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A consciência da morte explorada na arte: Machado de Assis, Tolstói e Raul Seixas


É difícil encontrar tema tão humano e desconfortável quanto o temor diante da iminência da morte, assombro que foi transformado em arte por dois célebres autores do século XIX. No ano de 1881, Machado de Assis publicava Memórias póstumas de Brás Cubas, livro narrado por um defunto autor (mas, segundo ele próprio, não um autor defunto) que, após morrer, decide escrever um livro - cheio de floreios e comentários sobre sua própria condição de cadáver - explorando sua trajetória de vida. Alguns anos depois, em 1886, Liev Tolstói, praticamente do outro lado do mundo, lançava sua obra A morte de Ivan Ilitch, a qual, iniciada pela narrativa do funeral do protagonista, também apresenta os momentos antes de sua morte, escancarando as crises existenciais associadas à consciência do fim da vida.

Quase um século depois, retomando a universalidade do tema em 1976, Raul Seixas trazia para o público sua música Canto para minha morte, em seu álbum Há 10 mil anos atrás. Durante a canção, intercalando entre momentos de musicalidade e monólogos carregados de tensão, o compositor conversa com a morte não apenas sobre o medo que sentia dela, mas principalmente de deixar sua vida pela metade e de não aproveitar seus últimos minutos.

E se morrermos sem concluirmos o que precisávamos? 


“A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar
Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?”

(Canto para minha morte, Raul Seixas)


A noção de que percebemos, no momento da morte, a falta de completude em nossas vidas - exposta na letra de Raul - foi encarnada também nos personagens de Tolstói e Machado: Ivan Ilitch e Brás Cubas. Indo além do copo de uísque deixado pela metade e ironizando o fracasso geral nas vidas de grande parte da elite brasileira, o protagonista de Machado é uma sátira daqueles que, por excesso de riqueza material, morrem com uma pobreza de experiências de vidas plenas e verdadeiras. No último capítulo da obra, Brás Cubas - membro da alta sociedade da época - relata não ter alcançado a celebridade de seu emplastro (que pensava ser sua maior invenção), não ter sido ministro, nem califa, não ter se casado e nunca ter comprado sua comida com seu próprio suor; diz que o único saldo positivo de sua vida foi não ter tido filhos, pois assim não transmitiu para nenhuma criatura o legado de sua miséria… Não seria isso basicamente a hiperbolização do medo de Raul Seixas de não conseguir concluir seus atos iniciados em vida antes de sua morte? O que os difere é que o cantor teme por si próprio, ansioso pela sua limitação em realizar tudo que deseja perante a aleatoriedade da morte, enquanto Machado escarra nos que, mesmo em posição de privilégio, limitam a si próprios com sua arrogância e ignorância, cavando suas próprias covas.

Como mencionado anteriormente, na obra de Tolstói essa noção também é ressaltada por meio de um protagonista que se torna, somente em seu leito de morte, consciente dos erros que cometeu, das escolhas que teria feito de outra forma e das ações que nunca pôde terminar. Contextualizando, Ivan Ilitch era um burocrata formado em direito, que, durante toda sua vida, bajulou aqueles em posições superiores no ministério e destratou aqueles em cargos inferiores em prol de crescimento em sua carreira. O personagem sempre se orgulhou de sua capacidade de escalar rapidamente o âmbito profissional, mas, quando adoeceu e percebeu a proximidade do fim de sua vida, tornou-se capaz de contemplar a mediocridade e mesquinhez que cercaram sua carreira e imagem pública. Notou o quanto aquilo que tanto valorizou em vida se provou inútil para o salvar de sua morte e frustrou-se terrivelmente com a realização de que não viveu sua vida da forma como queria e que, se pudesse, teria feito tudo diferente. Assim, a crítica presente na obra de Machado àqueles que morrem se sentindo fracassados mesmo após tantas artimanhas realizadas em vida para alcançar o sucesso reaparece em A Morte de Ivan Ilitch. Porém no clássico russo, o tom de sarcasmo de Memórias póstumas de Brás Cubas é substituído por uma perspectiva mais ética e existencialista.

Quando a morte chega antes do amor 


Além da decepção com suas atitudes profissionais, Ivan Ilitch ainda lida com o fato de que viveu por anos um casamento infeliz, cercado de brigas e ressentimentos. O narrador escancara que Ivan não se casara com sua esposa por amor, mas sim por pensar que seria o mais certo para o seu planejamento de vida, dessa forma, acaba preso em um relacionamento que só decai com a gravidez de sua mulher, o levando à busca pelo isolamento de sua família. Inúmeras são as discussões e as demonstrações de falta de afeto… O burocrata acaba por amar mais seu trabalho que a sua esposa, mas, na hora de sua morte, a carreira se torna desimportante e é então que a distância entre ele e sua companheira se torna uma dor latente e amarga.

A crítica ao matrimônio e à união utilitária também é apresentada em Memórias póstumas de Brás Cubas (afinal, o tema é muito recorrente em diversas obras de Machado). A primeira namorada do protagonista é Marcela, que amou Cubas “durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos” - nas palavras do próprio defunto -, evidenciando o condicional financeiro por trás do “amor” das personagens que impediu sua paixão de ser verdadeira e duradoura. As outras relações do infame protagonista também se mostraram superficiais e efêmeras, sempre baseadas na aparência física das mulheres e em suas posições financeiras. O relacionamento romântico mais longo de Brás Cubas foi com Virgília, menina que primeiro julgou pouco atraente fisicamente, mas de quem acabou sendo amante no futuro. Enfim, o homem acabou nunca sendo marido de ninguém e nunca visto como primeira opção de mulher alguma, adicionando tal decepção à sua lista de frustrações ao falecer.

Na música de Raul Seixas o temor de decepcionar-se no amor é refletido no trecho:

“[A morte] Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?”

O cantor demonstra estar no aguardo de seu grande amor, mas teme não encontrá-lo a tempo, podendo morrer sem ter amado alguém que o amasse de volta plenamente, assim como aconteceu com os protagonistas dos romances citados. Será que, como Raul canta, todos temos alguém a quem estamos destinados nos aguardando? E, se sim, será que todos encontraremos esse alguém antes de morrermos? Ou nossas decisões e azares nos afastarão dessa pessoa? O anseio do eu-lírico da música é aquele que vive em todos nós - a vontade de sermos incondicionalmente amados entrando em conflito com a noção de que talvez isso nunca aconteça: “E se eu acabar como Brás Cubas ou Ivan Ilitch?”.

Memento mori: a aleatoriedade da morte é uma sombra sobre nós 


Brás Cubas morreu de pneumonia aos 64 anos. Ivan Ilitch de uma doença não bem definida. E o eu-lírico da música de Raul Seixas fica se perguntando sobre o contexto e momento de sua morte constantemente. Mas o fato é que não podemos saber precisamente como e quando iremos morrer - é daí que surge aquela noção já tantas vezes repetida de que cada momento pode ser o nosso último. É o dito memento mori (do latim “lembre-se de que morrerás”) que está sempre no fundo de nossa consciência e espelhado nas artes, amplificando nossas angústias e anseio por aproveitar nosso tempo vivos, como exposto nestes versos de Raul:

“Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida
Existem tantas
Um acidente de carro
O coração que se recusa a bater no próximo minuto
A anestesia mal aplicada
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio”

No entanto, apesar de sermos conscientes da mortalidade e sabermos que estamos, cada um de nós, destinados a morrer, muitas vezes temos dificuldade para processar tal ideia. Vemos a morte como algo que acontece, mas não conseguimos de fato pensar que ela possa acontecer conosco. Tal qual sugere Tolstói:

“O exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de lógica de Kieseweter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal — encerrava um raciocínio que lhe parecia exato em se tratando de Caio, mas não da sua própria pessoa. Caio era um homem em geral e devia morrer. Ele, porém, não era Caio, não era um homem em geral [...]. Caio é de fato mortal e é justo que morra. Mas eu, Vânia, Ivan Ilitch, com todas as minhas idéias, com todos os meus sentimentos — isso é coisa inteiramente diversa. E é impossível que eu tenha que morrer. Seria por demais horrível.”

Ivan consegue compreender que a morte de Caio é inescapável, já que Caio é humano, mas não consegue aplicar a mesma lógica a si mesmo. No fim das contas, nós leitores somos como Ivan nesse momento, incapazes de ver a morte que chegou para tantos Caios como uma realidade futura para nós também.

Quando Raul canta sobre a possibilidade de morrer com um escorregão na rua sem tempo de apagar o cigarro, ou Tolstói escreve sobre um personagem que desenvolve uma doença subitamente (talvez por uma pequena queda na escada que passou despercebida) no auge de sua carreira, ou até quando Machado constrói um personagem que faleceu adoecendo antes de compartilhar sua “principal invenção”, somos lembrados de que não somos imunes à morte. Somos lembrados, assim como Ivan Ilitch, de que todos somos os Caios dos silogismos, de que nossas memórias não nos tornam únicos o suficiente para escaparmos do momento em que nossos corações darão as últimas batidas. É aí que essas obras desempenham seu papel, pois a arte serve para tirar da zona de conforto aqueles que a consomem, nos deixando com uma maldita pulga atrás da orelha - nesse caso, a pulga tão incomodativa da lembrança da efemeridade da própria vida. 

A epifania e liberdade da morte 


Também é notável que os artistas, apesar de suas críticas às imoralidades que muitos cometem em vida e só se arrependem perto da morte, e apesar da tensão e negatividade que carrega o tema que abordam, mostram-se capazes de contemplar o fim de nossas vidas com outros olhos… Nas últimas páginas de A Morte de Ivan Ilitch, quando o protagonista percebe que está prestes a morrer, ele consegue se libertar das amarras do temor da morte, tendo sua epifania final:

“Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.

Em lugar da morte, havia luz.

— Então é isto! – disse de repente em voz alta. — Que alegria!”

Já em Memórias póstumas de Brás Cubas, no capítulo VII, o protagonista relata o que chama de Delírio, narrando uma espécie de alucinação que vivenciou logo antes do momento de sua morte. Em seu delírio, outra palavra para a epifania também vivenciada por Ivan, Cubas toma a forma de um barbeiro chinês, é carregado por um hipopótamo, conversa com uma entidade que representa tanto a vida quanto a morte, ri, assiste a séculos de história e, por fim, vê seu gato brincando com um novelo de lã. É um capítulo de puro fluxo de consciência, que relata, poeticamente, a transição do plano da vida para a morte da personagem. Mas assim como no livro de Tolstói, apesar de sua resistência e temor inicial, o protagonista acaba por encontrar uma espécie de realização e paz no momento de sua morte, sendo capaz de rir junto da entidade que encerrava a sua vida.

Em sua genialidade, Raul Seixas também rompe com o ódio e medo da morte, reconhecendo nela o sentido de vivermos. Pensando que é, na verdade, justamente a consciência de sua existência que - apesar de assombrosa - nos faz apreciar os momentos, Raul Seixas termina Canto Para Minha Morte dizendo:

“Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida”

A morte alimenta um ciclo eterno de vida 


"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas."

(Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis)

Eis acima uma das mais icônicas e instigantes dedicatórias da literatura, um autor consagrando os seres vivos que utilizarão sua carne morta - antes pulsante em vida - para que eles próprios sobrevivam. Seria isso a verdadeira eternidade? Porque, com certeza, a eternidade não está em ser imortal: o medo excessivo da mortalidade é o que leva à hipocondria, a qual o próprio Brás Cubas propõe-se a combater com seu emplastro. Mas talvez a eternidade esteja em saber que a nossa vida segue na vida de outros seres, nos vermes que roerão nosso cadáver, nas flores que crescerão da terra com nossas cinzas, nas pessoas que repetirão para um conhecido algo que nos escutaram falar. Assim, em sua dedicatória, Machado não só contempla a noção geral de ciclo da vida, harmonia e cadeia alimentar, mas também expõe o quanto, mesmo depois de tudo o que vivemos, acabamos por ser alimentos para vermes. Isso, no entanto, pode ir além de ferir a prepotência dos leitores, servindo também para acalmar nossas ansiedades. No fim, nossa marca vai muito além do que fizemos ou deixamos de fazer em vida. A mesma consciência é abordada por Raul Seixas em sua música quando ele canta:

“Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite”

O eu-lírico é consciente de que alimentará, indiretamente, um outro alguém como ele com seus restos mortais, de que é inevitável que marque seus filhos por todas suas vidas e, ainda, de que as palavras por ele proferidas pesarão na consciência de alguém. E não é bela a noção de que nossos copos de uísque deixados pela metade - tanto os literais quanto os figurativos - seguirão vivos mesmo que nós não sigamos também? 




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