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Bruxaria e misoginia em O bebê de Rosemary

Quando pensamos em perseguição às mulheres, um dos eventos históricos que mais se destaca é a caça às bruxas. Esse movimento social – um dos marcos da transição entre feudalismo e capitalismo – eclodiu no século XV e matou centenas de milhares de pessoas. Foi também responsável por associar a figura da mulher ao ocultismo e ao satanismo, imagem que é até hoje reproduzida em obras como os filmes como Convenção das bruxas (1990), Abracadabra (1993) e Jovens bruxas (1996), dentre uma série de outras produções audiovisuais bastante conhecidas. De modo geral, a bruxa má de nossa imaginação é sempre uma mulher.

O episódio histórico, atualmente tratado como um surto coletivo duradouro, mas passageiro, não foi fruto do acaso. Na verdade, como mostra Silvia Federici em Calibã e a bruxa, foi resultado da ação conjunta de Igreja e Estado: de um lado, a Contrarreforma endureceu os dogmas e instaurou a Inquisição, que poderia punir qualquer conduta tida como "fora do normal"; de outro, as leis não davam suficientes direitos para que as mulheres fossem independentes, pelo contrário, mantinham-nas como eternas crianças, sempre tuteladas por família ou marido, sem condição de pensar autonomamente e de tomar as próprias decisões. Ameaçar uma mulher com o título "bruxa" ou "adoradora do diabo", e, por conseguinte, com a morte, era uma forma de controlar não apenas seu comportamento, mas também seu poder reprodutivo: 

"[...] a principal iniciativa do Estado com o fim de restaurar a proporção populacional desejada foi lançar uma verdadeira guerra contra as mulheres, claramente orientada a quebrar o controle que elas haviam exercido sobre seus corpos e sua reprodução. [...] essa guerra foi travada principalmente por meio da caça às bruxas, que literalmente demonizava qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não procriativa, ao mesmo tempo que acusava as mulheres de sacrificar crianças para o demônio."

(Silvia Federici)

Apesar de a bruxaria figurar no imaginário coletivo e em boa parte das produções culturais como uma força intrinsecamente feminina, há algumas obras conhecidas em que os feiticeiros são homens. Décadas antes da criação de Harry Potter, Ira Levin já tinha escrito O bebê de Rosemary (1967), romance que foi adaptado para o cinema pouco depois (1968). Na história, a relação entre mulher, bruxaria e satanismo é aparentemente esfacelada, uma vez que as figuras mais ativas na busca por poder a partir do misticismo e do culto ao diabo são masculinas.

Os vizinhos do 7A

Rosemary é uma jovem mulher, recém-casada com Guy Woodhouse, um ator de pouco (ou nenhum) sucesso. Os dois vivem em Nova York e se mudam para um apartamento no Bramford, prédio bem-localizado, mas conhecido por ter sido palco de diversas tragédias: supostamente, já viveram ali as irmãs Trench, comedoras de crianças, e Adrian Marcato, homem acusado de satanismo que desapareceu misteriosamente. Ignorando a má-fama do edifício, Guy e Rosemary mudam-se para lá. Afinal, são os anos 1960, e a crença no sobrenatural está em baixa, principalmente na cidade grande – Rosemary, por exemplo, deixou de lado o catolicismo de sua família após respirar o ar nova-iorquino, adotando uma postura mais cética.

Guy e Rosemary acabam se aproximando dos vizinhos do apartamento 7A, um casal idoso aparentemente inofensivo: Roman Castevet, 79 anos, não faz mais do que preparar drinques e contar histórias de suas viagens, com o ar saudoso de quem sabe que não viverá mais muito tempo. Minnie, sua esposa, é uma senhora intrometida sem dotes culinários, que faz perguntas incômodas e visitas inconvenientes. Embora Rosemary demonstre não ter nenhuma intenção de se aproximar do casal e interaja apenas por educação, em nome das boas maneiras, Guy acaba por se afeiçoar aos vizinhos. Depois de um jantar após o qual passa mais de uma hora conversando com Roman – não se sabe, a princípio, sobre o quê –, ele passa a frequentar com regularidade o apartamento 7A, mas tranquiliza Rosemary ao dizer que ela não precisa acompanhá-lo. Assim, a esposa fica sozinha em casa bastante tempo, sem saber ao certo o que acontece na casa dos vizinhos quando o marido está lá.

Há indícios de que algo errado pode estar acontecendo. O primeiro deles, certamente, é o canto estranho, em idioma desconhecido, que Rosemary pode ouvir vindo do 7A através das paredes de seu quarto. Em outro momento, ela houve conversas como "All she has to be is young, healthy and not a virgin [...]. Didn’t I say that in the beginning? Anybody. As long as she’s young and healthy and not a virgin" (em tradução livre: "Ela só precisa ser jovem, saudável e não ser virgem [...]. Eu não falei isso no começo? Qualquer uma. Desde que seja jovem e saudável e não virgem"). Além disso, pouco depois de Guy começar a frequentar a casa dos vizinhos, seu rival fica repentinamente cego. A partir desse evento misterioso, Guy substitui o homem em um papel importante e sua carreira como ator é alavancada. 

O monstro feminino e o inescapável patriarcado 

O que se segue a partir de então é uma gravidez monstruosa. Rosemary engravida depois de uma noite estranha durante a qual sonha fazer sexo com uma criatura de olhos amarelos e passa meses sentindo dores terríveis. O controle sobre seu próprio parece cada vez mais distante, e a jovem se vê sem autonomia para tomar as próprias decisões, porque Minnie e Roman tornam-se cada vez mais presentes em sua vida. Convencem-na a trocar seu médico pelo renomado dr. Abe Saperstein, amigo deles; fazem-na substituir as convencionais vitaminas para gestantes por uma bebida que Minnie faz com ingredientes que não revela (mas tudo conforme as recomendações do dr. Saperstein, como afirmam repetidamente); observam-na de perto para evitar que converse com familiares e conhecidos. Quando um amigo próximo começa a acreditar que algo está errado e combina um encontro para conversar com a gestante sobre suas suspeitas, ele misteriosamente acorda doente e é internado em um coma do qual nunca acorda. Tudo acontece de modo repentino, assim como a cegueira súbita do rival de Guy, ponto de virada crucial para seu crescente sucesso. Rosemary é isolada e tratada como uma criança, sem capacidade de tomar as próprias decisões – exatamente como ocorria por vias legais com as mulheres durante a Contrarreforma, quando eram consideradas eternamente "menores", dependentes de homens que agissem como seus responsáveis.

O bebê de Rosemary (1968)

Mitch, o amigo de Rosemary, morre, mas antes deixa para ela um livro. É a partir dele que a mulher descobre que Roman Castevet é, na verdade, Steven Marcato, filho de Adrian Marcato, o bruxo adorador de Satã que morou no Bramford décadas antes e que sumiu sem deixar rastro. A jovem cria, então, sua teoria: Minnie e Roman são parte de uma seita satânica e Guy se juntou a eles, buscando fama e dinheiro. Em troca, prometeu-lhes um bebê para usarem em seus rituais. O marido nega todas as acusações, mas ela, na tentativa de proteger seu filho, foge. Percebendo que o dr. Saperstein também é parte da seita, ela vai em encontro ao médico com o qual se consultara antes, dr. Hill, e conta para ele toda a sua história a fim de convencê-lo a interná-la logo num hospital para que a criança nasça em segurança, longe dos vizinhos e do marido que a ameaçam. Mas o médico acha que Rosemary está louca: chama Saperstein e Guy para levarem-na de volta para casa, afirmando que ela só precisa descansar.

Ao longo de toda a narrativa, as pessoas com quem Rosemary interage demonstram tanta normalidade que é fácil se convencer de que, na realidade, o culto satânico é uma invenção sua. Como Minnie, uma dona de casa idosa com péssimo gosto para roupas e maquiagem, poderia adorar o diabo? Como Guy, o homem por quem se apaixonou, poderia ser tão facilmente convencido a vender seu filho em troca de sucesso? Cria-se daí uma ambiguidade que beira, contudo, ao gaslighting, uma vez que os eventos estranhos são excessivos para serem considerados meras coincidências, embora todos tentem convencer Rosemary do contrário. 

Chuck Palahniuk enfatiza, em sua introdução à obra, a novidade que Ira Levin traz ao terror com O bebê de Rosemary: segundo ele, antes, aquilo que causava medo estava sempre distante. O espaço doméstico oferecia segurança aos personagens, e sair dele era arriscar-se. Na obra de Levin, contudo, a casa torna-se espaço de aprisionamento para Rosemary. No apartamento que ela tanto se dedicou a reformar e decorar, ela é uma vítima cujo corpo é o próprio inimigo: por causa de sua capacidade de engravidar, a mulher é usada como hospedeira de um nenê demoníaco. A impressão da protagonista é que ela estaria mais segura em qualquer lugar que não a própria casa; no entanto, ao tentar fugir, ela entra em trabalho de parto e é drogada pelo dr. Saperstein. 

Dá à luz, mas não vê o bebê, é mantida sob os cuidados (ou sob a vigilância) de amigos dos Castevet e induzida a tomar medicamentos cujas propriedades desconhece, mas que parecem mantê-la fraca e confusa. Guy lhe diz que o filho nasceu morto, mas ela ouve o choro de criança vindo do apartamento 7A. Chega à conclusão de que os Castevet roubaram seu filho e consegue ir escondida ao apartamento deles, onde se depara com uma reunião em torno de um berço preto.

Ao se aproximar do berço, descobre a verdade: carregou no ventre, por nove meses, uma criatura monstruosa, com olhos amarelos, chifres começando a surgir na cabeça, mãos e pés inumanos. É o filho de Satã. Apesar de seu horror, Rosemary acaba embalando a criança na cena final e sorri em meio às lágrimas recém-derramadas. O desfecho da narrativa parece sugerir a conformidade de Rosemary com sua "natureza feminina", remetendo ao discurso da maternidade compulsória – contra os valores cristãos que embasam sua conduta, mesmo que ela afirme ser agnóstica, e contra a lógica, a mulher aceita atuar como mãe do Anticristo. 

O mesmo horror de sempre

Se, por um lado, Palahniuk observa a novidade de Ira Levin ao situar o horror no espaço doméstico, por outro, é possível observar que as condutas da seita satânica em relação ao corpo de Rosemary nada têm de novo. Conforme Federici, Estado e Igreja vêm privando há séculos as mulheres do controle sobre seus corpos e sobre a concepção, obrigando-as à reprodução ao tornar menos acessíveis os métodos contraceptivos, criminalizar o aborto e tornar "pecado" o sexo sem fins reprodutivos. Cria-se, nesse contexto, um cenário no qual o corpo da mulher é um bem social, usado por motivos políticos e religiosos que escapam às suas vontades e à sua subjetividade:

“[...] todas as mulheres (exceto as que haviam sido privatizadas pelos homens burgueses) tornaram-se bens comuns, pois uma vez que as atividades das mulheres foram definidas como não trabalho, o trabalho das mulheres começou a se parecer com um recurso natural, disponível para todos, assim como o ar que respiramos e a água que bebemos.”

Como o trabalho reprodutivo é visto como "natural" e a maternidade é tantas vezes descrita como o único destino digno para uma mulher ou como um dever do casal, não surpreende que Guy ache razoável vender o corpo da esposa por nove meses em troca de dinheiro e sucesso. Se o corpo da mulher é um bem coletivo, "disponível para todos", como diz Silvia Federici, também não surpreende que um grupo de idosos satanistas o use sem pedir permissão. O maior terror na narrativa de Ira Levin é justamente o fato de que toda essa trama absurda aconteça sem que os personagens envolvidos, com exceção da própria Rosemary, demonstrem choque ou surpresa. Parece ser tudo perfeitamente aceitável.

Considerando, por fim, a relação com a bruxaria, percebe-se que a mulher, em O bebê de Rosemary, torna-se uma vítima, e não uma protagonista do ocultismo. O líder da seita é Steven Marcato e o responsável por fazer com que a jovem seja usada como barriga de aluguel do diabo é Guy. Em ambos os casos, a magia não é instrumento de libertação feminina, mas sim de busca masculina pelo poder. 

Silvia Federici analisa que enquanto na Igreja, no período da Contrarreforma, as mulheres não eram valorizadas, "entre os heréticos eram consideradas como iguais; as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens e desfrutavam de uma vida social e de uma mobilidade [...] que durante a Idade Média não se encontravam em nenhum outro lugar”. Por isso, as mulheres estavam mais presentes em movimentos heréticos do que na religião em si. 

O bebê de Rosemary sugere, contudo, a falência dessa via alternativa para mulheres: conforme o patriarcado avança, nem mesmo os movimentos da contracultura ficam ilesos, e a misoginia passa a ser justamente o ponto comum entre catolicismo e satanismo na obra. 

Referências

  • A caça às bruxas e o feminismo (Stela Cambraia)
  • Awakening to Satanic Conspiracy: Rosemary’s Baby and the Cult Next Door (David Frankfurter)
  • Bruxaria e feminismo - Uma análise da independência da mulher através dos seriados da TV (Bruno César Ferreira Vieira)
  • Calibã e a bruxa (Silvia Federici)
  • O Fascínio do Desvio - Horror Moderno e Suas Mulheres Monstruosas (Mariana Ramos Vieira de Sousa)
  • Rosemary's Baby (Ira Levin)
  • Rosemary’s Baby and the Cult of Domesticity (Brooke Coughenour)


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