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Keats e seu flerte com a morte

Falar de John Keats tornou-se, com o passar dos anos, falar sobre sua morte. O último poeta Romântico e o mais jovem a morrer, Keats é a própria figura trágica, o poeta do Romantismo por essência, aquele que representa tanto os ideais elevados do movimento quanto encarnou em sua própria pele a beleza encontrada na morte.

Keats era divertido. Em suas cartas, encontramos um lado dele que não costuma ser muito explorado — o senso de humor constante do poeta, que fazia jogos de palavras e brincava com a própria situação e com as ações dos outros. Sua forma de encarar a vida era apaixonada — ele era, acima de tudo, apaixonado por arte e por literatura.

Mas também era apaixonado pela morte.

A morte o acompanhou desde a infância. Primeiro, a morte de seu pai, quando ele tinha apenas 8 anos. Depois, a mãe, no início da adolescência. Afastado da irmã, que foi criada por outra família, e sendo o mais velho, Keats terminou seus estudos sob regime de tutela de seu guardião, e tornou-se cirurgião (com licença para ser apotecário). Ser cirurgião no início do século XIX não era algo limpo — a profissão demandava uma habilidade de manter-se tranquilo perante o sofrimento e a morte, assim como ao se deparar com os aspectos mais viscerais do corpo humano. A morte, hoje em dia, é higiênica — mesmo nos hospitais, ela é ascética, o mais limpa possível.

“Ele esqueceu seu aniversário e decidiu estudar medicina. Ele aprendeu a usar sanguessugas, arrancar dentes e suturar. Ele observou cadáveres na mesa de dissecação que haviam sido comprados por três ou quatro guinéus cada dos homens que os ressuscitariam. Os corpos nus eram entregues em sacos. Keats tomou notas, e nas margens desenhou caveiras, fruto e flores. Ele se sentia sozinho.”

(Jaeggy Fleur, These Possible Lives - Essays)

Para Keats, a morte tinha cheiro, textura e som. Tendo crescido cercado de morte e tido como profissão a medicina, Keats não podia fugir de tais realidades — e isto, aliado ao olhar poético que tinha desde a infância, lhe fez ter a morte por companheira no cotidiano. A morte era vida — em meio a morte, ele via flores e frutos, a transformação de uma coisa em outra. Em meio a morte, ouvia-se a voz da natureza.

Ler literatura clássica é ouvir as vozes dos mortos.

John Keats

Para Keats, a morte era como um sussurro pelo qual ele ansiava ouvir. Existe em sua poesia o polo movimento-imobilidade — o movimento era a escrita, o amor, seus desejos; a imobilidade, o existir em esquecimento, algo pelo qual temia, mas também ansiava. A natureza, tão presente em seus poemas, era ao mesmo tempo móvel-imóvel — seu rouxinol “não nascera para a morte”, mas a própria natureza alimenta-se da morte e dela é morada; nós, como seres da natureza, não podemos fazer nada exceto também participar de sua dança.

Embora temesse a morte, pois ela lhe roubaria os dias de vida e poesia — assim como a possibilidade da concretude do amor romântico —, Keats via na morte um grande alívio. Perante a morte — perante o Tempo — nada importaria. Não importaria que ele escrevesse, que ele amasse, que ele desejasse ser lido e reconhecido. Não importaria que tivesse 1.50 cm de altura, que vivesse isolado em sua solidão, ainda que sempre passeando entre círculos de amigos. Nada importaria perante o silêncio sepulcral da morte. E isso lhe trazia paz.

I

Pode a morte ser sono, se a vida não é mais que sonho,
E se as cenas de êxtase passam qual espectros?
Os prazeres transitórios semelham visões,
Mas pensamos a morte como a grande dor.

II

Como é estranho o vagar do homem na terra,
Em sua vida maldita não pode desvencilhar
O rude caminho; nem ousa sozinho entrever
Seu augúrio futuro que não é senão despertar.

(John Keats, A morte, na tradução de Alberto Marcicano e John Milton)

Pouco antes de morrer, em seu leito de morte em Roma, Keats disse para Joseph Severn, seu amigo que dele cuidava, as palavras: “Não se preocupe, Severn, e não lamente; alegre-se, pois ela veio”. Ela, no caso, é a morte — uma amiga desejada, conhecida de longa data.

Após a morte de Keats, seus amigos — especialmente Charles Armitage Brown — fizeram uma inscrição em sua lápide. O desejo do poeta foi que as palavras ali inscritas fossem apenas “Aqui jaz aquele cujo nome foi escrito em água”, todavia, seus amigos acharam que deveria haver mais do que aquilo, especialmente por sentirem que Keats havia adoecido e morrido por sua constituição delicada, que não suportara as críticas ruins feitas aos seus livros. Claro que isso não era verdade — mas eles eram seus amigos, e queriam protegê-lo mesmo após sua morte. Um deles, inclusive, travou um duelo para defender a honra de Keats — e morreu duelando. Porém, voltando um pouco, a inscrição que seus amigos gravaram no túmulo é desafiadora, dizendo: “Este Túmulo contém tudo o que foi Mortal de um JOVEM POETA INGLÊS, Que em seu Leito de Morte, na Amargura de seu Coração, pelo Poder Malicioso de seus Inimigos, Desejou que estas Palavras fossem gravadas em sua Lápide: Aqui jaz Aquele Cujo Nome foi escrito em Água”.

Tais palavras são desafiadoras, pois sugerem que foram as críticas negativas que adoeceram e mataram Keats — e que o poeta, amargo e triste, desejou apenas sumir, sem ter nem ao menos o nome gravado em sua sepultura. Todavia, isso não reflete a verdade. Keats vinha flertando com a morte desde criança. Em carta, um Keats apaixonado por sua noiva, Fanny Brawne, diz que tem “dois luxos nos quais penso durante as minhas caminhadas, a sua Amabilidade e a hora da minha morte. Ó se eu pudesse ter ambas no mesmo minuto. Eu odeio o mundo: ele bate demais nas asas da minha vontade própria, e se eu pudesse tomaria um doce veneno dos teus lábios para me tirar dele”.

Em seu poema “Wacher” Anne Carson diz que a palavra preferida de Emily Brontë era justamente a que dá título aos versos da autora — na grafia faltando o “t”, tal qual Emily costumava escrevê-la. No poema, ela defende que Emily observava o mundo — e sendo essa observadora, não poderia deixar de fazê-lo. Ela observava o mundo e observava a vida, e observar a vida é também observar a morte. Observar a morte nos pastos, na charneca, no campo; observar a morte de animais, de frutos e flores; observar a morte dos sentimentos, do vento, das estações; observar a morte transformar-se em vida num ciclo eterno de renovação. Morte e renascimento andam juntos — o descanso é apenas uma pausa entre uma coisa e outra. Keats sabia disso.

Romântico que era, ele também observava a natureza. Sua poesia é tida como sensual não necessariamente por colocações eróticas — embora haja algumas —, mas especialmente por estar atrelada aos sentidos, ao toque, ao que percebemos na materialidade. Existe, sim, muita metafísica nos versos de Keats; contudo, o que mais existe é algo palpável. E este algo era experienciado através dos sentidos. Keats observava e interagia com a natureza. Keats observava e interagia com a morte. E por ela era apaixonado.

“No escuro escuto; por várias vezes
Que tenho sido seduzido pela suave morte,
Lhe dando ternos nomes em versos refletidos,
Para que pegasse no ar meu sutil alento;
Nunca como agora me parece tão boa a morte,
Findar à meia-noite sem nenhuma dor”

(John Keats, Ode a um rouxinol)

Ainda que não acreditasse em poderes maiores em termos de alma — e fosse um ateu convicto, tendo, inclusive, dito que se mataria naquele mesmo instante caso não melhorasse e seus amigos continuassem a falar em outra vida —, Keats acreditava na continuação. Continuamos na natureza — quando a putrefação desfaz o que de nós é mortal, transformamo-nos em outra coisa — nutrientes, semente, árvore, vida. Keats, fascinado que era por mitologia grega, via beleza na metamorfose — uma coisa que se transforma em outra, ainda existindo em essência, uma continuação do ser. Seu frágil corpo ele via transformado em um jardim de violetas — seu desejo antes de morrer. Ele disse ao seu amigo Severn que as sentiria crescer a partir dele em cima do túmulo. E lá estão até hoje, em cima de seu túmulo, um jardim de flores plantadas em sua tumba, que lhe guardam a memória e são, de certa forma, o próprio Keats.

Keats adorava a morte. A morte para ele não era a causadora de tristezas — antes, era o amor que nos levava por caminhos de solidão. Mas era uma solidão que valia a pena — uma solidão sentida pela ausência do que antes existia. Não tornava a falta mais fácil, mas a tornava significativa. Keats sentia que não teria significado em sua falta. Sentia que a noiva estaria melhor sem ele — certamente arranjaria outro par muito em breve, bonita que era, e teria uma vida melhor do que a que ele poderia lhe proporcionar —, sentia que os amigos não lhe gostavam tanto assim, que era muito frágil para estar no meio deles, sentia que não havia motivos para estar entre o que sobrara de sua família — instruindo Fanny a cuidar de sua irmã, deixou tudo em ordem para que ela tivesse uma longa e bonita vida —, sentia que o túmulo lhe seria morada adequada, que o esquife lhe seria macio, que seus desejos seriam abrigados pela terra.

Emily Brontë era uma observadora — Keats também. Mas, mais do que isso, ele era alguém que esperava — ele passou anos de sua vida esperando pela morte chegar. A morte, velha amiga, passava na frente de sua porta, às vezes fazia visita, mas nunca adentrava de fato. Por vezes, quando estava doente em Roma, Severn contou que Keats acordava e começava a chorar ao perceber que havia acordado, que seguia acordado, que seguia com a capacidade de acordar — chorava por ainda não ter morrido. Certamente, isso ocorreu pelo sofrimento físico pelo qual ele estava passando, afinal, a tuberculose havia lhe consumido o corpo; mas também acontecia pelo sofrimento psíquico de ser uma pessoa — e uma pessoa ciente de que a morte está vindo, de que a vida terminou. Keats dizia estar vivendo uma existência póstuma — e estava. Sua vida era aguardar pela visita da velha amiga.

Ao olharmos para a poesia de Keats, encontramos muito dessa melancolia da espera. Mas isto não é tudo: ele era alguém divertido, que fazia brincadeiras com rimas e vivia apaixonadamente. E há quem esqueça que viver é condição para morrer. Keats sabia disso — e, sabedor disso, aproveitava cada instante, sempre sabendo que logo ela viria, e ele teria seu descanso. Caso não o tivesse, ao menos dele restariam alguns versos, que ele acreditava não serem lembrados por ninguém — felizmente, nisso ele errou, pois seguimos amando Keats e entendendo cada vez mais a maneira poética como viveu.

Seus amigos diziam que ele tinha o olhar de uma sacerdotisa de Delfos à procura de visões — e visões de beleza ele tinha, visões que costurava em seus versos. Mas visões são uma parte do Paraíso — e enxergá-lo sem tocá-lo pode ser desgastante. Keats era solitário. Rodeado de pessoas, mas essencialmente solitário. Sua visão poética o afastava ainda mais dos outros, porém, ele só poderia ser quem era.

Por vezes, ele estava rindo e fazendo jogos de palavras para, no minuto seguinte, ir ao canto da sala e ficar à janela, olhando a paisagem lá fora, contemplando a lua, isolado de seus companheiros. É dito que todos respeitavam esse momento como se fosse algo religioso. Keats não era religioso — sua religião era, como ele disse, o Amor e a Beleza. Mas Amor e Beleza são inatingíveis — ao tocá-los, logo eles escapam, esvanecem no ar e reaparecem em outras paragens. A perseguição de Eros é implacável. E a alguém sensível e solitário, contemplar as felicidades do idílio amoroso — ser inspirado por tal, escrever mil versos sobre tal — sem nunca poder de fato vivê-lo é doloroso demais. Keats estava acostumado à morte — a Morte era sua companheira. Por que ela não chegava?

Wordsworth, ao ouvir Keats declamar um poema, disse que se tratava de “um belo exemplo de paganismo”. Ainda que fosse ateu, Keats era pagão — sua divindade estava na Poesia. Ele recitava poemas de olhos fechados, sentindo cada palavra, cada sílaba, navegando pelas ondas das rimas e enxergando um mundo poético que sofria por não poder tocar.

Muitas vezes há dificuldade de entender que o mesmo homem conhecido por cair na gargalhada por qualquer coisa, adorado por seus amigos, sentia-se tão solitário e melancólico. É comum termos em mente a ideia de que uma pessoa deprimida é triste o tempo todo — mas essa ideia não é verdadeira. A tristeza é apenas uma face da depressão — e aqui não me refiro necessariamente à depressão clínica, embora também possa falar dela, mas sim ao estado de espírito que em séculos passados era conhecido como “temperamento melancólico”. Keats era melancólico.

Numa noite, ao chegar em casa após uma visita a Londres, Keats estava com febre e acessos de tosse. Era fevereiro de 1820, e, ao ver uma gota de sangue que saiu em seu lenço ao tossir, ele calmamente disse a Brown, seu amigo: “Esta gota de sangue é a garantia da minha morte. Eu devo morrer”. Ele não disse isso com temor, mas com fascinação — como alguém que finalmente encontra seu destino. E tendo encontrado o destino, tudo se aquietou. Naquele momento, ele sabia que não teria de esperar muito — tudo estaria acabado, seus dias haviam chegado ao fim.

Keats estava convencido de que morreria de forma anônima — ninguém lembraria dele, todos seguiriam sem ele e, aos 25 anos, havia vivido muito pouco para ser lembrado como poeta. Era de uma tristeza infinita para seus amigos saberem como Keats se sentia — tanto que eles passaram suas vidas tentando preservar a memória do poeta.

Mas um poeta não morre — apenas volta ao éter, onde suas palavras ecoam para sempre.

“As melodias são doces, mas aquelas não ouvidas
São mais doces; desta maneira, vós, suaves flautas, soai;
Não ao ouvido sensorial, mas, ternamente,
Toquem as melodias espirituais do não-som.
Belo jovem, sob as árvores, não deixarás
Tua canção, como jamais perderão as árvores suas folhas;
Amante audacioso, nunca, nunca beijarás
Embora perto de tua meta — não te aflijas;
Ela não se desvanecerá, e embora não tenhas o deleite,
Sempre amarás, e será ela sempre bela!”

(John Keats, Ode a um vaso grego)

Referências 

Este texto foi originalmente escrito para a newsletter do QC, mas como hoje é o aniversário da morte de Keats, pensei que seria correto publicá-lo aqui também no site. Caso se interesse por ler a newsletter, basta clicar aqui




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Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando Apolo, Dioniso e a recepção dos clássicos em O Morro dos Ventos Uivantes. Escritora, jornalista, editora e leitora crítica, quando não está lendo, escreve sobre clássicos. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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