Para leitoras do sexo feminino, poucas coisas são mais interessantes do que ler Clarice Lispector. Por meio de suas narrativas bem pensadas, a escritora apreende o que seria indescritível com palavras objetivas: o viver-mulher. A autora nunca se autodeclarou feminista e, inclusive, chegou a afirmar que havia muita burocracia envolvida no movimento, mas não é preciso adentrar na luta para constatar a vivência inata a todas que experienciam o ser mulher desde sempre. Conforme Simone de Beauvoir afirma no segundo volume de O segundo sexo, a fêmea humana é condicionada a determinadas posições na sociedade. Isso ocorre com a imposição da feminilidade e tudo o que ela implica, como a maternidade e a docilidade. No universo literário de Lispector, a regra social não muda. A escritora entrega voz a personagens mulheres que entram na lógica de Beauvoir como o Outro: aquele que não é homem e, por conta disso, não detém uma espécie de protagonismo na própria vida.
"Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana."(Simone de Beauvoir)
Para entender o sentido do Outro nos contos de Clarice, principalmente os presentes em Laços de Família, é possível partir de um pressuposto trabalhado por Affonso Romano de Sant'Anna. Conforme o teórico, a estrutura das narrativas de Lispector se dá em quatro etapas, sendo elas: situação cotidiana 🠒 preparação de um acontecimento pressentido 🠒 evento e esclarecimento caótico 🠒 volta à normalidade. A terceira e mais notável etapa seria a percepção da realidade pulsante, ainda que silenciosa, da persona. Mas essa experiência muitas vezes sinestésica só é possível a partir da segunda etapa, onde a questão que se desemboca fervilha calada na psiquê, fugindo para a narrativa por meio da escolha de palavras do narrador indireto livre. Os indícios de um problema estão presentes, ainda que suscintos, exigindo uma atenção extra do leitor. Considerando a posição imposta a mulheres e a temática doméstica que ronda todos os contos de Laços de Família, entendemos que o problema que se desenvolve até o caos é o beco sem saída da função social do ser-mulher.
Essa hipótese pode ser sustentada até mesmo quando a protagonista não é uma mulher propriamente dita. É possível entender o conto “Uma galinha” como uma analogia que expressa a fatalidade imposta à condição feminina. Na breve narrativa, que possui pouco mais do que duas páginas, é apresentada uma “galinha de domingo” que está predestinada a servir de alimento a uma família. O animal fadado ainda está vivo e, após permanecer por um período silencioso e indiferente, mostra um anseio de sobrevivência quando decide dar pequenos voos e fugir do seu destino. Parte da história é composta em histeria, com o patriarca em busca do bicho. No entanto, ao “dar à luz” a um ovo, o grupo humaniza a galinha e decide por poupá-la da morte.
“Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão: — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!”(Clarice Lispector)
Os instantes passam, a vida continua, a galinha permanece viva. O tempo, porém, continua em movimento até o instante em que a normalidade volta à tona e a galinha serve, finalmente, a seu destino primeiro - é simplesmente morta, tão rápido e natural quanto a frase que fecha o conto: “Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos”.
Aqui, pensando que os protagonistas de Clarice são mulheres, o padrão permanece ao entender a galinha também como uma mulher. A mulher-bicho, na primeira parte, é apresentada de forma domesticada, dócil e silenciosa. Sua presença na casa é quase imperceptível, pois, até então, seu papel está sendo cumprido. Betty Friedan, sufragista e teórica feminista, em seu livro A mística feminina, usa termos semelhantes para descrever a mulher que cumpre com o que foi imposto socialmente a ela. Em casa, quando sem ambições e apenas servente à família, a mulher não incomoda. No entanto, tanto na literatura quanto na teoria social, há uma questão interna – ambas, mulher e galinha, sentem um fervilhar. No conto, a explosão ocorre com o anseio de fuga. O padrão é rompido e a normalidade sofre uma ruptura.
Clarice Lispector (Domínio público / Acervo Arquivo Nacional) |
Com essa fuga do esperado, há a movimentação daqueles que não vivem a mesma experiência sufocante do ser-galinha-mulher. Os indivíduos correm, atacam e fazem de tudo para recuperar o padrão e capturar o bicho. Da mesma forma, quando mulheres decidem romper com a sua submissão, há uma força contrária e moral que luta para que elas voltem aos seus lugares tradicionais. Bem como mostra Friedan:
"O mito de que as feministas eram “monstros antinaturais” baseava-se na crença de que destruir a submissão da mulher, ordenada por Deus, seria destruir o lar e escravizar os homens. Tais mitos surgem em todas as revoluções que fazem progredir uma parcela da família humana no sentido da igualdade. Sejam as feministas representadas como seres desumanos, furiosas devoradoras de homens, ofensoras de Deus, ou nos termos modernos como pervertidas sexuais, não diferem nisso do estereótipo do membro de sindicato anarquista, ou do negro encarado como animal primitivo."(Betty Friedan)
O fato que quebra com a perseguição à galinha pode ser visto como extremamente simbólico para a hipótese: o animal bota um ovo, símbolo de vida. Aqui, o narrador brinca com as palavras, utilizando frases que poderiam ser usadas para descrever tanto a situação atual quanto a maternidade de uma mulher humana. “Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada.” Pensando no papel social da mulher, ilumina-se “nascida que fora para a maternidade”. A galinha-mulher, em meio a sua luta para a fuga, acaba seguindo a cartilha programada. Quando há esse reencaixe no papel atribuído, os indivíduos que antes a perseguiam se acalmam: “[...] ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!”. Novamente, o mesmo ocorre na sociedade, que estimula a maternidade.
No entanto, enganam-se aqueles que pensam que um final feliz está estabilizado. A adoção de um comportamento que concorda com os pensamentos da classe dominadora não emancipa. Ao final do conto, a galinha é morta. Considerando que o bicho representa as humanas de sexo feminino, entendemos a família que matou a galinha como a sociedade opressora e as funções dos gêneros. Por mais que a mulher tente se adaptar às condições impostas, seguindo o padrão, ela não estará plenamente satisfeita, pois não estará exercendo liberdade ou protagonismo algum. Ela será sempre vista como o Outro, sob os olhos e os desejos que não lhe pertencem. A morte, então, poderá chegar simbólica, como uma apatia, ou como suicídio, bem como disse Beauvoir:
"Muitas vezes, durante os primeiros anos, a mulher cultiva ilusões, tenta admirar incondicionalmente o marido, amá-lo sem restrições, sentir-se indispensável a ele e aos filhos; depois, seus verdadeiros sentimentos se revelam; percebe que o marido poderia viver sem ela, que os filhos são feitos para se desprenderem dela: são sempre mais ou menos ingratos. O lar não a protege mais contra sua liberdade vazia; reencontra-se solitária, abandonada, um objeto; não sabe o que fazer de si mesma. Afeições, hábitos podem ser-lhe de grande auxílio, não uma salvação. Todas as escritoras sinceras notaram essa melancolia que habita o coração das 'mulheres de trinta anos'; é um traço comum às heroínas de Katherine Mansfield, de Dorothy Park, de Virginia Woolf. Cécile Sauvage, que cantou tão alegremente, no início da vida, o casamento e a maternidade, exprime posteriormente uma delicada angústia. É de notar, comparando o número de suicídios femininos perpetrados por celibatárias e mulheres casadas, que estas se acham solidamente protegidas contra o desgosto de viver entre 20 e 30 anos (principalmente entre 25 e 30), mas não nos anos seguintes."(Simone de Beauvoir)
Após essa breve análise, é válido considerar que Clarice Lispector utiliza das palavras para entender e expressar a condição das fêmeas da sociedade. Estratégias inteligentes trazem questões que permeiam a realidade material de mulheres mesmo quando uma outra espécie é apresentada como foco da literatura. A ironia acontece, inclusive, na escolha do título do conto. Uma galinha. O pronome demonstrativo não é definido, forte e protagonista - a narrativa não é sobre A galinha. É possível considerar e imaginar que o "uma" foi escolhido a dedo para representar a sujeição ao papel secundário e menos importante. Para Lispector, a galinha é o Outro.
Referências
- O segundo sexo: fatos e mitos (Simone de Beauvoir)
- O segundo sexo II: a experiência vivida (Simone de Beauvoir)
- A mística feminina (Betty Friedan)
- Laços de família (Clarice Lispector)
- Clarice: a epifania da escrita - presente em O conto de Clarice Lispector como provocação ao jovem leitor escolar (Affonso Romano de Sant'Anna)
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