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As vozes femininas da poesia russa

Ser mulher é uma luta diária na qual precisamos nos esforçar dez vezes mais para ter respeito e reconhecimento necessários. Se hoje isso ainda acontece, em 1800, 1900, era ainda mais difícil para uma mulher ser reconhecida e respeitada em suas decisões de vida, principalmente quando ela escolhia trabalhar.

Com títulos considerados os melhores da literatura mundial, a Rússia traz em sua história grandes nomes como Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski e Aleksandr Pushkin. A lista é extensa e vai desde obras mais românticas até grandes críticas sociais e políticas, mas quando o assunto é autoras russas, dificilmente vemos seus trabalhos elencados. No Brasil, essas mulheres não possuem muitas traduções, porém fizeram a diferença com o seu trabalho, assim como qualquer outro autor de renome, trazendo em suas histórias a luta por direitos igualitários, a vontade de escrever desde muito jovens, bem como as dificuldades encontradas no meio do caminho por conta de seu gênero.

Anna Bunina (1774–1829)

Anna Bunina

Anna Bunina é considerada a primeira poeta russa e pioneira na utilização de seus escritos como meio de trabalho.

Nascida na zona rural do antigo Império Russo, Anna Petrovna Bunina teve uma educação precária que buscava apenas aprimorar funções para ser uma dona de casa, e o básico de ler e escrever. Mesmo assim, escreveu seu primeiro poema aos 13 anos e continuou escrevendo desde então. Aos 28, se mudou para São Petersburgo com seu irmão, e lá buscou aprimorar seus estudos e sua escrita. A jovem iniciou os estudos em francês, alemão, física e matemática, e aos 34 anos, já publicava a tradução de livros do francês para o russo. Aos 35, Anna começou a publicar poemas autorais.

Seu trabalho era muito influenciados pela poesia lírica grega, dando a ela o apelido de “Safo Russa”. Sua coletânea de poemas lhe concedeu também a admiração de críticos e da família real, que passou a ofertar a ela uma pensão anual por seus versos.

Apesar de seus bons relacionamentos e influências literárias através de conhecidos que a ajudaram a se tornar membro de honra de um grupo literário na época, Anna encarou o estigma de ser uma mulher, não tendo a permissão para recitar seus poemas em público ou nos encontros, pois era considerado um escândalo para as normas sociais que uma mulher fizesse algo assim. Além disso, também sofreu com seu trabalho sendo ridicularizado por autores de renome como Pushkin, o que acabou levando seu prestígio embora.

Anna veio a falecer em decorrência das complicações de um câncer de mama e mesmo com o reconhecimento que ganhou na época, sua antologia poética Musa Inexperiente, ou poemas soltos, não chegaram a ser traduzidos para outros idiomas.

Evdokiia Rostopchina (1811–1858)

Evdokiia Petrovna Rostopchina, por Pavel Andreyevich Fedotov (1850)

Nascida em Moscou, Evdokiia (Dodo) Petrovna Sushkova começou a escrever poemas ainda muito nova e possuía uma educação de altíssima qualidade para sua época, aprendendo cedo diferentes línguas, história e música - e todo esse conteúdo era transmitido para sua poesia. Seu primeiro poema, “Talismã”, foi publicado em 1831, no livro de seu amigo, o príncipe e poeta Pyotr Vyazemsky.

Aos 20 anos, se casou com o Conde Rostopchin, e juntos se mudaram para São Petersburgo, destino essencial para quem buscava prestígio tanto social quanto artístico. Logo, Evdokiia passou a ser conhecida por grandes nomes literários da época que compareciam a seus bailes e liam seus poemas, mas apesar do status importante que possuía, a Condessa não deixou de ser vítima dos comentários feitos por alguns homens a respeito de seu trabalho e caráter.

Ela lança sua primeira coletânea em 1841, três anos após o lançamento de duas histórias também de sua autoria. Após escrever um poema criticando o Império Russo, Evdokiia foi proibida pelo imperador a voltar para a capital – São Petersburgo –, indo para sua cidade natal, Moscou, em 1847. Ela continuou a escrever em diferentes áreas além da poesia, porém, com o passar do tempo, suas obras foram se distanciando dos movimentos literários da época e a Condessa não lidou de forma positiva com as críticas e a falta de interesse em seus novos trabalhos. Após criticar esses novos movimentos literários, acabou se isolando da sociedade. Abaixo, alguns versos de um poema da autora (com tradução de Alice Vieira):

“Sim, realmente, eu amo a liberdade da mascarada;
Lá não sou notada nem conhecida por ninguém,
Eu falo a verdade para todo mundo,
Eu, vítima e escrava da sociedade – eu estou contente,
Porque secretamente posso rir da cara dela
Com meu riso sincero e vingativo!”

Zinaida Gippius (1869–1945)

Zinaida Gippius

Escrevendo seu primeiro poema aos 7 anos, Zinaida foi uma poeta, roteirista e escritora russa que lutou contra o regime político e as normas sociais de seu país.

Antes mesmo do seu casamento com o poeta Dmitry Merezhkovsky, Zinaida já possuía títulos publicados (Coletânea de Poemas Vol. 1 e Vol. 2) e continuou seu trabalho na companhia do marido. Aos 20 anos, se mudou junto dele para São Petersburgo, onde puderam aumentar seu círculo social, convivendo com Maksin Gorki, Anton Tchekhov e Tolstói. Juntos, os dois também lutavam a favor da Revolução de Fevereiro – primeiro passo para o início da Revolução Russa –,  situação que os levou a serem exilados do país e se instalarem em Paris, onde continuaram tendo grandes reuniões para debate político e cultural.

Zinaida era uma voz ativa durante essas reuniões, participava de várias rodas literárias e não tinha medo de colocar em seu trabalho aquilo que sentia, falando com naturalidade sobre amor e morte no mesmo poema. Se diferenciando da norma na época, não escrevia apenas com pronomes femininos, e muitas vezes aparecia vestida em trajes masculinos. Não demorou muito para seu nome ser associado por algumas pessoas como "escandalosa" e "demoníaca". Apesar de tudo, Zinaida não deixou que isso atrapalhasse o que ela desejava transmitir, tanto em sua figura quanto em seu trabalho, se tornando um símbolo de resistência queer.

Alguns de seus poemas podem ser encontrados traduzidos para o inglês. Abaixo, versos de Flores da noite, poema de 1894. 

“Oh, não confie na hora da noite!
Está cheio de beleza maligna.
Na noite as pessoas estão perto da morte,
E as flores sozinhas são estranhamente vivas.”

Anna Akhmátova (1889–1966)

Anna Akhmátova

De origem ucraniana, Anna Andreevna Gorenko se mudou para a Rússia ainda muito nova, e aos 11 anos começou a escrever seus primeiros poemas. Seu pai era contra as atividades da filha, acreditando que iria desonrar o nome da família, mas isso não se tornou um empecilho para ela buscar seu sonho, e passou a assinar seus poemas utilizando-se do sobrenome de sua bisavó como pseudônimo. A jovem também continuou seus estudos e chegou até a estudar Direito. Seu primeiro livro, intitulado Tarde, foi publicado quando ela tinha apenas 23 anos. Anna se casou com o poeta e crítico literário Nikolai Gumilev, com quem viveu por oito anos e teve seu único filho.

Anna, assim como tantas outras pessoas, sofreu as consequências do contexto mundial no qual vivia. Teve seu primeiro marido morto pela guerra e o segundo preso, assim como seu filho e amigos no regime de Josef Stálin. Durante esse período, a poeta ia diariamente à fila da prisão de Kresty para conseguir alguma informação sobre seus conhecidos, e no meio de tantas pessoas que buscavam o mesmo que ela, passou a escrever sobre os seus sentimentos e de todos que encontrava ali. Seu poema mais celebrado, “Requiem”, surgiu dessa experiência.

Entre a Segunda Guerra e ápice do stalinismo, Anna passou quase vinte anos sem poder publicar seus trabalhos, sobrevivendo da renda que conseguia através de traduções. Isso também não impediu que ela continuasse a escrever poemas que transbordavam as suas emoções e o cenário político de sua época, dando voz aos diferentes sentimentos populares. Muitos desses poemas foram apenas memorizados pelo medo de ser descoberta, mas no futuro, eles virariam a voz de uma geração.

Após a morte de Stálin (1953), Anna voltou a publicar novos trabalhos, mostrando aqueles que foram guardados por tanto tempo, não deixando que aquela época de sofrimento fosse esquecida. Seu poema “Requiem” (1914) e a coletânea Poemas sem herói (1944 — 1962), publicada após sua morte, concederam a ela reconhecimento mundial como uma das mais influentes poetas do século XX. Além de prêmios literários, a autora concorreu ao Nobel de 1965. Felizmente, sua Antologia Poética e outros poemas estão disponíveis no Brasil.

“Eu bebo a nossa casa em ruínas
Para o mal da minha vida
Para a nossa solidão juntos
E eu bebo para você —
Aos lábios mentirosos que nos traíram,
Para os olhos frios,
Para o fato de que o mundo é brutal e grosseiro,
Ao fato de que Deus não nos salvou.”

(O Último Brinde, 1934)

Marina Tsvetáieva (1892–1941)

Marina Tsvetáieva

Junto de sua amiga, Anna Akhmátova, Marina Tsvetáieva é uma das poetas russas que mais tem obras traduzidas e informações disponíveis nos dias de hoje.

Nascida em uma família cercada de arte e história, estudou francês, alemão, inglês e história literária, curso que despertou o interesse da jovem na área e, aos 18 anos, o seu primeiro livro de poesias é publicado.

Mesmo vindo de uma família abastada, sabe-se que a jovem teve uma vida cercada de dificuldades e tristeza. Após a publicação de mais dois livros autorais, Marina se casa com o militar Serguei Efron e tem três filhos dessa união. Durante a Revolução Russa, Marina se vê sozinha com as filhas enquanto seu marido disputa nas batalhas. Vivendo com dificuldades, a poeta leva Irina – filha mais nova na época – para adoção, mas a menina morre de desnutrição com menos de 5 anos. Após a Revolução, se exila com o marido, tem seu terceiro filho e continua a viver em extrema dificuldade. Marina continuou escrevendo durante seu exílio, mas sofria críticas severas sobre suas obras.

Em 1937, após 15 anos em exílio, seu marido e Ariadna (filha mais velha) voltam para a Rússia, onde ele acaba sendo morto e a filha, presa. Não tendo mais esperanças para o futuro, Marina se suicida logo que volta para a Rússia.

Cercada de melancolia, a poesia de Marina era ao mesmo tempo amorosa e triste, refletindo os acontecimentos de sua vida pessoal. Sua obra foi complementada também pelos diários que usava na época, mostrando o sofrimento de uma mulher em plena Revolução Russa. Hoje, ela é considerada, assim como Akhmátova, uma das mais influentes mulheres da literatura russa no século XX, e suas obras Vivendo sob o fogo (Confissões), O poeta e o tempo, Indícios flutuantes e Elos líricos foram traduzidas para o português.

“Queridos são os longos dias de loucura,
Paris à noite é estranha e sem graça,
Estou voltando para casa para violetas de luto
E o retrato de alguém na parede.”

(Em Paris)

Referências

Carolina Pereira
Santista, 20 anos, estudante de psicologia e de filosofia. Amante de idiomas, café, mar e tudo o que Edgar Allan Poe tenha colocado no mundo. De vez em quando tem vontade de fugir e viver como um hobbit.

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