“Amor, que tão rápido toma o coração gentil, prendeu-me a esta bela pessoa que foi arrancada de mim.”(A Divina Comédia, Canto V)
Escrevendo em um tom pessoal e particular, sempre gostei de romances trágicos. Gosto do simbolismo presente no imaginário literário de quando queremos algo que não podemos ter ou quando nos apegamos a alguma coisa que não irá durar. Acredito que, como pensavam muitos autores, escrever sobre a perda e a dor é interessante porque a dor é facilmente relacionável. Há algo muito humano em sentir dor, sentir saudade, desejar algo com tanto fervor ao ponto de beirar o egoísmo e culminar em uma morte trágica. Semelhantemente, como se fosse o outro lado de um espelho, há humanidade também na empatia que a dor nos provoca como leitores, ouvintes, ou apreciadores de uma manifestação artística em geral.
Para muito além do que críticos literários julgaram ser relevante para serem considerados cânone ou literatura marginal, a empatia que certas histórias nos provoca é o que as tornam eternas, algumas por, ao longo de séculos arrancarem lágrimas, outras por nos arrancarem suspiros, e ainda algumas por serem tão revoltantes que, desse modo, se tornaram imortais. As razões podem ser distintas, e o são, mas, ao fim, todas as histórias que nos tocam são, dessa maneira, eternizadas.
O romance trágico entre Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, casal italiano que viveu, no século XIII, uma fatídica história de amor, comoveu gerações de artistas ao longo dos séculos que se viram atiçados diante da dolorosa empatia que guiou Francesca e Paolo ao doloroso destino que os aguardava. Um dos artistas provocados por esse doloroso romance foi Dante Alighieri, que os perpetuou no cânone artístico ao incluí-los em sua célebre obra A Divina Comédia. Em A Divina Comédia, Dante, guiado pelo poeta latino Virgílio, se encontra com o casal no Segundo Círculo do Inferno e desmaia de tristeza após escutar o que os levou ao Inferno dos lábios da própria Francesca.
"– Em que pensas?Respondi:– Ó dor, quantos pensamentos doces, quanto desejo levou os dois a dar esse doloroso passo!"(A Divina Comédia, Canto V)
Além da representação em Dante também podemos encontrar retratos dessa paixão, que os levou a viver um romance proibido, nas artes plásticas, em obras como Os Fantasmas de Paolo e Francesca aparecem para Dante e Virgílio, pintada por Ary Scheffer, ou em A Morte de Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, pintada por Alexandre Cabanel, ambas as obras expostas respectivamente no Museu do Louvre e Museu d’Orsay, em Paris. Além das artes plásticas, também encontramos referências à Francesca e Paolo na escultura O Beijo, de Rodin, que antes de ter sido rebatizada, tinha como título original Francesca da Rimini. Por fim, uma dos meus retratos preferidos dos sentimentos de Francesca da Rimini para Paolo Malatesta, para si mesma e para tudo o que a acometeu – da solidão ao desejo, do desejo à paixão e, por fim, da paixão à dor de perder quem ama e reencontrá-lo em sofrimento eterno na vida após a morte – é capturado na música e, aqui, destaco dois dos meus favoritos: o compositor russo Pyotr Ilyich Tchaikovsky ao compôr o Poema Sinfônico Francesca da Rimini, e, na contemporaneidade, o cantor irlandês Hozier em sua recente canção Francesca.
Os fantasmas de Paolo e Francesca aparecem para Dante e Virgílio, por Ary Scheffer (1835) |
“I would not change it each time”(Francesca, Hozier)
Andrew Hozier-Byrne, que assina suas canções sob o nome artístico Hozier, sobrenome de sua mãe, é um cantor irlandês conhecido por canções repletas de referências artísticas e culturais. Assim como acontece com muitos de nós, em boa parte das canções de Hozier encontramos pistas e fragmentos de alguns de seus autores, cantores e romances preferidos, além de referências nítidas a discussões sobre problemas sociais comuns a Irlanda e ao Ocidente. Como artista, Hozier também se propõe a recontar e eternizar histórias, entre elas, a história de amor de Francesca e Paolo, com um diferencial que o destaca – Hozier, assim como faz Dante, permite que Francesca conte sua história, contudo, sob uma diferente perspectiva daquela do autor italiano: Hozier nos revela uma Francesca corajosa, apaixonada e sem culpa. Ele nos apresenta uma mulher que, ainda que tenha sido o principal alvo da culpa pela sua própria ida ao Inferno junto a seu amante, não possui culpa e, mais importante, se isenta da culpa que ao longo de séculos colocam sobre ela.
Francesca da Rimini foi uma mulher italiana nascida por volta do ano 1255, que viveu em Rimini e foi assassinada pelo próprio marido, Giovanni Malatesta, que, além de matá-la, também cometeu fratricídio ao matar o próprio irmão caçula, Paolo Malatesta, com quem Francesca estava vivendo um romance adúltero. Como uma mulher nobre, Francesca foi casada por meio de um casamento arranjado com Giovanni, filho mais velho da poderosa família Malatesta da Verucchio de Rimini e exímio soldado.
No Canto V de Inferno, podemos conhecer parte da história de Francesca, Paolo e seu assassino, Giovanni Malatesta, brevemente narrada pela própria Francesca escrita por Dante, que escutou a história diretamente por um dos parentes de Francesca e Paolo alguns anos após o assassinato que chocou a Província de Rimini. Conforme conta Francesca, Paolo e ela se aproximaram a partir de seções de leituras. Visto que seu marido se tratava de um soldado e filho mais velho de uma poderosa família, era comum que Francesca mal o visse e passasse boa parte do tempo sozinha. Paolo, que talvez também fosse um homem solitário, se aproximou dela ao notar o que tinham em comum – a solidão.
A morte de Francesca da Rimini e de Paolo Malatesta, por Alexandre Cabanel (1870) |
Como única testemunha do que estava se desenvolvendo entre eles havia um livro, descrito por Dante como a história de cavalaria sobre o Rei Arthur. Juntos, Francesca e Paolo liam sobre o romance também proibido e trágico que viveram Lancelot e Guinevere. Nesse ponto do canto é possível interpretar com facilidade qual talvez fosse a intenção de Dante ao apresentar o amor de Lancelot por Guinevere e de Guinevere por Lancelot, ambos sobressaindo o amor que sentiam por Arthur, respectivamente melhor amigo e cavaleiro de confiança de um e marido de outro. É importante lembrar também que, por se tratar de um poema épico escrito no século XIV, Dante dirigia seu poema para leitores que conheciam bem Lancelot e Guinevere, visto que tratava-se também de um período em que romances de cavalarias eram muito populares entre o público leitor. Então, ao inseri-los como única testemunha da paixão entre Francesca e Paolo, Dante também avisava indiretamente aos leitores o final trágico que os aguardava e, mais do que isso, o quão condenável era o que Francesca e Paolo faziam, guiando-os ao raciocínio comum à moral daquela sociedade: que aquele casal, como infrator das leis morais, deveria ser punido em vida e em morte.
“Enquanto líamos a cena em que a desejada boca de Guinevere era beijada por seu amante, Paolo, que nunca mais será separado de mim, beijou-me a boca todo trêmulo.”(A Divina Comédia, Canto V)
Ao encontrá-la junto a Paolo no Segundo Círculo do Inferno, Dante, tomado por empatia e dor, desmaia por não suportar tamanha tragédia. Francesca, por sua vez, não é sequer capaz de terminar de contar sua própria história. Ainda que saibamos tudo o que aconteceu a ela, não somos capazes de conhecer a partir de seus lábios o momento em que Giovanni a assassinou. É demais para ela suportar, de modo que ela se cala, enquanto Paolo, tomado por dor, somente chora.
Hozier, aos nos apresentar seu retrato de Francesca da Rimini, a introduz a partir de um primeiro verso muito marcante: “Do you think I’d give up/ That this might've shook the love from me/ Or that I was on the brink?” (“Você acha que eu desistiria? Que isso poderia ter abalado o meu amor ou que eu estaria no meu limite?”, em tradução livre). Conhecemos, a partir disso, uma Francesca que não se arrepende e que, diferentemente da moralidade presente em Dante, que a condena ao sofrimento sem fim no Inferno ainda que tenha sido a vítima de assassinato, se vê contente na eternidade. Ao pintar, através de sua composição, a confissão de Francesca, podemos facilmente imaginá-la se declarando, talvez não para o próprio Paolo, mas para aqueles que a subjugaram ao Inferno, aos seus pais, que a subjugaram a uma vida ao lado do homem que seria seu assassino, ao próprio Giovanni, seu assassino, ou a nós leitores que somos tocados por sua história e, ao eternizá-la em nós, nos sentimos detentores da autoridade de julgar suas ações.
Paolo e Francesca, por Anselm Feuerbach (1864) |
Logo Francesca confessa, mais uma vez, que além de não estar arrependida, faria tudo de novo. Que mulher ousada. Que mulher corajosa. E como o amor que ela sente a torna poderosa. Assim como no Poema Sinfônico de Tchaikovsky, Hozier, em certo momento, distribui ao longo da canção versos dolorosos que marcam o momento em que Francesca lamenta pelas consequências que seu amor por Paolo causou. Ela lamenta, em especial, como foi breve o instante em que estiveram juntos em segredo; no entanto, ainda que soubesse que experimentar a perda de Paolo pudesse esmagar seu coração, imaginar um universo em que não o conhecesse a machucaria ainda mais.
“Heaven is not fit to house a love like you and I”(Francesca, Hozier)
Hozier, então, finaliza a canção e, consequentemente, a confissão de Francesca da Rimini com um dos versos mais bonitos sobre amor, colocando-se à altura de artistas como os já citados Tchaikovsky, Dante Alighieri, Ary Scheffer, Rodin e muitos outros que contribuíram a eternização do amor de Francesca e Paolo, ao declarar que as barreiras dos Céus, talvez infinitas, não são o suficiente para ousar limitar o amor que existe entre eles. Assim, Francesca, por amor, atreve-se a se colocar contra aqueles que os condenaram ao Inferno. Puni-los não seria o suficiente para separá-los porque eles jamais seriam separados, não em vida e não em morte, não seriam esquecidos pelas barreiras do tempo e nem se esqueceriam um do outro, porque seu amor estava destinado à eternidade. A lâmina de Giovanni não havia sido o suficiente, assim como a moral religiosa não havia sido o suficiente, ou o Inferno, ou mesmo cada um dos Círculos do Inferno.
Acredito, sinceramente, na beleza dos romances trágicos, e, mais do que isso, me delicio com a possibilidade de repensarmos e ressignificarmos histórias. Espero que continuemos a cultivar sentimentos tão profundamente humanos como a empatia e o amor, e que esse amor, acima de qualquer coisa, possa nos inspirar a sermos corajosas, como Francesca. Que Francesca continue eterna, e que cada um de nós continuemos a eternizar histórias.
Referências
- A história de Francesca na Divina Comédia (Miz Literatura)
- Francesca (Hozier)
- A Divina Comédia (Dante Alighieri, na tradução de Eugênio Vinci de Moraes)
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