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Anita Garibaldi: uma metáfora para a liberdade feminina

Nos dias de hoje, ela dá nome a escolas, ruas, avenidas, cidades e pontes. Monumentos foram erguidos em sua homenagem. Selos estampam sua possível fisionomia.  Em 30 de abril de 2012, foi sancionada a Lei 12.615, que inscreveu o seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. Ela faz parte do panteão da liberdade e democracia em Brasília, memorial cívico destinado a homenagear heróis e heroínas, e sua figura é a representação nacional da força da mulher brasileira. No Brasil, Uruguai e Itália não há quem não tenha ouvido falar, nem que seja na ficção, de Anita Garibaldi, a heroína de dois mundos. Mas, para além do mito que dela se fez, o que resta da mulher que nasceu Ana Maria de Jesus

A resposta é: muito pouco. De origem humilde, Anita sofre daquele apagamento histórico intrínseco às classes empobrecidas. Fatos são escassos, documentos são inexistentes ou extraviados. Até o seu local de nascimento permanece encoberto por uma certa incógnita. A tradição oral levanta a hipótese de que ela tenha nascido em Lages. Um monumento erguido em Morrinhos atesta que ela nasceu na comunidade. Já Laguna se baseia no que Garibaldi afirmou no documento de matrimônio em Montevidéu, que Anita havia nascido na cidade. A questão é que quase tudo que sabemos sobre ela passou pela ressignificação do passado, encabeçada principalmente pelo marido, Giuseppe Garibaldi, em suas Memórias

Escrita por ele e editada pelo amigo Alexandre Dumas, o livro Memórias de Garibaldi narra os feitos, as viagens, batalhas e família do homem que participou de lutas no Brasil, Uruguai e Itália. E foi nas memórias de Giuseppe que Anita ganhou contornos míticos, uma “amazona brasileira”, uma “estátua de Pallas” que lutou ao seu lado até a morte, vindo a padecer de forma épica, fazendo jus à glória da nação italiana. Seguindo a tradição dos grandes feitos, a Anita das memórias de Garibaldi é uma mulher soldado, heroína e companheira, sem defeitos ou máculas. Sabendo que tanto ele quanto ela entrariam para a posteridade depois de participar de lutas nos três países, Giuseppe falou de Anita como gostaria que ela fosse lembrada pela história, um gesto bastante nobre de um homem que amou profundamente, mas que também dificultou que se conseguisse entrever, posteriormente, uma mulher mais humana e menos feita de bronze.

“Anita, pelo contrário na popa, no meio da metralha, estava direita e sossegada como uma estatua de Pallas, e Deus que me cobria com uma das suas mãos, estendia-lhe também essa proteção.”

Tal imagética da heroína ganhou maior força nacional após a consolidação da República brasileira, momento em que começou a ser montado e evocado um panteão de heróis da pátria, e também com a tradução das Memórias de Garibaldi para o mercado brasileiro. Os primeiros biógrafos do século XX, no entanto, deram um tom mais feminino à imagética de Anita, acrescentando à construção discursiva dela a ideia de uma mulher que fora sim competente no campo de batalha, manejando carabinas e sabres, mas também exercera papel amoroso e exemplar no lar. Era guerreira, mas era mãe. Era soldado, mas era esposa. Anita passou a ser um exemplo de figura feminina que equilibrava perfeitamente feminilidade e bravura, amor maternal e heroicidade. 

A Ana antes de Anita

Apesar de não haver certeza absoluta sobre seu local ou data de nascimento, alguns fatos podem ser levantados sobre Ana Maria de Jesus antes de se tornar Anita Garibaldi. Era a terceira filha do tropeiro Bento Ribeiro da Silva (Bentão) e Maria Antonia de Jesus Ferraz. Como não havia registro civil obrigatório, comumente todos os enlaces sociais e nascimentos eram registrados junto à Igreja e sabe-se que a primeira filha do casal e irmã mais velha de Anita, Felicidade, foi batizada no dia 1º de novembro de 1816, em Laguna. Do nascimento de Anita, nada restou ou nada foi registrado. A suposição mais aceita é de que ela tenha nascido em 1821 como Ana Maria de Jesus, Aninha para os familiares. Sobre sua infância pouco se sabe, além de alguns relatos orais coletados posteriormente que diziam ser ela desde pequena rebelde e geniosa. O próximo fato comprovado de sua historia é o casamento no dia 30 de agosto de 1835, com Manuel Duarte Aguiar (chamado de Manuel Sapateiro), registrado na Igreja Santo Antônio dos Anjos em Laguna. 

Se foram felizes, não há informação, mas o fato de ela estar sozinha no momento da entrada de Garibaldi na cidade e depois ter seguido com ele parece-nos evidenciar que a união não era robusta o suficiente para que ela se sentisse compelida a mantê-la. Aqui reside uma das questões que Garibaldi em suas Memórias camuflou provavelmente para não criar uma imagem inadequada de Anita, já que a fuga de uma mulher casada implicava uma mácula social que não seria bem-vista na biografia dela dentro da rígida sociedade do século XIX. Garibaldi menciona a questão brevemente, e de forma misteriosa, dando a entender que a vingança de marido à traição foi a morte futura e prematura de Anita. 

“Tinha encontrado um tesouro proibido, mas de tal preço!... Se houve uma falta cometida, a responsabilidade só a mim pertence; se foi uma falta, unirem-se dois corações, despedaçando a alma de um inocente. Mas ela está morta e ele vingado.”

É impossível não entrever, mesmo na narrativa romantizada de Garibaldi, que Anita era realmente audaciosa, corajosa e obstinada, pois seguiu seu desejo mesmo indo contra os preceitos sociais e religiosos. Ainda que não fosse incomum mulheres acompanharem as tropas e soldados, uma mulher comprometida largar o lar para seguir com um amante era algo condenável, não importava a causa. Provavelmente, não faltaram julgamentos à sua conduta transgressora, mas ela seguiu em frente e partiu com Giuseppe, lutando ao lado dele em terra e mar, sendo inclusive capturada pelos imperiais na batalha de Curitibanos em janeiro de 1840. Felizmente Anita ignorava o que era medo, declarou o italiano, e pensando em como ela partiu tão jovem e destemida em direção a uma vida desconhecida a despeito do estabelecido socialmente, só podemos concordar.

Ana, agora Anita, deu à luz ao primeiro filho do casal, Menotti, no distrito de São Simão no dia 16 de setembro de 1840. Não muito tempo depois, ambos decidiram se afastar da luta republicana e partir para Montevideo, onde outro capítulo importante da vida de Anita e Giuseppe começou. 

"Seis anos desta vida de aventuras e perigos não me tinham fatigado enquanto era só, mas atualmente que tinha uma pequena família, a separação de todos os meus antigos conhecimentos, a ignorância completa em que me achava há tantos anos sobre o estado da minha família, fizeram nascer o desejo de me aproximar de um ponto onde pudesse receber notícias de meu pai e minha mãe, [...] Decidi então ir a Montevidéu; ao menos temporariamente. Pedi pois licença ao presidente, assim como para levar alguns bois, de que a venda devia servir para me sustentar durante a jornada.”

No Uruguai, os dois oficializaram a união no dia 26 de março de 1842, na Igreja de São Francisco de Assis. O casamento, claro, ainda é um ponto histórico controverso na biografia de Anita, visto que não há qualquer informação que prove a separação dela de Manuel ou a certificação da morte deste para abrir caminho para que ela pudesse encaminhar um segundo matrimõnio. O que sabemos é que Anita se declarou como solteira e as testemunhas presentes afirmaram que não havia impedimento para o enlace. Nas Memórias, Garibaldi nada declarou sobre a questão, provavelmente para não levantar qualquer dúvida sobre a legitimidade da sua união com a brasileira.

Anita deu à luz a mais três filhos durante a estadia deles no Uruguai. Rosa em 1843, Teresa em 1845 e Ricciotti em 1847. Garibaldi, sempre afoito por novas lutas, não demorou a se aliar a uma nova causa e logo passou a fazer parte da resistência contra o ditador Juan Manuel Rosa, enquanto ela, agora atrelada aos filhos, permaneceu em casa. Para uma mulher de espírito intrépido, ativa e dona de si como Garibaldi deixou entrever em suas palavras, é difícil imaginá-la aceitando sem resistência o papel arrebatado de mãe amorosa e mulher subserviente que esperava o esposo retornar à casa como as biografias posteriores fizeram questão de frisar. 

A vida em Montevideo certamente não foi muito mais fácil do que quando ela estava no Rio Grande do Sul, atravessando campos de guerra. Apesar da aparente segurança, Anita precisou lidar com a ausência constante do marido, as dificuldades financeiras e o baque da morte de Rosa, em 1845, provavelmente vítima de difteria. Seguindo a tradição das biografias heroicas, nos trechos das Memórias que compreendem o tempo no Uruguai, a vida particular não é mencionada e Anita é pouco citada, dando lugar apenas às descrições de batalhas, cercos, soldados, ataques e estratégias militares. As breves linhas que citam seu nome, curiosamente, descrevem anedotas sobre a falta de dinheiro, de velas e de camisas que acometiam Garibaldi e que, seguramente, eram motivo de ansiedade para uma mãe de três crianças. 

“Com que queres tu que eu alumie! respondeu Anita, não sabes que não há com que se compre uma vela.”

Em dezembro de 1847, Anita partiu em mais uma jornada, dessa vez em direção à Itália, acompanhada dos filhos. Lá ela se instalou em Nizza (atual Nice) com a sogra, Rosa Raimondi, enquanto Garibaldi abraçava as campanhas pela unificação da Itália e instauração de uma República. Neste momento, com o amparo de Rosa, Anita não permaneceu espectadora e, a exemplo do que tinha feito durante os combates Farroupilhas, acompanhou Garibaldi em mais de uma ocasião. Em 1849, grávida do quinto filho, ela foi ao encontro dele durante o cerco de Roma. Ali, “vestida de homem” nas palavras dele, Anita o apoiou e depois seguiu com os revolucionários quando Garibaldi e seus partidários partiram em retirada perseguidos por franceses e austríacos. Foi durante esta jornada que sua saúde se deteriorou e ela veio a falecer no dia 4 de agosto em Madriole, onde foi enterrada às pressas devido à fuga de Garibaldi e seus homens. Morreu jovem, presumivelmente não havia ainda completado 30 anos, depois de uma década de andanças e vida compartilhada com Giuseppe. Seus restos mortais permaneceram ali por cerca de 10 anos e depois passaram por diversos sepultamentos até suas cinzas serem finalmente depositadas em um monumento na Colina Gianicolo, em Roma, em 1932, onde permanecem até hoje.

“Onde conheci a grandeza da minha falta? – Na embocadura do Cambriu no dia em que esperando disputá-la à morte, lhe apertava convulsivamente o pulso para contar as suas últimas pulsações, absorvendo o seu alento fugitivo... Beijava os seus lábios moribundos, e apertava nos meus braços um cadáver, chorando lágrimas de desesperação.”

Logo depois, quando Garibaldi iniciou o rascunho de suas aventuras, a Anita heroína de dois mundos começou a tomar forma. Com o advento da República no Brasil, ela adentrou o panteão de heróis nacionais e os romances e biografias posteriores exultaram o caráter revolucionário de sua vida, elevando-a, junto com Garibaldi, ao status de símbolos da luta pela liberdade dos povos. Se ela foi apenas uma mulher comum colocada dentro de uma situação extraordinária ou uma amazona mitológica de espada em punho, não é possível categorizar e talvez pouco importe, afinal. Guerreira ou mãe, esposa ou libertária, mulher ou mito, são apenas alcunhas. A questão é que hoje Anita pode ser vista como uma metáfora representativa de força, livre arbítrio e vontade. O poder dela está na sua capacidade de inspirar mulheres do mundo todo a seguirem em frente a despeito das adversidades, das tristezas, das dificuldades e do imposto socialmente. Sua eternidade está na beleza de fazer-nos entender que, dentro de toda Ana Maria de Jesus, existe uma Anita capaz de absolutamente tudo, não importa o Tempo. 

Referências




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