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Amor à italiana: uma análise do amor no nascimento da literatura itálica

A história do amor e da literatura estão intimamente ligadas. Desde a Antiguidade, pensadores e escritores exploram as nuances do sentimento amoroso e buscam definir – em vão – o que é “amor”. Em seu livro A dupla chama, Octavio Paz analisa a variação do conceito de amor no Ocidente ao longo do tempo, desde a Grécia antiga, a partir de uma coerente distinção: 

“[...] sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômenos. O mais antigo dos três, o mais amplo e básico, é o sexo. É a fonte primordial. O erotismo e o amor são formas derivadas do instinto sexual: cristalizações, sublimações, perversões e condensações que transformam a sexualidade e a tornam, muitas vezes, incognoscível. Como no caso dos círculos concêntricos, o sexo é o centro e o pivô dessa geometria passional.”

A filosofia amorosa nasce com Platão. Em O banquete, Sócrates narra a conversa que teve com Diotima da Mantineia, uma sábia sacerdotisa. Segundo ela, o amor nasceria à vista da pessoa bela, consistiria na atração pela beleza humana. Esse amor pela beleza de um único ser, no entanto, seria apenas um degrau da escala: 

Diotima volta a perguntar: “Se a beleza está em muitas formas e pessoas, por que não amá-la nela mesma? E por que não ir além das formas e amar aquilo que as faz belas: a ideia?”. Diotima vê o amor como uma escala: embaixo, o amor a um corpo belo; em seguida, a beleza de muitos corpos; depois, a própria beleza; mais tarde, a alma virtuosa; por fim, a beleza incorpórea. 

Diotima parece falar sobre uma concepção de amor muito diferente da nossa. Na visão platônica, o objeto do amor não passa disso – é um objeto, apenas um utensílio que auxilia o sujeito em sua solitária trajetória de contemplação da beleza. Tendo em vista a distinção proposta por Paz entre sexo, erotismo e amor, é possível afirmar que a filosofia amorosa que nasce com Platão é, na verdade, uma forma sublimada de filosofia erótica. Assim, Paz considera que as origens daquilo que entendemos ainda hoje por amor surgem em Alexandria e em Roma. Nesse primeiro momento, começam a aparecer três elementos centrais para o amor moderno: o direito à escolha, ou seja, a liberdade dos amantes; o amor como uma transgressão à ordem estabelecida; e o ciúme. Essas características só podem se manifestar quando se ama o indivíduo como um todo, não apenas seu corpo, como na visão platônica.

Além desses conceitos, há um terceiro momento crucial para a construção da imagem ocidental do amor. Na Itália, os primeiros poemas em língua vulgar coincidem com o advento do amor cortês, na França do século XII:

“O termo ‘amor cortês’ reflete a diferença medieval entre corte e villa. Não o amor villano – copulação e procriação -, mas sim um sentimento elevado, próprio das cortes senhoriais. Os poetas não o denominaram ‘amor cortês’; usaram outra expressão: fin’ amors, quer dizer, amor purificado, refinado. Um amor que não tinha por fim nem o mero prazer carnal nem a reprodução [...] Em menos de dois séculos esses poetas criaram um código de amor, ainda hoje vigente em muitos de seus aspectos, e nos legaram as formas básicas da lírica do Ocidente.”

(Octavio Paz)

Os poetas italianos da época são bastante influenciados pela poesia provençal. Os sonetos de Jacopo da Lentini (1210-1260), por exemplo, trazem muitos elementos típicos do amor cortês:

"Muitos amantes trazem a doença
no coração, sem aparentar
mas eu não posso esconder a minha
para que não apareça o meu pesar;
Como estou sob alheia senhoria,
de mim nada posso realizar,
senão aquilo que minha dona queria,
que ela me pode morte e vida dar."

(Trecho do Soneto IV, de Jacopo da Lentini, em tradução livre)

A não-identificação da amada, a submissão do eu-lírico a ela numa espécie de vassalagem amorosa ("que ela me pode morte e vida dar") e a distância entre eles são pontos bastante característicos da poesia provençal. O eu-lírico das cantigas de amor é, geralmente, um sofredor – canta o amor sabendo da impossibilidade de ter a amada, seja por sua condição social superior ou por ser casada. Também em Portugal é perceptível a influência da poesia provençal – basta tomar como exemplo a primeira estrofe de um poema de Nuno Fernandes Torneol:

"Ir-vos quereis, minha senhora
e fico então com gran pesar
que nunca soube nada amar
senão vós, desde que vos vi.
E pois que vos ides d'aqui
senhora formosa, que farei?"

Figuram aí os mesmos traços centrais: a ocultação da identidade da amada, o amor não-correspondido, o sofrimento do eu-lírico e sua submissão à figura feminina, evidenciada pelo tratamento “minha senhora” (no original, "mia senhor"), que remete às relações feudais de vassalagem. Semelhante a essa forma de tratamento, aparece, às vezes, o termo “la mia donna” – a minha senhora – na poesia de Lentini. 

Vênus reclinada em travesseiros, por Paolo Schiavo (1440)

Outros de seus poemas ressaltam a exaltação das formas belas ("O rosto – me faz caminhar alegremente,/o belo rosto – me faz despertar,/ o rosto – me conforto densamente,/ o lindo rosto – que me faz penar"), característica da concepção platônica, mas seu conceito de amor não se limita a elas. Em O banquete, a apreciação da beleza de um corpo é o primeiro passo para a apreciação de outros corpos e de todas as formas belas, e o indivíduo é autônomo e solitário nessa jornada; os demais são objetos. Para Jacopo da Lentini e tantos outros poetas influenciados pela estética do amor cortês, a beleza física é a primeira armadilha de um sentimento inexplicável. Aqui há a submissão de um indivíduo a outro – a reciprocidade amorosa, ou a falta dela, surte reações no eu-lírico, que sabe que está lidando com uma alteridade, e não com um objeto. Assim, a beleza prende o poeta à figura feminina num primeiro momento, mas depois ele passa a amá-la integralmente - corpo e alma. À medida que o amor floresce, o apaixonado perde sua autonomia.

Apesar de nascer numa sociedade cristã, o “amor cortês” se afasta e, às vezes, se opõe aos ensinamentos da Igreja. O próprio culto ao amor - e não a Deus - como um ideal de vida superior indica as contradições entre os poetas da época e a religião. No soneto VI de Lentini, esse contraste aparece de forma clara  ("Eu penso em meu coração a Deus servir/como se pudesse ir ao paraíso/ao lugar santo, onde, ouvi dizer/há consolo, gozo e riso;/mas sem minha senhora não iria,/ aquela de loira testa e claro riso/que sem ela não poderia aproveitar/estando da minha senhora diviso"). O paraíso só pode estar completo se a mulher amada estiver lá; caso contrário, não é possível gozar a paz divina. Deus já não é exclusivo no coração dos homens - se é que realmente já o foi.

Pouco depois dos poemas de tom provençal de Jacopo da Lentini, surge o chamado dolce stil novo, composto, entre outros poetas, por Guinizelli (1230-1276), Guido Cavalcanti (1255-1300) e Dante Alighieri (1265-1321). O amor representado por eles ainda é bastante influenciado pelo fin amors provençal:

"Vós, que dos olhos me passou ao coração
e acordaste a mente que dormia,
olhais a angustiante vida minha
que suspirando a destrói o Amor.

Vem tomando de si grande valor
que frágeis espíritos vão embora
resta a figura só de minha senhora
e uma voz fraca que fala de dor.

Essa virtude de amor que me desfez
de vossos gentis olhos se moveu
um dardo me lançou dentro do peito

E acertou-me logo de uma vez
Que minha alma se estremeceu
vendo morto o coração no lado esquerdo."

(Guido Cavalcanti – em tradução livre)

No poema acima, o amor, semelhante a uma flechada, é causa de sofrimento para o eu-lírico e surge “dos olhos”. Há aí certa ambiguidade: a flechada acontece quando o olhar da figura feminina encontra o do poeta? Ou quando os olhos do poeta caem sobre a beleza da mulher? Difícil afirmar com certeza, mas o mais provável, pensando na tradição de exaltação dos atributos físicos no “amor cortês”, é que esse amor à primeira vista se relacione com sua beleza. Na comparação com a poesia provençal, a amada parece mais distante - não há descrições físicas, descreve-se com mais atenção os efeitos do amor na alma do poeta. Há uma busca do eu-lírico por reconhecimento; o poema é um modo de comunicar à mulher os sofrimentos causados pelo amor que o poeta tem por ela. Essa busca pelo reconhecimento da amada e a escrita como modo de extravasar os sentimentos aparecem também em Pier della Vigna (“Minha canção, leve estes lamentos/àquela que faz dançar meu coração,/ e que tem nas mãos os meus tormentos/e diz que estou morrendo por seu amor") e em Dante, e são bastante frutíferas - podemos observar os mesmos recursos em As Cartas Portuguesas (1669), de Mariana Alcoforado, e até mesmo no livro juvenil de Jenny Han, Para todos os garotos que já amei (2015). Outro ponto que merece atenção: o amor, grafado com letra maiúscula (“Amore”), não se assemelha tanto a um sentimento humano, mas a uma entidade externa aos homens, que os acomete inesperadamente. Daí pode-se pensar numa semelhança com Jacopo da Lentini, quando o representa como uma doença (“Muitos amantes trazem a doença/no coração, sem aparentar”). 

Em relação a essa visão do amor como algo repentino e externo ao homem, Paz (1994) traça ligações entre a cortesia árabe (que exerce grande influência sobre a poesia provençal) e o dolce stil novo, destacando trechos de O colar da pomba, de Ibn Hazm (904 1064) - “uma das figuras mais atraentes do Al Andalus” - e do capítulo XXV de Vita Nova, de Dante Alighieri. Para Ibn Hazm: “O amor, em si mesmo, é um acidente e não pode, portanto, ser suporte de outros acidentes”. Em Vita Nuova, de Dante, aparece ideia semelhante a essa, quase com as mesmas palavras: “[...] O amor não é por si só uma substância, mas é um acidente em sua essência". Em todos os casos, o amor é algo externo ao indivíduo - uma doença, uma entidade, um acidente - e, portanto, o homem não pode ser responsabilizado; sofre as “ações” de um terceiro.

Em Vita Nuova, Dante narra a trajetória de seu amor por Beatrice, desde o primeiro encontro. Há traços do fin’ amors provençal em sua obra - a jovem, idealizada, casa-se com outro homem, e o eu-lírico tem que esconder seus sentimentos -, mas o “amor cortês” aos poucos se transforma num amor espiritualizado. Essa mudança, já anunciada em Vita Nuova, tem sua expressão máxima na Divina Comédia. É Beatrice que leva o poeta pelo paraíso, funcionando, literalmente, como uma intermediária entre o céu e a terra. O “amor cortês” está presente em Dante, mas ele ameniza as contradições entre a poesia e a Igreja ao juntar o amor terreno ao divino. 

De O banquete de Platão à Comédia de Dante, o objeto amado figura como meio para atingir um fim superior. Para, contudo, que a trajetória até o poeta florentino leva à inversão do platonismo amoroso: primeiro, temos o erotismo sublime, ama-se um corpo (e depois, muitos) para alcançar o último degrau na escala de contemplação da beleza; com a poesia provençal, ainda bastante pautada pela beleza física, o próprio amor é o objetivo final - e só pode ser atingido pelo intermédio de uma pessoa amada. Enfim, Beatrice - embora bela – é admirada por Dante principalmente por suas virtudes, e seu amor o leva à graça divina. Não é claro, então, o que é o sentimento amoroso - culto à beleza física ou à alma da pessoa amada? Sentimento humano ou algo externo a ele (acidente, doença, entidade?) Por mais que pareça ter se formado um arquétipo da representação de amor - até hoje vemos reproduções do “amor cortês” na cultura -, os poetas estudados mostram que essa noção pode sofrer alterações, a depender das influências e do contexto histórico, mas também da trajetória pessoal de cada um deles.

Referências

  • ABC da literatura (Ezra Pound)
  • A dupla chama: amor e erotismo (Octavio Paz)
  • Cantares dos trovadores galego-portugueses (Natália Correia)
  • Dante, poeta do mundo secular (Erich Auerbach)
  • Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica (Erich Auerbach)
  • Vita nuova (Dante Alighieri)




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