últimos artigos

Uma porção de mingau para Oliver Twist: a cruel história das Workhouses vitorianas

Entre o final do século XVIII e início do século XIX, a Inglaterra passou por mudanças econômicas significativas advindas do início da Revolução Industrial e da transformação do sistema de trabalho. A implementação de novos sistemas de produção e a necessidade de mão-de-obra para as máquinas recém criadas alimentou o êxodo rural e causou uma explosão demográfica sem precedentes em centros já movimentados como Londres e Manchester. Tal esgarçamento do tecido social não aconteceu sem gerar, claro, um contingente marginalizado de pessoas que não tiveram meios de se adequar aos novos tempos ou não foram absorvidas pelo mecanismo do sistema fabril. Enquanto uma parcela da população brindava ao progresso, uma massa paupérrima e explorada vivia amontoada em cortiços, à mercê da fome e da ameaça de epidemias de tifo e cólera.

A penúria extrema de centros populacionais não tardou a virar caso de debates acalorados em algumas esferas, já que os métodos que haviam sido estabelecidos por séculos para lidar com os miseráveis não conseguiam mais abarcar o quinhão empobrecido que superlotava as metrópoles. Foi nesse contexto de ruptura que as Casas de Trabalho (Workhouses) se tornaram organismos que pretendiam prestar assistência aos mais pobres. Na prática, porém, elas se tornaram um símbolo vitoriano de descaso, exploração e humilhação para com os necessitados. 

Na Inglaterra vitoriana, o cidadão que não conseguisse sustentar a si mesmo ou à sua família e não tivesse onde morar tinha como último recurso buscar refúgio em uma Casa de Trabalho. No auge do reinado da rainha Vitória, cerca de 700 dessas instituições funcionavam, espalhadas pelo território. Eram, a rigor, lugares que deveriam prover acomodação e comida para os pobres, idosos, órfãos, doentes e necessitados em troca de trabalho não remunerado, mas que, por sua estrutura física e de gerenciamento, se assemelhavam em muitos casos a prisões e casas de tortura. 

Para muitos, a mera insinuação de que precisariam ir para uma dessas instituições despertava medo e angústia, pois as condições dentro de uma Casa de Trabalho eram tão excruciantes que, em alguns casos, era preferível dormir ao relento do que buscar uma delas. A dependência de uma Casa de Trabalho era considerada uma humilhação moral e social que estigmatizava o cidadão e sua família por toda a vida. 

A estrutura de uma Casa de Trabalho 

A estrutura da Casa de Trabalho — e a existência de medidas paliativas em relação à pobreza — não era uma inovação vitoriana, no entanto. Leis e decretos visando contornar o problema da vulnerabilidade social haviam surgido ainda no período Tudor, e muitas tencionavam diminuir a responsabilidade do Estado sobre a população carente, legando essa tarefa para as paróquias. As leis sofreram reformulações ao longo do tempo para se adequar ao contexto social e político, mas nenhuma conseguiu diminuir de forma efetiva e humanizada a questão da pobreza. O crescimento exponencial da população no início do século XIX agravou a situação e avolumou consideravelmente o número de indigentes em busca de ajuda do Estado e da Igreja. 

A sociedade vitoriana de classe média e alta, todavia, começou a ver com maus olhos a assistência fornecida aos pobres, estes considerados degenerados e agentes da própria situação, e a pressão política e de opinião pública deu origem à promulgação, em 1834, de uma Emenda à Lei dos Pobres (The Poor Law Amendment Act), que visava desestimular a prestação de assistência a qualquer pessoa que se negasse a ir para uma Casa de Trabalho. O sistema, claro, tinha origem em uma visão preconceituosa sobre as classes menos favorecidas e buscava regular a vida dos pobres dentro dos padrões vitorianos de decoro e moral. A pobreza era vista como uma falha do indivíduo causada por seus vícios e preguiça e, portanto, este devia ser tratado de forma severa e punitiva. As Casas de Trabalho se tornaram, a partir daí, a mão pesada que condenava, humilhava e determinava quem deveria ou não receber amparo. 

Design de Workhouse para 300 pessoas (1835)

A Casa de Trabalho era dividida em alas que segregavam homens, mulheres e crianças, separando as famílias desde o momento em que davam entrada na instituição. Depois, estes eram despidos de suas roupas e quaisquer pertences que viessem a ter, tinham a cabeça raspada e tomavam um banho comunitário frio (com a água que havia sido usada por todos que haviam chegado naquele mesmo dia). Tal qual prisioneiros, também recebiam um uniforme que seria sua única roupa pelo tempo em que permanecessem na instituição (Mary Ann Nichols, a primeira vítima de Jack, o Estripador, usava uma anágua da Lambeth Workhouse quando seu corpo foi encontrado, evidenciando sua passagem pela Casa).  

A dieta na instituição consistia em um mingau aguado ou pequenas porções de pão, queijo ou batata de baixa qualidade. A condição precária da comida, com excrementos de ratos ou estragada, era um problema recorrente. As mulheres eram encaminhadas para realizar tarefas para a própria Casa de Trabalho, como lavar, costurar e cozinhar. Os homens recebiam trabalhos como quebrar pedras, fazer fertilizante, cortar madeira e separar estopa. A jornada de trabalho costumava ser de 10 horas por dia, durante 7 dias por semana e todas as tarefas eram pensadas para serem maçantes, extenuantes e desmoralizantes, visando punir os habitantes da Casa de Trabalho pela sua pobreza. A renda obtida era revertida para a instituição. 

St. James Worhouse (1808)

Às crianças, era prometida educação, mas muitas eram dispostas em sistemas de adoção ou “embarque” através de anúncios, o que dava margem para que várias fossem usadas por pessoas mal intencionadas. Outras eram entregues para donos de fábricas que buscavam mão-de-obra barata e fácil de explorar. A perspectiva de se separar de seus filhos e talvez nunca mais vê-los levou muitas mães a cometerem ações desesperadas como a feita por Eliza Adkins que, em 1865, afogou o próprio filho em um poço, pois não aguentava ficar separada dele por uma grade e escutá-lo chorar dentro da Loughborough Workhouse.

“Nas comunidades trabalhadoras, o estigma social de ter passado algum tempo na casa de trabalho era tão grande que muitos preferiam pedir esmola, dormir em locais inadequados ou se prostituir a se colocar à mercê do auxilio paroquial.”

A coerção brutal era comum e se enquadrava no regime punitivo que se esperava de uma Casa de Trabalho. Em 1896, uma mulher chamada Hannah e seus dois filhos, Charlie e Sidney, deram entrada na Newington Workhouse. Oito dias após a sua admissão, Hannah foi internada na enfermaria com uma série de hematomas pelo corpo, de origem não registrada. Anos depois, o menino de apenas 7 anos se tornaria um dos maiores expoentes do cinema mudo, Charlie Chaplin. As lembranças do sistema da Casa de Trabalho e as mazelas da pobreza influenciaram de forma muito contundente a ficção do ator. 

A desumanização do indivíduo que adentrava uma Casa de Trabalho muitas vezes o seguia após a morte. A partir de 1832, através do Anatomy Act, se tornou legal para cirurgiões dissecar corpos não reclamados de pessoas que faleciam dentro do sistema das Casas de Trabalho. O entendimento da lei era de que a pobreza era um crime, e ao ter seu corpo entregue para estudos, o indivíduo estava pagando sua dívida para com a sociedade. Os corpos eram utilizados e descartados em valas comuns sem registro ou ritos fúnebres.  

“Por favor, Senhor, eu queria um pouco mais"

Um sistema tão recorrente e integrado à sociedade vitoriana não passou despercebido pelas artes da época. Críticas à Casa de Trabalho ou alusão a seus métodos apareceram em poemas, peças de teatro, músicas (muitas satíricas) e em romances de autores como Thomas Hardy, George Eliot e Frances Trollope. Mas nenhum apontou uma lupa tão crítica sobre a Casa de Trabalho quanto Charles Dickens em seu livro Oliver Twist.

Escrito entre 1837 e 1839, o romance acompanha as desventuras de um órfão de bom coração, nascido em uma Casa de Trabalho. O pequeno e indefeso Oliver Twist passa, durante boa parte da narrativa, por castigos e provações de pessoas de má índole, muitas delas ligadas à Casa de Trabalho. Em uma das cenas mais emblemáticas da trama, Oliver corajosamente se arrisca a pedir uma segunda porção de mingau, o que lhe acarreta uma série de castigos violentos.

Charles Dickens

“A fome e os maus tratos recentes são ótimos ajudantes se você quer chorar; e Oliver de fato chorou com muita naturalidade.”

Na vida real, o próprio Dickens havia morado duas vezes a poucas portas de distância da Cleveland Street Workhouse o que, com certeza, deu a ele uma noção realista da instituição e das pessoas por trás das janelas altas do prédio. Anos depois, já um reformista atento a muitas causas problemáticas de sua época, ele entregou ao público vitoriano um relato ficcional, porém perspicaz, das condições vulneráveis a que muitas pessoas, principalmente crianças, eram expostas no sistema da Casa de Trabalho. Sua crítica mais contundente, no entanto, parece ser contra o sistema hipócrita e burocrático que era preenchido em todos os níveis por pessoas corruptas e gananciosas, que enriqueciam às custas do sofrimento e morte dos vulneráveis como Oliver e sua mãe. 

O sistema das Casas de Trabalho continuou a abrigar famílias mesmo no século XX. Em 1929, através de uma mudança de legislação, muitas delas foram transformadas em enfermarias ou hospitais, mas outras permaneceram recebendo pessoas empobrecidas e sem teto. As regras, todavia, haviam mudado muito pouco e sobreviventes ainda relatam a rigidez e frieza com que foram tratados pelo tempo que lá permaneceram. Hoje em dia, os edifícios que restaram se transformaram, em maioria, em museus e centros de memória que buscam resgatar a história da instituição, seus erros e acertos, e lançar um pouco de luz sobre a vida de milhões de pessoas que passaram pelas paredes das Casas de Trabalho. E a nós, enquanto sociedade, cabe nunca esquecer de momentos obscuros como aquele e dos que sofreram sob condições tão aviltantes.

Referências 




O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥

Comentários

  1. Excelente texto! Oliver Twist é um retrato angustiante da opressão social que eram essas instituições!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fico feliz que tenha gostado! É um livro ótimo, muito perspicaz em suas críticas.

      Excluir

Formulário para página de Contato (não remover)