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O trágico mito de Apolo e Dafne na arte

O que acontece quando um deus se apaixona? Em uma das versões mais famosas do mito, contada pelo poeta latino Ovídio, Apolo, o deus do sol, da medicina, da música e das divinações, se apaixona pela bela ninfa Dafne. O deus era conhecido por ser egocêntrico e arrogante, além de ter uma fascinante habilidade com o arco e flecha. Depois de matar a serpente Píton, que há séculos assombrava a humanidade, sua confiança cresceu ainda mais. Ao ver Cupido brincando com seu pequeno arco, Apolo se aproximou cheio de soberba e disse:

"— Que tens a fazer com armas mortíferas, menino insolente? Deixe-as para as mãos de quem delas sejam dignas."

Diante de toda a prepotência do deus do sol, Cupido respondeu:

"— Tuas setas podem ferir todas as outras coisas, Apolo, mas as minhas podem ferir-te."

Para se vingar, Cupido tirou de sua aljava duas flechas diferentes, uma com a ponta feita de ouro para atrair o amor, e a outra de chumbo, acertando a flecha do amor em Apolo e a de chumbo na ninfa Dafne. A partir desse momento, Apolo se viu completamente apaixonado pela ninfa, que o abominou à primeira vista. Completamente cego pelo desejo, Apolo perseguiu a ninfa com determinação, que fugiu dele desesperadamente. Ainda sem conseguir alcançá-la, Apolo tentou se explicar:

"— É por amor que te persigo! Espere ninfa, filha de Peneu, eu te imploro! — gritou Apolo, mas Dafne nem olhou para trás."

As ninfas são espíritos da floresta, divindades femininas que habitam lagos e bosques. Elas são a personificação da beleza e fertilidade da mãe natureza. Dafne é filha do rio-deus Peneu, uma das ninfas mais belas de todas; sua beleza encantava a todos os homens, mas Dafne amava a natureza e a caça acima de tudo, ela era uma virgem caçadora devota à deusa Ártemis. Ela odiava a ideia do casamento, e por isso implorou a seu pai para que permitisse que ela fosse solteira para sempre, mas teve seu pedido recusado, pois Peneu acreditava que ela era bela demais para nunca se casar.

Depois de muito fugir, Dafne suplicou ao seu pai para que a ajudasse: “Destrua a beleza que me feriu ou troque o corpo que destrói minha vida”. Assim, no momento em que Apolo se agarrou a ela, a ninfa se transformou em um loureiro, seus braços começaram a virar galhos, suas pernas, raízes, e seus cabelos viraram folhas. Triste por não poder mais admirar a beleza de sua amada, Apolo abraçou seus ramos e beijou sua madeira, e mesmo assim foi empurrado para longe. Aos prantos por ter perdido seu amor, o deus decidiu usar suas folhas como coroa. Ele teceu os louros e os colocou sobre a cabeça, representando seu amor eterno.

"— Usarei tuas folhas como coroa, com elas enfeitarei minha lira e minha aljava; e, quando os grandes conquistadores romanos caminharem para o Capitólio, à frente dos cortejos triunfais, serás usada como coroas para suas frontes."

Dessa forma, o louro se tornou o símbolo do deus do sol, e o prêmio dos jogos gregos, principalmente dos Jogos Píticos, os mais importantes da Grécia depois dos Jogos Olímpicos, pois eram uma celebração a Apolo. Os vencedores eram coroados com uma coroa de louros, tradição também muito utilizada pelos romanos. No dia a dia, a sacerdotisa do templo de Apolo, pítia ou pitonisa, mascava folhas de louro para se comunicar com o deus e dar suas profecias aos fiéis. 

Abuso de Apolo

A palavra "Eros" é derivada do verbo érasthai, que em grego clássico significa “desejar ardentemente”. Além de demonstrar o poder de Cupido, o deus do amor, o mito nos dias de hoje é um retrato de abuso e perseguição. Infelizmente, essa não é uma história de amor. Durante todo o mito, Dafne é privada de suas vontades, primeiro sendo amaldiçoada por Cupido, depois tendo seu pedido de castidade negado por seu pai, e por último, sendo perseguida por Apolo. Peneu parece ser o único a aceitar o último desejo da filha, como uma forma de redenção ou arrependimento. A personagem precisou abrir mão de sua vida para encontrar a liberdade. A ninfa preferiu perder a humanidade a renunciar seu poder de escolha. Dafne é silenciada para sempre e sua única fala passa a ser através do balançar de seus galhos. 

As representações do mito na arte

A famosa escultura do artista barroco italiano Gian Lorenzo Bernini foi esculpida em mármore, em tamanho real, entre 1622 e 1625, e atualmente se encontra na Galleria Borghese, em Roma. A escultura foi feita para o cardeal Scipione Borghese no início da carreira de Bernini, mas o artista não trabalhou sozinho, pois seu aluno, Giuliano Finelli, o ajudou nos detalhes da transformação de Dafne em árvore. O maior desafio da escultura foi dar a sensação de desequilíbrio e movimento na pedra, percebido através do cabelo esvoaçante de Dafne e das vestes de Apolo, que rodeia os dois personagens. A veracidade com que a cena mitológica é descrita no mito é tamanha que, por um segundo, quase nos faz esquecer que estamos diante de uma figura de mármore.

Apolo e Dafne, por Gian Lorenzo Bernini (1625)

Na escultura, Apolo alcança a ninfa e envolve seus braços ao redor dela, enquanto Dafne parece estar em súplica aos céus. E embora já a tenha alcançado, nem assim ele foi capaz de tocá-la devidamente, pois suas mãos estavam sob o tronco da ninfa, e não mais sua pele. A obra foi pensada para ser exposta de frente, de modo que tanto as expressões de Dafne quanto as de Apolo fossem vistas ao mesmo tempo e o contexto todo fosse entendido. Se observada pelo lado esquerdo, a alegria do jovem por ter sua amada em seus braços fica clara, e também o medo nos olhos de Dafne por ter sido capturada. Porém, ao se colocar de frente para a escultura, a ninfa não parece mais tão preocupada, agora sua transformação em árvore já se iniciou. Apolo, por outro lado, transparece seu desespero ao perder seu grande amor.

O pintor italiano Giovanni Battista Tiepolo, assim como muitos outros artistas, também representou o mito em sua pintura: Apolo perseguindo Dafne é uma demonstração dramática e intensa da cena. Nessa representação, Apolo tenta capturar Dafne, que se esquiva do deus. Peneu, o pai da ninfa, permanece ao lado da filha, sem se intimidar por Apolo, e Cupido se esconde da ira do deus do sol se posicionando atrás de Dafne.

Apolo perseguindo Dafne, por Giovanni Battista Tiepolo (1744)

No museu do Louvre há outra versão do mito, com os personagens representados separados. Tal obra foi feita no início do século XVIII pelos irmãos franceses Nicolas Coustou, que esculpiu Apolo, e Guillaume I Coustou, que trabalhou em Dafne. As obras foram encomendadas pelo departamento de edificações de Luís XIV, junto com outras duas esculturas, Hippomène, de Guillaume I Coustou, e Atalante, de Pierre Lepautre. Cada obra decorava um lado do jardim do Castelo de Marly, dando a impressão de que seus olhares se cruzavam. Atualmente expostas no Museu do Louvre, as esculturas dão a sensação de velocidade, com Apolo inclinado para frente e seus cabelos ao vento correndo em direção à sua paixão, enquanto Dafne, assim como na obra de Bernini, expressa um completo terror nos olhos. 

Todas as obras retratam de diferentes formas as consequências de ações irracionais movidas pelo desejo. Apolo, o deus do oráculo, aquele que orientava as escolhas e os caminhos, se perdeu completamente em sua paixão, não conseguindo prever o trágico fim da própria história. "Mas uma flecha mais fatal que as minhas atravessou-me o coração!" 

Referências




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Isadora Bispo
Bacharel em Jornalismo, escreve sobre tudo o que envolve cultura e entretenimento. Ama música pop e ainda faz questão de comprar todos os cds da Taylor Swift. Viciada em documentários true crime, histórias de fantasia, era vitoriana, tarot e mitologia grega. Apaixonada por literatura, cinema, arte e história, de preferência tudo isso junto.

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