma emoção forte e cheia de entusiasmo”. Há, então, esferas do sublime que se relacionam a uma noção de grandeza e a uma emoção forte. A exemplo do terrífico despertado pela descrição da tempestade, o medo, enquanto uma emoção forte, poderia ser encarado como capaz de produzir o sublime, conforme o autor? Apesar de mencionar o assombro, Longino coloca que emoções como “compaixões, desgostos, medos, estão longe do sublime e a um nível mais baixo”, mas Burke colocaria o medo, propriamente dito, em um outro papel dentro do sublime.

Recorremos novamente a O Vampiro para exemplificar eventos que parecem estar mais próximos às ideias trazidas por Radcliffe. No conto, Aubrey teme pela segurança de sua irmã, Miss Aubrey, prestes a casar-se com Ruthven — O Vampiro em questão —, e tenta alertar os demais sobre a real intenção do ser, mas seus avisos são ignorados, enquanto ele imagina e prevê o que ocorreria caso selada a união. Nessas situações, somos apresentados a uma noção de perigo que não é real: não a estamos vivenciando, mas apenas visualizando o cenário de forma distante; não corremos risco. Burke entende essa forma de experienciar a ameaça — atenuada, menos provável — como deleite, sensação que acompanha a experiência do sublime.

Burke parte de considerações sobre prazer e dor para chegar ao terrível e à sublimidade. Ele não vincula a existência de ambos à uma dependência mútua, mas os posiciona como independentes; a cessação da dor, então, não corresponderia ao início do prazer, mas ao deleite, a um alívio. A interrupção do prazer se comportaria de três formas: indiferença, caso o fim surja após o prazer ter se estendido ao longo de um certo período; decepção, quando ele é subitamente interrompido; e pesar, para as situações nas quais não se enxerga mais como possibilidade usufruir do prazer. Pontuando as diferenças, o autor sugestiona a existência de resultados distintos para as ações da dor e do prazer, mas posiciona a dor como a sensação mais intensa por estar relacionada à nossa autopreservação: a visualização de um risco iminente, que põe em xeque a segurança e coloca a figura da morte no horizonte, surtiria o pavor em decorrência do perigo e da dor anunciados. Como as ideias desencadeadas surgem na tentativa de proteger o sujeito, elas seriam compreendidas por Burke como as mais intensas, derivadas do pavor e da dor, como o próprio medo, observado numa situação em que se visualiza risco à vida.

E quando a dor e o perigo se erguem como ameaça, “não podem proporcionar nenhum deleite e são meramente terríveis”, ainda que o efeito doloroso se encontre em uma proporção menor do que a ideia da morte, a “rainha dos terrores”. Então, o que instiga dor e perigo — e consequentemente, o terrível ou relacionado ao terror — é lido como uma fonte do sublime por estar apto a desencadear fortes emoções, em uma descrição próxima àquela feita por Longino sobre a força das emoções. Mas, no momento em que o perigo e a dor se mostram mais atenuados e menos prováveis — como em um romance — o risco real é substituído pelo deleite e os efeitos experienciados pelo sujeito tomam como base o que Burke chama de simpatia (ou empatia), conforme o indivíduo se coloca no lugar do outro e é afetado pelo universo ficcional de forma branda. Porém, o terror em sua forma atenuada, não conectado a um perigo real, a um medo verdadeiro de sentir dor, ainda seria capaz de evocar o sublime?

Nilze Magalhães de Oliveira explica que, em Burke, a expectativa gerada pela ameaça de dor ou pelo prenúncio da morte se atrela a um pressentimento de perigo ficcional que provoca reações físicas próximas àquelas desencadeadas pela dor. O medo de sentir dor, então, possuiria efeitos corporais como os de uma dor efetiva, tensionando os nervos de forma autêntica — “o espectador pode sentir a dor, o terror e ao mesmo tempo, sentir o deleite de não precisar, na realidade da sua vida, viver aquela tragédia”. O sublime de Burke, então, estaria apoiado em uma noção de segurança que permitiria seu surgimento.

Por outro lado, Kant expande a noção empírica do sublime de Burke. Como percebemos em Longino — o sublime parecia estar não no texto, mas no que ele seria capaz de despertar em quem o lê —, Kant defende que um objeto (mesmo sem forma) é capaz de expor uma sublimidade que está na mente, desde que a ilimitação — a ideia de grandeza associada ao sublime — esteja representada nele, diferentemente do belo, vinculado a uma forma. Seria uma busca interna e um modo de pensar que coloca sublimidade na representação não possuidora de formas particulares, mas dentro do julgamento que a própria imaginação faz de suas representações. Mas, dessa forma, o sublime não se encontraria em artefatos que possuem sua forma designada previamente: 

não se deve mostrar o sublime nos produtos de arte [...] em que um fim humano determina tanto a forma como a grandeza [...] mas sim na natureza crua (e isto somente quando esta não traga consigo um atrativo ou emoção baseados em um perigo real) — apenas na medida que ela contém uma grandeza.

Então a produção artística não poderia despertar o sublime?

A questão do sublime na arte

Embora a associação entre sublime e arte pareça usual, certas teorias do século XVIII afastaram a relação entre os dois campos, mas nos concentraremos em demonstrar como essa conexão pode ser conciliada. Como vimos em Longino, o sublime ainda não havia sido colocado em oposição à produção artística, mas Burke, em um primeiro momento, nega a relação entre a pintura e o sublime, como Sulamita Fonseca Lino nos explica. Burke considera que a pintura não seria capaz de despertar o mesmo efeito que a poesia e a retórica, a compreendendo como mimética, e, nesses termos, ela possuiria a clareza da representação como intuito — algo literal, não possuidor do obscuro necessário para o desencadear do sublime. Porém, há um impasse: o autor coloca que, para o sublime, é necessário que haja o terror, surgido a partir da obscuridade. Quando traz o obscuro para as pinturas, ele o coloca em termos de cor, como se os efeitos provocados pelas tonalidades fossem capazes de tornar aquela representação sublime:

Uma montanha imensa coberta de uma reluzente turva verde nada é, sob esse aspecto, em comparação a uma outra, escura e sombria; o céu nublado é mais imponente do que o azul; e a noite, mais sublime e solene do que o dia. Consequentemente, nos quadros do gênero histórico [...] e em edifícios, quando se visa ao mais elevado grau do sublime, os materiais e os ornamentos não devem ser nem brancos, nem verdes, nem amarelos, nem azuis, nem de um vermelho pálido, nem violeta, nem nuançados, mas de cores tristes e foscas como o preto, ou o marrom, ou o vermelho escuro e outras semelhantes.

A shipwreck in stormy sea, por Claude Joseph Vernet (1773)

Os efeitos da materialidade expressos pela cor da pintura encontrariam, então, uma abertura em Burke para proporcionar a experiência do sublime. De uma maneira menos imediata e menos voltada aos atributos visuais da pintura, Renata Covali Cairolli Achlei tenciona o lugar da obra de arte nos textos sobre o sublime no século XVIII. Se, nesses textos, não se consideraria como possível uma experiência sublime através de trabalhos produzidos por mãos humanas, uma das causas disso surge na forma que a própria conceituação de sublime foi concebida na época. Para a autora, é possível identificar que a formulação do conceito se deu de maneira a encontrar um encaixe na epistemologia do período e, assim, o significado dele acabou se reduzindo. Conforme a ideia de sublime passava a sofrer alterações, cada pensador adaptaria o que pensa sobre o sublime a seu próprio sistema filosófico:

Burke procura priorizar os sentidos, ao que é acusado de fisiologismo por Kant, que adiciona a essa equação a razão especulativa em conflito com a imaginação [...] Schiller trabalhou com a teoria sobre o sublime sob a agenda de inserir a tragédia (sua principal atividade) nessa categoria. 

Mesmo na Crítica da faculdade de julgar há certas aberturas, como continua Achlei. Na experiência sublime, a razão estimula a imaginação para ir além — reconhece sua limitação, mas acaba por tentar se adequar à razão para tornar uma ideia representável. O infinito, por exemplo, não consegue ser capturado pela imaginação; é uma grandeza incomparável, mas ele é uma ideia da razão. Se concordamos que algo é grande — incomparavelmente grande — estamos comunicando a natureza sublime daquilo e superamos a ausência da forma e do próprio conceito. Kant coloca: 

é antes no seu caos e na sua mais selvagem e desregrada desordem e devastação que, onde quer que se possa contemplar a grandeza e o poder, a natureza costuma despertar as ideias do sublime.

Podemos entender que o sublime é gerado por essa inadequação da imaginação e uma certa ausência do entendimento — uma espécie de caos —; o gênio artístico, para Kant, vem de forma que “toda a riqueza da imaginação nada produz, em sua liberdade sem leis, senão o absurdo”. Achlei, citando Robert Wicks, associa essa ideia de liberdade ao caos. Se o sublime viria dessa espécie de caos, e a inspiração artística também, haveria, dessa forma, uma conexão entre a experiência sublime e a expressão artística. Ao considerarmos a possibilidade de evocação do sublime em um objeto, como uma pintura, essa representação também forneceria uma possibilidade para a própria comunicação do sublime, conceito não tão simples de ser posto em palavras.

Neste texto, após trilharmos um denso caminho pontuado por certas tensões, procuramos demonstrar como é possível compreender o terror — um grande medo — como uma fonte do sublime. Nossas leituras nos conduziram inicialmente ao texto literário como apto a despertar o sublime; em seguida, nos deparamos com a arte e suas questões de sublimidade, encontro que nos levou a trazer algumas considerações sobre o tema. Assim como a própria ideia de sublime, os textos que aqui referenciamos nos permitiram alcançar um estado de deleite pelo próprio conhecimento do assunto de que tratam; o sublime, em sua metalinguagem, também é sublime.

Referências 




O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe de mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e cogite ser um apoiador. ♥

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)