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A Mandrágora, de Maquiavel, e o futuro da elite paulistana


Nicolau Maquiavel é considerado, até hoje, um homem de má índole. Não é à toa que usamos o termo “maquiavélico” quando queremos nos referir a algo maligno, malvado. No entanto, seu grande mérito (se é que podemos chamar assim) não foi ser cruel, mas sim agarrar-se à razão num momento em que as discussões eram especialmente acaloradas. No contexto do Renascimento, marcado pela oposição entre o teocentrismo, herdado da Idade Média, e o antropocentrismo, que começava a se fortalecer, o autor italiano surpreendeu por criticar tanto a moral cristã quanto a conduta humana, em vez de fazer como os demais – isto é, em vez de contentar-se apenas em escolher um dos lados desse conflito histórico. Como afirma Newton Bignotto, o autor “[...] escapa do universo medieval com sua insistência na queda, mas também se afasta do elogio constante dos homens, que foi importante para a antropologia renascentista”. O pensador, então, envereda por uma terceira via, refutando a visão maniqueísta de muitos intelectuais de sua época e preferindo dar espaço a um ponto de vista mais frio e calculista – o que talvez explique sua má fama, que atravessou séculos.

Nessa discussão, o pensador italiano se vale da ambivalência do conceito de virtude: desapegado da virtus religiosa, da moral e dos bons costumes, Maquiavel propõe uma virtù relacionada à “ação política bem-sucedida” – ao saber fazer, ou ainda, saber governar do Príncipe. Sob essa nova perspectiva, dizer que um homem é virtuoso não significa que ele seja bom, mas sim que ele sabe planejar suas ações para chegar a seus objetivos, como um estrategista ou um bom governante.  

Esse ponto de vista não só é muito presente no maior clássico do autor, O Príncipe, como também aparece em sua dramaturgia, na famosa peça A Mandrágora. Na obra dramática, o jogo entre a virtude cristã e a virtude maquiavélica (a tal da virtù) é justamente usado como meio de satirizar a sociedade florentina da época. Curioso é perceber que, séculos mais tarde, no Brasil, Paulo Emílio Sales Gomes cria um livrinho – Três mulheres de três PPPês – com uma história que em muito se assemelha à A Mandrágora, de Maquiavel.  

As duas virtudes em A Mandrágora

A peça A Mandrágora, escrita por volta de 1518 , é uma comédia em cinco atos. Nela, acompanhamos a tentativa do jovem Calímaco de seduzir Lucrécia - uma mulher belíssima, mas casada e muito fiel ao marido. O jovem conta com a ajuda de Ligúrio, que é quem planeja tudo. Sabendo que Lucrécia e seu marido, Messer Nícia, não conseguem ter filhos, os dois amigos empenham-se em convencer o casal de que Nícia é infértil, oferecendo-lhe uma solução: se Lucrécia tomar uma poção feita de mandrágora, uma planta, a concepção é garantida; contudo, o primeiro homem com quem ela tiver relações sexuais logo após a ingestão do líquido morrerá. Convêm-lhes, então, encontrar pelas ruas da cidade algum indigente que se preste a essa difícil tarefa – mas o homem escolhido é, não por acaso, Calímaco, que está disfarçado e consegue, graças à astúcia de Ligúrio, passar a noite com Lucrécia. 

O embate entre as duas noções de virtude, na peça, é simbolizado principalmente por dois dos personagens. Lucrécia, religiosa e fiel ao marido, representa a virtude cristã. Mesmo que o marido pareça disposto a deixá-la dormir com outro homem, ela ainda suspeita do plano e recorre a seu confessor, Frei Timóteo, em busca de algum conselho, pois teme concordar com uma ação pecaminosa. O problema é que o padre já foi cooptado por Calímaco e Ligúrio e, em troca de dinheiro, concordou em aconselhar a bela jovem a aceitar o acordo. Na figura do padre, temos a primeira pista da negação da moral cristã que se consolidará ao final da obra. 

Ligúrio representa, por sua vez, o outro lado do conflito: sem medir esforços para alcançar o propósito de ajudar o amigo a passar a noite com Lucrécia, ele tem a virtude do Príncipe, visto que sabe planejar suas ações de modo a atingir seus objetivos. Por mais que Calímaco e Frei Timóteo também deixem de lado a moral para conquistar suas ambições, é Ligúrio o motor da ação, é dele que partem os planos que enfim permitirão o sucesso da empreitada. Já Messer Nícia é um Príncipe às avessas: por mais que acredite ser inteligente e estar no comando da situação, é na verdade logrado por sua ingenuidade, tornando-se refém das vontades dos demais.

Maquiavel

É, portanto, essa nova concepção de virtude – voltada à capacidade de ação, e não aos valores e à moral – que se faz vencedora na trama quando, ao final, Lucrécia rende-se a Calímaco, desejando tê-lo para sempre, em lugar do marido a quem antes era tão obediente:

“Já que a tua astúcia, a tolice de meu marido, a ingenuidade de minha mãe e a maldade do meu confessor me levaram a fazer aquilo que, sozinha, nunca faria, quero julgar que tudo provenha da disposição do céu [...] Portanto, eu te tomo por senhor, patrono e guia; é meu pai, meu defensor e quero que sejas todo o meu bem. E aquilo que meu marido quis por uma noite, entendo que o tenha sempre.”

Dessa forma, e principalmente a partir da trajetória de Lucrécia, Maquiavel denuncia a decadência da moral cristã. Sua crítica, contudo, não se limita à Igreja, como observou Bignotto: “A amoralidade dos personagens, seu caráter corrupto, ou tolo, lança um olhar renovado sobre a sociedade italiana da época, escancara a hipocrisia e o cinismo dos clérigos, das elites econômicas e dos criados”. Em sua perspectiva, o homem, de caráter apenas medíocre, é incapaz de adequar-se plenamente às demandas divinas e tende, portanto, à corrupção moral. Talvez por isso os personagens manipulem tão prontamente a religião para que ela se adeque às suas próprias vontades, o que ocorre na fala de Lucrécia acima, bem como no momento em que Frei Timóteo forja justificativas divinas para que a jovem se deite com Calímaco. 

Bignotto conclui suas reflexões acerca da comédia afirmando que sua atualidade está no fato de que, mesmo com o passar do tempo, “continuamos a reconhecer nos astutos personagens da Mandrágora e em suas múltiplas tramoias, uma parte de nossas próprias sociedades e da eterna comédia da vida privada”. E assim é: séculos mais tarde, Paulo Emílio Sales Gomes criaria uma narrativa similar para satirizar a elite paulistana, enfatizando o caráter “eterno” das contradições sociais retratadas por Maquiavel.

Duas vezes com Helena

Publicado em 1977, pouco antes da morte do autor Paulo Emílio Sales Gomes, o livro Três mulheres de três PPPês foi recepcionado com sucesso pela crítica e recebeu, inclusive, o Prêmio Jabuti de Literatura Adulta no mesmo ano. A obra reúne três novelas, ou contos longos, como diz Antonio Candido em A nova narrativa, que têm em comum o fato de serem narradas por Polydoro, membro da elite paulistana que detesta o próprio nome. Autores como José Pasta e Danielle Corpas chamam a atenção para a relação entre a obra e os textos de Machado de Assis, muito admirado por Paulo Emílio. No entanto, pouco se comenta a relação entre a novela que inaugura o livro, Duas vezes com Helena, e o enredo da comédia maquiavélica A Mandrágora

O narrador começa por apresentar-nos o momento de seu reencontro com Helena, chamando atenção para o tempo que se passou desde que se conheceram e aproveitando para identificar-se como membro da elite paulistana: 

"Se pensarmos contudo numa mulher e num homem depois dos cinquenta, os dois artríticos, morando em São Paulo e com alguns recursos, é certo que um dia ou outro estariam ao mesmo tempo em Águas, vilarejo onde os reumáticos da burguesia e da classe média reservam seus lugares em dois ou três hotéis principais."

Os comentários sobre a mulher são logo deixados de lado para que Polydoro, o narrador, passe a apresentar sua relação com o Professor Alberto, marido de Helena. O protagonista o descreve como um amigo próximo, ou melhor, como um tutor, vinte anos mais velho, que orientava suas leituras e cuidava de sua formação “em todos os terrenos”.  Polydoro afirma que o Professor gostava muito de si e que o considerava dotado; todavia, percebe-se desde o início da narrativa que o jovem era influenciado pelo tutor, responsável até mesmo por aprovar suas namoradas. 

O nó narrativo tem início quando Polydoro volta de uma estadia de dois anos na Europa e o Professor convida-o a passar alguns dias na sua casa, em Campos do Jordão. Quando o narrador chega, é recebido por Helena, a jovem esposa de Alberto. Segundo lhe informa, o marido partira a chamado da família e voltaria dali a alguns dias. Mesmo que, num primeiro momento, a ausência do amigo e a presença de uma mulher até então desconhecida façam com que Polydoro se sinta um pouco desconfortável, esse sentimento logo é substituído pela atração que sente pela bela jovem. Durante o jantar, naquela noite, Helena mostra-se muito atraente ao narrador, que em determinado momento percebe “que estava em plena ereção”. A cena é carregada de tensão e erotismo, e tem seu desfecho quando Helena conduz Polydoro a um quarto escuro, a que o narrador se refere como o “local dos nossos amores”. Nesse local, ele passa com a jovem a maior parte do tempo em que permanece em Campos do Jordão. Fora do quarto, quase não a vê. Mesmo assim, decide que é preciso conversar com a mulher para que, juntos e em defesa de sua “paixão fulminante”, eles enfrentem o Professor Alberto. No entanto, Helena o dispensa: 

"Sua voz nunca fora tão tranquilamente meiga como na resposta que me deu. A decisão estava tomada. Eu partiria naquela manhã pois o Professor chegava tarde. Não me amava. Aquilo fora um capricho que desejara viver: estava vivido. [...] Mas eu estava proibido de procurá-la, a ela e ao Professor."

Polydoro segue à risca as ordens de Helena, assim como antes costumava seguir as ordens do Professor, e vai embora. Só reencontra a mulher e seu marido trinta anos depois, em Águas de São Pedro, quando seu passado é ressignificado: Helena lhe revela que o caso que tiveram em Campos de Jordão fora meticulosamente planejado. Alberto desejava desesperadamente ter um filho, mas, após muitas tentativas falhas, descobriu ser estéril. Diante disso, faz um plano e compartilha-o com Helena. A mulher não concorda de imediato e procura seu confessor em busca de uma segunda opinião. Entretanto, mesmo que o padre afirme que aquelas ideias eram verdadeiramente diabólicas, ela acaba sendo convencida pelo marido, com argumentos de ordem tanto lógica quanto metafísica, de que o melhor a fazer é ceder ao plano. Depois disso, com o retorno de Polydoro ao Brasil, Alberto usou seu conhecimento sobre o amigo para treinar a esposa, numa tentativa de torná-la irresistível ao narrador; buscou garantir que o jovem estivesse em plena saúde e calculou a visita de Polydoro a Campos de Jordão para que coincidisse com o período fértil de sua esposa.

Paulo Emílio de Salles Gomes

São muitos, então, os pontos comuns com o enredo de A Mandrágora: uma jovem bela e religiosa casada com um homem mais velho; a incapacidade de conceber; a necessidade de adicionar um terceiro indivíduo à relação conjugal numa tentativa de gerar um filho; até mesmo o fato de a mulher recorrer ao confessor num momento de dificuldade. Paulo Emílio não menciona a noção de virtude em sua obra, mas, à luz das ideias de Maquiavel, podemos pensar que, também na representação da sociedade paulistana de meados do século XX, proposta por Duas vezes com Helena, já não há uma virtus cristã. O padre, aqui, não é cooptado por ninguém, mas Helena, tão religiosa que tem em seu quarto inúmeras imagens de santos, não apenas cede aos argumentos do marido como empenha-se em ludibriar Polydoro, dedicando-se previamente à leitura e à memorização de falas e, durante a estadia do jovem em Campos de Jordão, buscando provocar-lhe o gozo “o mais rapidamente possível, quantas vezes pudesse”.  Seu papel no engodo é muito mais ativo do que era o papel de Lucrécia em A Mandrágora – naquele caso, bastaria que se deitasse com Calímaco uma vez, o que já fora difícil de aceitar para a moça. 

Mesmo após constatar a inviabilidade de uma virtude cristã na primeira novela de Três mulheres de três PPPês, é preciso ainda refletir sobre a virtude maquiavélica. Se em A Mandrágora Ligúrio planeja tudo para que o amigo Calímaco passe a noite com Lucrécia, enganando o marido da jovem, em Duas vezes com Helena, é o marido Alberto que trama para que a esposa consiga um amante fértil. Nesse sentido, Polydoro nada mais é que um tolo, principalmente pelo fato de ele mesmo narrar alguns episódios que já poderiam indicar que algo estava errado sem, contudo, suspeitar de nada.  É o professor Alberto, então, aquele que mais se assemelha à figura de Ligúrio, planejando meticulosamente suas ações para conquistar seus objetivos. Polydoro, por sua vez, mais se assemelha a Messer Nícia, que acredita ser bem-sucedido em suas ações, mas é, na verdade, logrado.

Percebe-se, então, que Paulo Emílio, em Duas vezes com Helena, retoma vários dos elementos de A Mandrágora, usando-os como forma de criticar a elite paulistana de sua época. Essa crítica se intensifica quando observamos que, na história, é Polydoro, e não Alberto, o representante da juventude paulistana – uma juventude que, conforme a retrata Paulo Emílio, é absolutamente manipulável; isenta tanto da virtus cristã quanto da virtù maquiavélica, politicamente inexpressiva. Essa ideia se confirma quando, ao final da narrativa, ele parece ter aderido à lógica numerológica usada por Alberto em seu plano, referindo-se novamente ao Professor como a um mestre:

"Assino meu nome todo completando o P que habitualmente anteponho ao sobrenome. Me chamo com efeito Polydoro, combinação favorável de cinco consoantes e três vogais mas cuja relação a nova ortografia altera, nome de palhaço dado em homenagem a um bisavô ilustre e que marcou a ferro minhas aspirações à harmonia e à elegância num mundo cruel e arbitrário, cuja lógica secreta até hoje ignorei apesar da rara oportunidade que me foi concedida: conhecer o Grande Mestre."

Um futuro nada promissor

À luz da leitura de A Mandrágora e de Duas vezes com Helena, percebe-se que o jogo proposto por Maquiavel entre as duas noções de virtude possibilita, de formas diversas, a crítica social. A comédia maquiavélica inova ao representar a decadência da virtus religiosa e a prevalência de uma virtù política pouco apegada à moral. Num momento histórico em que normalmente se optava por exaltar a Igreja ou elogiar o homem, ele propõe uma sátira de ambos, mostrando a hipocrisia da sociedade. No entanto, o fato de o personagem ludibriado na peça, Messer Nícia, ser mais velho que Ligúrio, motor da trapaça, causa uma impressão diversa daquela que se tem ao terminar a leitura de Duas vezes com Helena. No segundo caso, não é a velhice que é enganada pela juventude; pelo contrário, o jovem membro da elite paulistana, tão seguro de si, é constantemente manipulado. Se Ligúrio pode valer-se de uma nova concepção de virtude, voltada à ação, para Polydoro nem a virtus nem a virtù são viáveis. Assim, ao propor uma aproximação com a obra de Maquiavel e, consequentemente, com a noção de virtude, Paulo Emílio não só critica a elite paulistana de sua época, mas, principalmente, retrata uma juventude passiva e politicamente inexpressiva, a quem cabe, apenas, continuar sendo manipulada. 

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