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A mente assombrada: o gótico vitoriano em Jane Eyre


Já dizia Gabriel García Márquez que “o processo de criação narrativa é a transformação do demônio em tema”. Que o que nos incomoda, insatisfaz ou amedronta alimenta a vontade de criar, infla nossa imaginação e se traduz em arte. A literatura, claro, tem muito disso. Em diversos momentos da história, tempos sombrios ou inseguros foram amassados, moldados e transformados em livros. Um grande exemplo é o romance gótico, que se tornou extremamente popular entre as décadas de 1760 e 1820, alcançando peculiar popularidade na década de 1790. A razão dessa receptividade tinha muito a ver com os monstros sociais que os autores captavam e reintegravam às páginas através de um novo estilo literário que espelhava muitas das ansiedades daquele momento.

O final do século XVIII foi um período de grande inquietação devido à Revolução Francesa e o que ela representava para as monarquias europeias e as estruturas de poder estabelecidas. Quando um rei e uma rainha perdiam a cabeça, isso significava que algo estava em movimento e não pararia na França. Revoltas, novas ideias, incertezas e medos atravessavam fronteiras e o obscuro e o não-compreendido muitas vezes apareciam na literatura. O gótico inglês floresceu desses terrores temporais e espelhou a instabilidade da realidade através de figuras demoníacas ou situações de perigo fantástico.

O gótico em sua primeira vertente inglesa foi um estilo particularmente manipulado por mulheres escritoras, como Ann Radcliffe, Charlotte Smith e Clara Reeve, e reunia alguns elementos que se tornaram comuns a quase todas as histórias do gênero. Em geral, eram tramas maniqueístas em que o bem e o mal estavam bem delineados, protagonizadas por uma heroína órfã colocada constantemente em situações de perigo extremo. Outra característica comum eram as ambientações em castelos ou fortalezas ameaçadoras com ares medievais e a presença de um vilão de origem estrangeria, geralmente do sul da Europa (espelhando a xenofobia contra o continente, que pairava em discursos políticos e sociais), que aprisionava a heroína e não poupava esforços em seus planos de usurpação, destruição e mortes.

A narrativa não supunha, no entanto, fuga da realidade, mas sim uma desconstrução dela e a transformação das ansiedades e hipocrisias em metáforas que o leitor poderia absorver. Dando as costas para o Iluminismo que ditava que a razão deveria ser o caminho a ser seguido, o gótico era uma contra-resposta artística que chegava sendo “selvagem, excessivo e incivilizado” (Avery). A ascensão do estilo narrativo também se beneficiou de uma mudança econômica importante. O final do século XVIII e inicio do século XIX viu surgir uma nova classe média comercial letrada e ansiosa por conhecimento, leitura e pertencimento. Isso, aliado ao desenvolvimento de centros urbanos, também criou demanda de leitores em potencial justo quando o gótico e seus escritores se tornavam evidentes.  

O gótico vitoriano e o castelo da mente 


“A inquietação era de minha natureza; às vezes arrastava-me ao sofrimento.”

(Jane Eyre)

Durante o período vitoriano, diversos escritores se apropriaram de características do estilo e o adaptaram para novos cenários. Ao invés de castelos abandonados no sul da Itália, o terror passou a habitar edifícios e instituições britânicas. Os monstros que ao final do século XVIII percorreriam corredores e calabouços, passaram a rastejar por vielas e becos londrinos. O gótico adentrou a esfera doméstica assinalando que o perigo morava dentro de casa.

Outra importante característica do revival gótico vitoriano foi a concepção de que a mente era seu próprio castelo assombrado, e também de que não mais a fortaleza medieval representava a prisão do personagem, mas sim os relacionamentos, os casamentos, as convenções sociais e a instabilidade emocional ou financeira que ameaçavam a identidade do indivíduo. Neste ínterim, não foi surpresa o fato de muitas escritoras vitorianas terem operado as nuances góticas em suas narrativas, como as irmãs Brontë, Charlotte e Emily Brontë, em seus livros Jane Eyre e O Morro dos Ventos Uivantes.

“o mundo caótico e de pesadelo do romance gótico serve como um reflexo dos perigos que as mulheres enfrentam no mundo real e diurno”

(Avery)

Leitoras inveteradas, as irmãs tinham acesso a periódicos e outros impressos (como a Blackwood’s Magazine), e dali tiravam muitas informações sobre história, política e sociedade, além de terem contato com inúmeros contos góticos dentro da nova roupagem vitoriana. Jane Eyre, o primeiro romance publicado de Charlotte, trazia na narrativa elementos do gótico romântico costurado com o realismo vitoriano. A narrativa de bildungsroman acompanhava a trajetória de uma jovem dentro de uma história gótica de assombros e descobertas.   

Charlotte Brontë

Logo no início a protagonista – órfã e solitária – vive de favor na casa de uma tia que não a deseja e é acuada tanto pela casa física, que não exala acolhimento, quanto pelas relações violentas que a circundam. Em uma das primeiras cenas do romance, Jane é atacada pelo primo John Reed, que a agride moral e fisicamente. Nesse trecho, Charlotte coloca Reed no papel de vilão gótico clássico que circunda e aterroriza a heroína a exemplo dos romances do final do século XVIII, comparando-o, inclusive, aos imperadores romanos em sua crueldade. Reed não representa apenas a ameaça imediata de violência, mas também o peso do patriarcado que inibe, coage e subjuga as mulheres baseado em uma suposta superioridade de gênero.

“Pois Brontë, como autora, busca dramatizar com metáforas góticas uma dada realidade social, e por meio dessa performance artística expor a hipocrisia social e, até mesmo a sociedade a declarar sua verdadeira natureza.

(Milbank)

Já adulta, quando Jane passa a trabalhar como governanta em Thornfield Hall, uma propriedade cinzenta e rodeada por bosques, Charlotte parece usar a metáfora gótica da mente aprisionada em diversas cenas de monólogos internos da personagem. Apesar de estar vivendo dentro de uma mansão com corredores sombrios e fachadas obscuras, não são os cômodos ou os barulhos ameaçadores à noite que atormentam a mente da protagonista, mas sim as limitações de liberdade e a falta de expectativas de uma mulher sem posse e de classe trabalhadora. O gótico aqui se desvela no desejo de fuga de si, de uma mulher confinada dentro de um invólucro doméstico opressivo. Uma das alegorias mais poderosas do romance é a constante comparação de Jane a um pássaro engaiolado que deseja o que não pode alcançar.

“De vez em quando vislumbro em você um curioso tipo de pássaro, entre as grades de uma gaiola. É um cativo muito vívido, inquieto e resoluto o que está lá dentro. Se acaso fosse livre, voaria até as alturas.”

(Jane Eyre)

É interessante observar que apesar de trabalhar com as características góticas ao longo de todo o livro,  Charlotte sempre tem o cuidado de realinhar a sua narrativa em direção ao realismo durante os ápices de emoção ou descoberta. Por mais que ela aluda ao fantástico, no fim, ela sempre retorna ao concreto. Como, por exemplo, durante o primeiro encontro da protagonista com o patrão Mr. Rochester em que Jane, circundada pela neblina da estrada, fantasia que está prestes a avistar um Gytrash, uma figura folclórica capaz de tomar a forma de um animal. Quando ela percebe, porém, que se trata apenas de um homem montando um cavalo, Jane arrefece as ilusões góticas e passa a tratá-lo dentro das convenções de decoro que aprendeu.

“Não era um Gytrash: apenas um cavaleiro tomando atalho para Millcote. Ele passou e eu segui meu caminho”

(Jane Eyre)

Rochester é um personagem que flutua constantemente entre o gótico e o realismo em diversos momentos da trama, ora sendo apresentado como o vilão demoníaco que corteja e ameaça a tessitura moral de Jane, além de aprisionar a esposa Bertha no sótão (outro personagem carregado de simbolismos góticos), ora sendo revelado como uma figura de carne e osso com defeitos e angústias bruscamente humanas. O que Charlotte Brontë faz ao explorar os segredos dele e de outros personagens é reafirmar a ideia de que todos são casas em si e possuem os próprios quartos obscuros trancados com correntes.  

A técnica de manipulação do gótico que Charlotte empregou em Jane Eyre foi bastante efetiva, pois ela conseguiu aproveitar o goticismo para criar profundidade e conexão com o sombrio dos personagens, mas também possibilitou que ela reordenasse a narrativa para uma linha racional que seria bem recebida pelo público vitoriano. Tudo ao final é explicado, cada terror é revelado e as arestas do gótico são aparadas. As nuances de assombro ficam para trás dando esperanças aos leitores de que todos podem superar os fantasmas metafóricos e escapar do castelo que é a mente.

Referências 

  • O romance gótico no período vitoriano (Cannon Smith)
  • Um sonho estranho e espectral: a manipulação do gótico pelas irmãs Brontë (Simon Avery)
  • O gótico vitoriano nos romances e contos ingleses, 1830-1880 (Alison Milbank)
  • Jane Eyre (Charlotte Brontë)
  • A louca da casa (Rosa Montero citando Gabriel García Márquez)  



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