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O gótico feminino em Úrsula


Quando falamos em literatura gótica sempre nos vem à mente clássicos da fria e longínqua Inglaterra, como Frankenstein, de Mary Shelley, ou O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë. Pensamos em sussurros na noite, castelos mal-assombrados e árvores tortuosas cujas sombras lembram as garras de uma criatura maligna. É possível apontar a origem do gótico à época de urbanização e Primeira Revolução Industrial na Inglaterra, além da recuperação de discursos medievais calcados na religião, em lendas ou em folclores, em contraste com discursos racionalistas e cientificistas do Iluminismo. Sendo uma vertente do Romantismo europeu, o gótico trazia heróis e mocinhas à lá romances de cavalaria, vilões terríveis, sem escrúpulos, mortes dramáticas, personagens enlouquecidos, muitas descrições de paisagens e muitos fantasmas do passado. Nele, diversos mecanismos narrativos se reúnem com o objetivo de criar uma atmosfera sombria que levará o leitor a experienciar o efeito estético do terror e do medo.

O medo, por sua vez, advém daquilo que é considerado sobrenatural e incomum, fugindo da racionalidade entendida por nós, leitores. É um medo do desconhecido e daquilo que extrapola a nossa concepção de real, mas ao mesmo tempo, em que encontramos familiaridade. Na obra de Mary Shelley vemos que os personagens reconhecem a forma humana da criatura de Frankenstein, mas também que há uma dificuldade em conceber sua fisiologia gigantesca. Nós mesmos teríamos dificuldade de compreender aquele ser composto de partes de cadáveres. A imagem fantasmagórica de Catherine Earnshaw na obra de Emily Brontë, ao tentar atravessar a janela de seu antigo quarto, também parece ter um quê de humanidade, mas a estranheza e distanciamento de sua condição de espectro sempre falará mais alto quando lemos tal cena. Essas criaturas que não podemos ver como completamente humanas são uma grande ferramenta do gótico. Ao mesmo tempo, a violência constante dos protagonistas de O Morro dos Ventos Uivantes e da Criatura de Frankenstein e suas respectivas transgressões, tanto às lógicas do real e do terreno quanto às crenças religiosas ou científicas, também são aspectos importantes na produção do sentimento de medo que tanto nos importa dentro do gótico.

É interessante pensar que temos uma quantidade considerável de escritoras nessa área. Além das já citadas, temos Ann Radcliffe, Charlotte Smith, Eliza Parsons, e até mesmo Anne Rice, com seu romance Entrevista com o vampiro. Ana Paula Araujo dos Santos em seu artigo A vertente feminina do gótico na literatura brasileira oitocentista explica a existência de um Gótico Feminino cuja diferença não é marcada por gênero, já que homens poderiam escrever romances que compartilhassem das características desse movimento, mas sim por uma opção do autor em realçar, na forma de elementos amedrontadores na narrativa, situações e experiências tipicamente vividas por mulheres no século XIX. No Gótico Feminino o leitor é levado a experimentar as angústias e medos das personagens femininas dentro de uma sociedade que lhes privou de ter liberdade. O Gótico Femino busca mergulhar nas insatisfações, nas ansiedades e nos conflitos que uma mulher que está submetida a este universo patriarcal precisa enfrentar. É nesse contexto também que temos a popularização das personagens arquetipicamente chamadas de “damsel in distress”, ou donzela em perigo, que recorrentemente estavam sendo perseguidas por um vilão e, em muitos casos, possuíam um final trágico. A partir do sofrimento dessa donzela é que podemos ver a potencialização do terror vivenciado pelas mulheres através da literatura.

É importante dizer que no Brasil também há diversas obras góticas e góticas femininas de imenso valor que, por muito tempo, estiveram fora do radar da crítica e, consequentemente, do público-leitor geral. É este o caso do romance Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos Reis, publicado em 1859, assim como outras obras de sua época, de escritoras como Emília Freitas, Luísa Leonardo Marques e Francisca Senhorinha da Motta Diniz, que, embora tenham sido muito relevantes ao difundir o gênero gótico no século XIX, foram jogadas à margem da história e esquecidas por muito tempo pelos leitores brasileiros. Apenas no século XX, Úrsula tornou a ser lido e discutido com frequência e sua importância foi notada para que este finalmente pudesse integrar o cânone literário da literatura brasileira. Muito inspiradas nessa tradição gótica inglesa, essas escritoras compuseram obras surpreendentes e intrigantes, nas quais as convenções do gótico são atualizadas para refletir situações correspondentes ao contexto do Brasil Imperial de 1800, com temáticas como a violência física e psicológica, crimes transgressores, vilões cruéis e contraposição com heroínas jovens e inocentes e, ainda, apresentam os horrores de um Brasil cuja realidade era cruelmente escravocrata. A denúncia de racismo e machismo são características recorrentes nesses góticos brasileiros.

O romance Úrsula conta a história de uma protagonista homônima que se apaixona pelo jovem Tancredo, mas, por mais valorosos, puros, altruístas que sejam, ambos enfrentam diversos obstáculos ao tentar concretizar seu amor. A jovem, ao se tornar órfã, é entregue à proteção de seu tio, o comendador Fernando P…, que desenvolve uma paixão pela sobrinha e tenta utilizar sua posição social, meios ilegais, violência, tudo o que for possível para desposar a moça. Traços do Romantismo ainda podem ser percebidos nessa trama, como a recorrente escolha de adjetivos e metáforas na descrição dos personagens, que trazem uma imagem idílica de suas personalidades. Úrsula é sempre a flor daquelas solidões, a flor do deserto, bastante, também, comparada a um anjo; enquanto Tancredo é um cavaleiro melancólico, de coração nobre, com a face pálida. Ao mesmo tempo, no caso de personagens como Túlio, o homem negro escravizado, a descrição evidencia o problema e a tristeza de sua condição. Ele inicialmente surge como o “triste escravo”, “coitado do escravo” etc. Essa questão abolicionista é muito pertinente considerando o contexto de criação da obra, em que Maria Firmina dos Reis era uma mulher afrodescendente, filha de uma ex-escravizada liberta em pleno século XIX. Vemos que a autora se preocupa durante toda a obra em dar voz aos personagens escravizados, que, comumente na literatura da época, mal apareciam nos textos literários, e quando apareciam eram tão figurativos no segundo plano do cenário quanto objetos de uso da casa colonial. Maria Firmina dos Reis, em Úrsula, faz questão de abordar narrativas de pessoas negras como forma de estabelecer sua posição no movimento abolicionista de sua época, não se detendo em apresentar a voz dos personagens escravizados, mas mergulhando nos sentimentos deles diante de sua situação angustiante, incluindo o ponto de vista da diáspora por parte de uma mulher africana trazida em navio negreiro para o Brasil. A condição do escravizado no Brasil Imperial é com certeza uma temática aterrorizante digna de figurar uma obra gótica.

Uma coisa a se notar nessa obra é que não apenas o tio de Úrsula, Fernando P…, mas também seu pai, Paulo B…, e o pai de Tancredo surgem como personagens masculinos que buscam manobrar situações a seu próprio favor, valendo-se de poder, dinheiro e perversidades. Eles são vilões do gótico feminino, simbolizando o poder patriarcal do qual nem os jovens, nem as mulheres, nem os escravizados conseguem escapar. Há já logo no início uma imagem interessante que nos adianta esse significativo tema que virá a ser tratado, “Oh! O sol é como o homem maligno e perverso, que bafeja com hálito impuro a donzela desvalida, e foge, e deixa-a entregue à vergonha, à desesperado, à morte! – e depois, ri-se e busca outra, e mais outra vítima!" (p. 53). Esses homens detêm autoridade inquestionável na narrativa. Podemos vê-la quando Tancredo, antes de conhecer Úrsula, deseja se casar com uma paixão de infância, Adelaide, e seu pai o impede e o trai, casando ele mesmo com a jovem. Sabemos que o evento foi trágico antes mesmo que ele fosse contado, pois Tancredo, após acidentar-se e cair enfermo na cama, balbucia alucinadamente sobre a índole de Adelaide e a morte de sua mãe. Essa questão da alucinação e da assombração é uma característica forte do gótico que aparece em Úrsula. No momento citado, os personagens que estão à volta de Tancredo descrevem como seu delírio é violento e assustador, que “absorvia-lhe as faculdades” (p. 63). Vemos mais tarde que o jovem está vendo em seus delírios fantasmas do seu passado, de seu trágico desencontro amoroso com sua antiga amada e dos eventos que levaram à morte de sua mãe.

O sangue e a violência estão também muito presentes na obra. Vemos logo no início, quando Tancredo é derrubado do cavalo por conta da morte do animal, que ele é descrito como “lançado por terra, tinto em seu próprio sangue, e ainda oprimido pelo animal já morto” (p. 54). Não bastasse criar essa imagem nauseante de um homem que sangra embaixo de um cavalo morto, a narração ainda aponta que o rosto de Tancredo está desfigurado. Há também, após a fuga de Úrsula e Tancredo, o vilanesco Fernando P…, que os persegue enciumado e assassina o homem na frente de sua noiva, criando uma nova cena sanguinolenta. Úrsula foge com seu amado Tancredo, e aí temos um exemplo da mocinha em fuga, que tenta escapar das garras de seu terrível antagonista, mas não tem sucesso. Apunhalado, Tancredo sangra nos braços de Úrsula, nos quais “Um mar de sangue tingiu-lhe as mãos e os puros seios”.

Vemos que os delírios e as assombrações dão um aspecto sobrenatural à obra, e mesmo que sejam de alguma forma explicados pela racionalidade, como por doença ou loucura, eles são construídos a partir de imagens que produzem o medo por causar empatia entre o leitor e os protagonistas. Da mesma forma, esses personagens transgressores são todos fontes de medo por se comportarem de maneira ou animalesca ou sádica e libidinosa, em um nível para além do normal, criando uma ilusão de que a vilania dos personagens os afasta de nós, seres humanos, tornando-os assustadores. 


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