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As personagens femininas nos contos de Katherine Mansfield

Katherine Mansfield nasceu na Nova Zelândia em 14 de outubro de 1888, e foi estudar em Londres em 1905. Ao longo da sua vida escreveu 118 contos, mas nenhum romance, o que lamentava. Possuía um talento musical e se dedicou ao estudo do violoncelo, mas também era ilustradora e fez a capa de alguns de seus livros. Ela morreu com apenas 34 anos, vítima de tuberculose.

Suas obras, consideradas modernistas, representam uma dualidade entre a metrópole Inglaterra, e a colônia Nova Zelândia. Ao mesmo tempo que Katherine nutria uma ligação com seu país natal, principalmente no que diz respeito à paisagem, o achava entediante e criticava o ambiente conservador que tentava imitar os europeus a todo custo. Por outro lado, se sentia atraída pela Londres moderna e repleta de arte. Assim, seus contos são ambientados nesses dois locais.

Katherine teve como referências literárias Edgar Allan Poe, Anton Tchekov e Oscar Wilde. Além disso, seu círculo de amizades literárias era amplo e contava com Virginia Woolf, Aldous Huxley, James Joyce e outros. Virginia Woolf disse certa vez que a única escrita de que já sentiu inveja foi a de Katherine. T. S. Eliot, por sua vez, a via como uma “mulher perigosa”, por ter ousado em seu trabalho, tratando de temas sensíveis à época. No cenário brasileiro, foi admirada por Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar.

Uma explicação para tantas mulheres se identificarem com a escrita de Katherine pode estar na forma como ela nos mostra as personagens femininas: em destaque, com complexidade, algumas detestáveis, outras amáveis, mas todas com sentimentos intensos. Algumas das mulheres dos contos de Katherine são burguesas que só se preocupam com as aparências e com o dinheiro, são mulheres que foram criadas para estar em uma posição elevada, ainda que não tenham poder por serem mulheres. Algumas delas questionam a sociedade, outras são resignadas e sabem que estão à margem, por serem velhas demais, excêntricas demais e julgadas demais.

Katherine também escreveu sobre personagens que sofrem com os homens, com a sociedade, com a vida dura. Algumas entendem isso, mas certas revelações chegam apenas ao leitor. E a maioria das mulheres se sentem terrivelmente sós. Há solidão em muitas nuances dos contos de Katherine, como nas descrições de belas paisagens que contrastam com a confusão interior das personagens.

No conto Na Baía, uma das obras com mais descrições de paisagens neozelandesas, somos apresentados a duas famílias e um espaço privado feminino composto de mulheres e crianças que se apoiam e comemoram quando os homens estão longe, pois assim não precisam se esforçar para manter as aparências.

As descrições de como a natureza se comporta com as personagens também influencia nessa história. Enquanto com Jonathan, o patriarca de uma das famílias, o mar é arredio, chegando até mesmo a causar dor física no homem, com as mulheres, que possuem um horário para ter o mar só para elas, ele é calmo e agradável.

Somos apresentados também aos pensamentos íntimos de Linda Burnell, uma das personagens mais desenvolvidas no conto. Percebemos a sua frustação com o marido, a quem ela ama, mas que mal reconhece e com o qual precisa se esforçar para entender e ser paciente.

“Havia vislumbres, momentos, intervalos de calma, mas o resto do tempo era como morar numa casa que não abandonava o hábito de pegar fogo, ou em um navio que naufragava todos os dias.”

E então vem a revelação: Linda não gosta dos seus filhos, ainda que a sociedade diga que a maternidade é uma sina comum das mulheres, uma obrigação. Ao mesmo tempo, por se sentir assim, Linda carrega muita culpa.

Já em Festa ao ar livre, um dos contos mais famosos da autora, nota-se uma forte crítica social em relação a visão que ricos têm dos mais pobres. A protagonista é Laura, uma garota de uma família rica que está prestes a dar uma festa no jardim. Ela vive em um mundo de aparências, em que tudo é feito para passar uma boa impressão, e essas aparências são abaladas quando uma morte ocorre em uma região pobre muito próxima da mansão em que Laura vive. A garota se sente mal com isso e sugere que a festa seja cancelada, enquanto sua mãe acha a ideia um absurdo. Vemos empatia em Laura, ao mesmo tempo em que ela é impedida de tomar suas próprias decisões e não consegue entender completamente a vida das pessoas que não vivem no luxo. O que é colocado em evidência neste conto é como as aparências não importam diante da morte.

Retrato de Katherine Mansfield, Anne Estelle Rice (1918)

No conto As filhas do falecido Coronel conhecemos Constantia e Josephine, duas irmãs que acabaram de perder o pai, um coronel rígido e exigente. As duas mulheres, por terem sido criadas em um ambiente tão regrado, nutriam medo do pai e uma incapacidade de pensarem sozinhas e se impor. Com a morte do homem, Constantia e Josephine se viram incapazes de tomar decisões e até mesmo tinham receio de pedir coisas para a moça que trabalhava para elas. Elas chegaram no nível de acreditar que o pai ainda estava vivo e as vigiando e que a qualquer momento retornaria furioso com as duas. O conto retrata como muitas mulheres, mesmo quando se viam livres de uma figura masculina e em posse de uma herança, não sabiam tomar decisões por se sentirem erradas ao fazer isso, já que foram criadas para seguir determinadas normas sociais.

Em A vida de Mãe Parker temos uma protagonista já idosa que viveu uma vida muito difícil e acabou de perder o neto. Apesar de toda dor física e emocional, ela parece resignada, pois se acostumou a sofrer. E ela não podia chorar, pois se chorasse incomodaria as pessoas, seria incomodada por elas e vista com pena. Tirar um momento para si também significava deixar de dar atenção para quem precisava dela. Sempre esperavam força de Mãe Parker, sempre comentaram da vida dura que ela tivera, mas ninguém entendia sua solidão.

“Vovó queria chorar. Se conseguisse chorar agora, chorar por muito tempo, por tudo, começando pelo primeiro emprego e por aquela cozinheira cruel, passando para a casa do médico, depois pelas sete crianças, pela morte do marido, pela partida dos filhos e por todos os anos de infelicidade que a levaram até Lennie. Mas chorar direto por todas essas coisas levaria muito tempo. Por outro lado, a hora havia chegado. Ela precisava chorar.”

Em Srta. Brill, a protagonista é uma mulher solitária que todo domingo vai à praça observar a vizinhança. Srta. Brill aproveita a bandinha, gosta da rotina, tenta ver coisas bonitas à sua volta para se sentir melhor e finge que não sente tristeza. Então, em um momento de epifania, Srta. Brill percebe que não só ela, mas todos estão fingindo, representando seus próprios papéis, atuando para uma “felicidade” geral ser mantida. E isso por um lado a conforta, pois ela se sente parte de algo especial, sente que assim as outras pessoas precisam dela, que ela poderia fazer falta. Isso é quebrado quando Srta. Brill ouve comentários maldosos sobre ela, e então, é como se tudo não fizesse mais sentido, já que sabe que nunca vai estar inclusa naquela sociedade. Assim como outras pessoas que, como ela, se sentam sempre nas mesmas mesas todo domingo, ela sempre seria vista como estranha. Não era especial.

Em outro conto, Leila vive o primeiro baile da sua vida. Ela estava empolgada com isso e então um dos seus pares da noite, um homem já velho, faz uma “premonição” de seu futuro: se sentar em cima do estrado com seu vestido preto, observar a filha dançar, e se entristecer por estar sozinha e ninguém mais querer lhe beijar. Então Leila não queria mais dançar, achava injusto como sua felicidade havia durado pouco. No entanto, ela não podia simplesmente parar e teve que dançar por educação. Em minutos, já havia se esquecido de todas as palavras do homem. Mais uma vez, aqui Katherine fala sobre papéis e como as pessoas são obrigadas a repeti-los mesmo sendo infelizes neles.

Alguns contos também focam na questão do casamento e tratam de perspectivas similares. O estranho é um conto que foca na perspectiva do Sr. Hammond, que está esperando o navio onde está sua esposa, Janey, chegar. Ele a ama muito, mas a sente distante, como se estivesse prestes a voar para longe. Além disso, ele não consegue dizer se ela realmente é feliz, como ele. Ele sofre em silêncio e busca respostas de Janey, mas cada vez a distância emocional entre eles aumenta. Sr. e Sra. Pombo é outro conto que trata de temática parecida: homens que se apaixonam por mulheres que parecem inalcançáveis. Casamento à la mode, por sua vez, trata de um casal em que o homem não percebe que sua esposa não é feliz como ele e em como ela se sente solitária e anseia por novidades.

No geral, a narrativa de Katherine nos leva a refletir sobre a sociedade e o ser humano individual. Há muitas mensagens escondidas em seus contos, mensagens estas que cada leitor pode entender de uma forma diferente. Suas histórias são cheias de beleza, mas também são reais, com momentos cruéis. É admirável o quão bem desenvolvidos e marcantes os contos são, mesmo os mais curtos. Conhecer Katherine Mansfield é um presente.

Referências

  • A festa ao ar livre e outras histórias (Katherine Mansfield)
  • Katherine Mansfield e o conto modernista (Isadora Prospero)
  • Uma prosa entre dois mundos (Camila D. Mizerkowski Crestani)
  • Uma mulher perigosa (Fabiane Secches)
  • A vida dói (Iara Machado Pinheiro) 



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