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Gênero e vingança: uma leitura de Edgar Allan Poe e Lygia Fagundes Telles


"As mil afrontas de Fortunato, eu as suportei o melhor que pude; mas quando ele passou destas ao insulto, jurei vingança." Com essa frase, tem início um dos contos mais conhecidos de Edgar Allan Poe, O barril de Amontillado (1846). Narrada em primeira pessoa, a história choca pela frieza com a qual o protagonista se propõe a concretizar uma vingança cujo motivo jamais revela. 

A astúcia de Montresor 


Segundo Montresor, personagem que narra e protagoniza a obra, o vingador só pode se considerar bem-sucedido quando se revela à vítima, mas sai impune. Para atingir esse objetivo, planeja cuidadosamente a punição de Fortunato, que sabemos apenas ter insultado de alguma forma o narrador e ter como ponto fraco o orgulho de conhecer vinhos. É a partir disso que Montresor elabora seu plano: atrai seu inimigo dizendo ter em casa um barril de Amontillado, renomado vinho espanhol, mas não saber se se trata realmente do produto original ou de uma falsificação. A fim de ferir Fortunato em seu orgulho, finge ainda ter a intenção de pedir a outro enófilo, Luchesi, para tirar sua dúvida. Incapaz de conceber essa possibilidade, Fortunato se prontifica a ir até a residência do protagonista para dar seu parecer sobre a qualidade da bebida.

Ao criar essa motivação para seu inimigo, ameaçando seu status enquanto conhecedor de vinhos, Montresor consegue atraí-lo em pleno Carnaval para as catacumbas de sua família. O leitor observa enquanto Fortunato caminha pelos corredores mal iluminados e cheios de ossos, embriagado e vestido de bufão, em direção à própria morte:

"O andar do meu amigo era incerto, e os guizos do chapéu tilintavam às suas passadas.
[...]
– Salitre? – finalmente perguntou.
– Salitre – repliquei; – Mas quando começou essa tosse?
– Cof, cof, cof! Cof, cof, cof! Cof, cof, cof! Cof, cof, cof! Cof, cof, cof!
Meu pobre amigo não teve como responder por uns bons minutos.
– Não é nada – disse, afinal.
– Venha – eu disse, determinado –, vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; é feliz como eu já fui. Sua falta seria sentida. Não há o menor problema para mim. Vamos voltar; você vai cair doente, e não quero ser o responsável. Além do mais, Luchesi...
– Basta disso – disse ele. A tosse não é nada, não vai me matar. Não é de uma tosse que eu vou morrer.
– Tem razão, tem razão – repliquei."

Toda a narrativa se desenrola em torno de um único objetivo – a concretização da vingança –, que Montresor busca atrasar, impondo falsos empecilhos a Fortunato, como a tosse causada pelo salitre. Isso contribui para construir a tensão narrativa numa espécie de tortura psicológica, já que o amante de vinhos, vulnerável em meio à embriaguez, demora mais do que imaginava para chegar ao barril de Amontillado, sendo obrigado a parar constantemente para convencer o companheiro a levá-lo até o vinho.

Movido pela promessa da bebida, Fortunato ignora os ossos que os cercam e entra num recesso escuro. Procurando pelo barril que sequer existe, é acorrentado ao granito da cripta. Como a vítima está indefesa, Montresor pode construir lentamente sua prisão, erguendo tijolo por tijolo uma parede que prenderá o inimigo nas catacumbas, optando ainda por jogar uma tocha lá dentro antes de colocar os últimos tijolos – provavelmente para que o oxigênio dentro do recinto acabasse mais rápido, acelerando a morte da vítima.

Edgar Allan Poe

O desfecho da narrativa amplia suas possíveis interpretações: em vez de encerrar sua história com a morte de Fortunato, que representa o sucesso de sua vingança, Montresor acrescenta as seguintes frases: "Contra a nova alvenaria, reergui o velho baluarte de ossos. Por meio século, nenhum mortal veio perturbá-los. In pace requiscat!". Somado a uma sentença presente no primeiro parágrafo do conto – "Você, que conhece tão bem a natureza de minha alma, não há de imaginar que proferi uma única ameaça" –, esse final parece sugerir que Montresor está se confessando com um padre (por isso, um "conhecedor da alma") antes de morrer. Outra possibilidade é que ao dizer "você", o narrador pretenda realmente estabelecer um diálogo com o leitor e que narre a história depois de morto, interpretação fortalecida pelo uso do verbo "veio" em vez de "foi" (às catacumbas), como se fosse já um cadáver na cripta de sua família.

Independentemente da interpretação, fato é que Montresor se vinga e passa ao menos cinquenta anos impune. Cabe ao leitor imaginar se o que motivou a vingança foi realmente algo grave ou se o narrador poderia ter se ofendido com algo mínimo, e o que o teria levado a confessar seu crime.

A vingança de Ricardo


É também o tema da vingança que parece central em Venha ver o pôr do sol (1988), de Lygia Fagundes Telles. Escrito mais de cem anos após a publicação de O barril de Amontillado, o conto acompanha um encontro entre Raquel e Ricardo. Entende-se que os dois eram um casal, mas a mulher agora tem um novo companheiro, rico, o que leva o leitor a compreendê-la como uma personagem interesseira, mais preocupada com dinheiro e aparências do que com o amor. É, ao menos, o que Ricardo sugere em falas como "Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?" ou "Ele é tão rico assim?", demonstrando-se incomodado com o novo estilo de vida da Raquel.

O local do encontro é um cemitério abandonado, no topo de uma ladeira pouco frequentada, que Ricardo diz ser onde está enterrada "sua gente". A partir dessa premissa afetiva – visitar os parentes mortos – e da promessa de um lindo pôr do sol mais adiante, ele atrai Raquel para dentro do cemitério. Por mais que a mulher expresse repetidamente sua vontade de ir embora dali, é dissuadida pelo antigo amante e por seus flertes passivo-agressivos.

"― Chega, Ricardo, quero ir embora.
― Mais alguns passos...
― Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! ― Olhou para trás. ― Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
― A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio ― lamentou ele, impelindo-a para a frente. ― Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas."

O cenário e as falas do homem tornam evidente que há algo errado: fica claro que ele se ressente de Raquel pela mudança de vida, por agora ter dinheiro, enquanto ele continua pobre, pela substituição por um novo par. Além disso, apela para a emoção ao mencionar os parentes mortos, convidando (ou coagindo) a mulher a revisitar com ele o passado de sua família.

Lygia Fagundes Telles

Desse modo, Raquel é atraída para uma armadilha semelhante à que Montresor prepara para Fortunato: nas catacumbas de uma capelinha, a mulher é presa por Ricardo num jazigo que ela descobre sequer ser da família dele – toda a história era uma invenção cujo único objetivo era atraí-la para o próprio fim, concretizando a vingança do antigo companheiro.

Um caminho para a morte


Para além do tema da vingança, o enredo é um importante ponto comum entre os contos: nos dois casos, temos uma vítima sendo conduzida por um longo caminho, cheio de tensão, até o local em que seu algoz planejou o assassinato. Essa semelhança significativa na construção da história sugere que Lygia tenha escrito Venha ver o pôr do sol tomando como base o conto de Poe. Como justificar, então, as diferenças entre as obras?

Paloma Bispo de Angelis, ao analisar o conto de Poe, afirma que "o assassino usa a elevada autoestima de sua vítima e guarda essa estratégia como trunfo para o momento oportuno". Temos, aí, uma crítica à personagem de Fortunato, que se deixa levar pelo orgulho para uma situação bastante suspeita – vagar meio bêbado entre os ossos dos antepassados de Montresor, nas catacumbas da família. Por outro lado, embora Raquel possa ser vista como uma mulher superficial e vaidosa, não é desse ego que Ricardo se vale para atraí-la, mas, sim, da chantagem emocional: ainda que sem ter um Amontillado ou qualquer outro prêmio como recompensa por embrenhar-se num cemitério abandonado, ela cede às histórias tristes do amante. Lygia parece apontar, então, para uma realidade na qual as mulheres são ensinadas a se submeterem à vontade dos homens, predispostas a obedecerem mesmo em situações adversas.

Além disso, enquanto acompanhamos Fortunato sem saber muito bem o que vai acontecer com ele ao longo da narrativa, já nos primeiros parágrafos de Venha ver o pôr do sol, – quando Ricardo começa a tecer comentários passivo-agressivos – o leitor (ou, pelo menos, a leitora, imbuída de seu conhecimento de mundo e do aprendizado construído pelas próprias experiências) consegue imaginar o desfecho da história. Uma mulher sozinha com um homem ressentido, onde não há ninguém para testemunhar um crime... O que pode parecer imaginação fértil é, na verdade, apenas a cautela cotidiana que precisamos desenvolver para evitar situações de perigo. Talvez por isso Raquel se demonstre muito mais relutante em seguir seu executor do que Fortunato, no conto de Poe. Ela expressa diversas vezes o desejo de ir embora, mas é enredada pela manipulação emocional de Ricardo.

Esse parece ser um caso em que se torna difícil separar autor e obra. Ao dialogar com a obra de Poe, Lygia cria sentido para uma história de vingança que antes não tinha motivo claro, apontando para o perigo de se confiar demais num homem quando se é mulher – mesmo que este seja um homem conhecido, como um antigo amor. Nesse sentido, o conto deixa de ser uma história de terror ficcional e passa a ser um alerta, preocupação que provavelmente vem de suas próprias experiências. Ficamos, então, com a sensação incômoda de saber que, enquanto Montresor e Ricardo talvez nunca sejam punidos pelos crimes que cometeram, a mulher paga um preço alto por sua aparente cobiça.

Referências

  • O barril de Amontillado (Edgar Allan Poe)
  • Venha ver o pôr do sol (Lygia Fagundes Telles)
  • Vingança silenciosa: a dissimulação em “O barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe (Paloma Bispo de Angelis)



Arte em destaque: Mia Sodré




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