Conheci Louisa May Alcott bem antes de pensar em ler sua obra-prima, Mulherzinhas (Little Women, no original). Sempre gostei de ler sobre vidas de pessoas que nasceram há séculos antes de mim, especialmente de mulheres. Adoro biografias, curiosidades e estou sempre atenta a notícias de novas descobertas do modo de vida em períodos distantes, ensaios de historiadoras (mulheres de preferência, sempre) falando sobre a dificuldade e as restrições impostas a mulheres desde a moda, como o uso de espartilhos, e exaltando as mulheres que revolucionaram sua época, ainda que em pequenos gestos, como as que iam contra tal moda impositiva ou mesmo aquelas que se recusaram a viver a vida planejada para elas e seguiram seus próprios rumos, enfrentando dificuldades, sem dúvida, mas sendo livres. Vejo nesses detalhes, como a recusa ao uso do espartilho, uma beleza única: a beleza daquelas que não sucumbem ao sistema, que se permitem ser livres, ainda que enfrentem dissabores por isso. Foi assim que me apaixonei por Alcott quando li sua mais famosa declaração pessoal: “Estou mais do que convencida de que sou a alma de um homem colocada por alguma aberração da natureza no corpo de uma mulher… porque me apaixonei por tantas garotas bonitas e nunca pelo menos um pouco por qualquer homem”.
Não sabemos exatamente qual era a natureza dos sentimentos de Alcott, mas sabemos que ela teve diversos relacionamentos com mulheres — e apenas um com um homem. Mas, ainda que não saibamos tudo sobre ela, é incrível perceber como ela tinha consciência de que não era uma mulher comum e, talvez, fosse um homem no corpo de uma mulher. Se tivesse nascido neste século, seria Louisa May Alcott um homem trans? Não posso afirmar tal coisa, mas posso dizer que ela não teve medo de viver sua vida como bem desejasse. Alcott jamais casou: permaneceu solteira, teve relacionamentos e viveu de sua escrita, sustentando, inclusive, a própria família. Ela viveu como quis durante o restrito século XIX, quando as mulheres ainda eram vistas como meras propriedades.
Nesse espírito de liberdade, ao ser convocada por seu editor a escrever um livro para jovens meninas, ela criou Jo March, uma das mais clássicas e inspiradoras personagens literárias de língua inglesa. Mas ela não foi criada apenas da imaginação de Alcott. Jo March é um reflexo de si mesma, é sua personificação literária. O livro, Mulherzinhas, é o retrato da família da autora que, assim como sua protagonista, tinha três irmãs, eram pobres e tiveram de trabalhar desde cedo por causa da irresponsabilidade do pai. Elas passaram por vários empregos, desde arrumadeira até governanta, mas Alcott jamais deixou sua veia artística de lado, escrevendo o mais que pudesse sempre que sobrasse um tempo. Ela passou por três fases de escrita: a de literatura sensacionalista, quando escreveu histórias que são descritas como “fogosas”, sob um pseudônimo, para um jornal não considerado sério, mas que pagava as contas; depois, se voltou para a escrita de artigos políticos, onde defendia o sufragismo e o abolicionismo, movimentos pelos quais lutava; e só então, já com alguns contatos na área, ela foi aconselhada a escrever Mulherzinhas, um livro que deveria servir para jovens mulheres lerem sem que encontrassem os perigos da moral duvidosa e escandalosa dos livros juvenis destinados aos rapazes da época.
Mas esse pedido deveras conservador não amarrou Alcott, tampouco a impediu de criar Jo March e colocar na personagem seu próprio espírito não conformista e um pouco tomboy. Jo, caso não fosse identificada de imediato como uma mulher, bem poderia ser um homem: seu apelido soa masculino, ela se veste de forma masculinizada e prefere a companhia de rapazes — para brincar e falar sobre esportes e aventuras — a de moças. Josephine March prefere ser apenas Jo, a moça capaz de cortar seus longos cabelos para ajudar a mãe com o dinheiro, a jovem que faz sua irmã, Amy, passar vergonha por sujar seu vestido, queimar as bordas da roupa e rasgar sua luva. Jo é a irmã que inicia o livro dizendo que odeia ser uma menina já que, se fosse um rapaz, poderia ir para a guerra ajudar o pai a lutar. Ela tem um espírito inquisitivo demais para a época, progressista demais, com ideias libertárias e atitudes que a tornam o assunto da fofoca local. Jo March não se encaixa, e nem deveria, já que sua própria criadora também não se encaixava.
Louisa May Alcott nunca casou, teve casos com diversas mulheres, se inspirava na biografia de Charlotte Brontë, que a salvou de um suicídio. Ela, claramente, só começou a ser aceita pela sociedade ao redor quando iniciou uma carreira de sucesso. E longe de mim dizer que isso a tornava não-hétero, de forma alguma. Ela própria declarou que amava mulheres, e jamais havia amado um homem sequer. Quando lemos Mulherzinhas, é possível perceber isso em Jo. Ainda que ela não se declare de forma aberta a nenhuma mulher, nem tenha relacionamentos ambíguos, ela deixa bem claro que não se sente atraída por homens, e Louisa fez questão de colocar nela traços do que era considerado masculino na época.
Me pergunto até que ponto Alcott teve de cortar seu livro para que ele fosse aceito. A história do editor exigindo que ela casasse Jo é bem conhecida e foi, o mais fielmente possível, retratada na adaptação mais recente, dirigida por Greta Gerwig, Adoráveis Mulheres. Mas apesar de conhecermos esse detalhe, não sabemos, de fato, quantas exigências o editor fez para que Mulherzinhas fosse aceito, publicado e divulgado. Contudo, apesar de não possuir uma máquina do tempo que me permita bisbilhotar aquele momento único a que aqui me refiro, consigo imaginar que a exigência pelo casamento de Jo não foi a única a ser feita.
Não penso que Jo não é hétero porque ela é uma personagem de nome masculino e com hábitos masculinos, tampouco por seu casamento ter sido inserido às pressas e de má vontade na história. Penso nisso porque, para começo de conversa, ela é o espelho de Louisa May Alcott, uma mulher não-hétero que passou a vida inteira lutando por sua liberdade e declarou, por escrito, que não se sentia uma mulher e que não amava homem algum, bem pelo contrário. Em segundo lugar, porque todo o arco de relacionamento entre Jo e Friedrich Bhaer não faz o menor sentido.
Apesar de alguns leitores questionarem o motivo para Jo não ter seu final feliz ao lado de Laurie, seu companheiro de infância e adolescência, ele é bem claro para mim: ela o ama como a um irmão. Não poderia ser de outra forma. Jo estava mais preocupada em traçar seu caminho literário do que em perceber na figura de Laurie um destino sério, como o de uma senhora do lar, que a apavorava mais do que tudo. Ela passa quase um livro inteiro (com suas oitocentas páginas) fugindo de um relacionamento e se esquivando de um compromisso sério, como um casamento, para, no final, se contentar com uma vida sossegada, cuidando de diversas crianças, ao lado de um professor alemão mais velho e que não aprova sua escrita? Não faz o menor sentido.
E o único motivo que a faz cair nos braços dele, para além da exigência do editor, que a forçou a escrever um final onde Jo casasse, foi que ela havia recentemente perdido sua irmã, Beth, que falecera em decorrência da escarlatina. Acho esse motivo completamente válido e real, já que uma das irmãs de Alcott, Elizabeth, faleceu ainda muito jovem e o ocorrido foi seguido do casamento de sua irmã mais velha, Anna. Com isso, Louisa sentiu-se sozinha e desolada, numa casa praticamente vazia, enquanto suas irmãs, incluindo a terceira, May, a inspiração original para Amy, haviam seguido seus caminhos, cada qual à sua maneira. Imagino como Louisa deve ter se sentido sozinha. No entanto, como ela era uma pessoa real, não a personagem de um romance, sua vida não seguiu os rumos da ficção e ela não encontrou um amor possível, que permanecesse com ela para sempre. Tudo o que pôde fazer foi escrever.
Greta Gerwig compreendeu isso ao adaptar o livro. O final ambíguo revela duas Jos: uma que tem seu final feliz nos braços do professor Bhaer, que lhe ajuda a cuidar de seus alunos na escola que ela fundou. A outra Jo é mais parecida com a verdadeira inspiração para a personagem, Louisa, que, após uma negociação onde bateu o pé e exigiu ser dona da sua história, foi publicada pelo preço de mudar a narrativa e dar a Jo um marido ou a morte. Quando vemos, ao final do filme, Jo segurando com carinho seu livro, o livro onde conta a história de sua família de forma romanceada, enquanto olha para a prensa, que imprime mais cópias dele, sentimos a verdade por trás da fala em que ela afirma, numa conversa com sua mãe, ser tão, tão sozinha. Ela é solitária, mas tem sua liberdade. Louisa também. Muitas foram as mulheres não-hétero de outros tempos que foram obrigadas a casarem-se com um homem escolhido pela família por questões de moral ou apenas para conseguir um sustento, uma casa, um lar, pois mulheres não poderiam possuir bem algum.
Louisa teve a sorte de ter contatos suficientes no meio literário para lhe ajudar na hora de publicar suas histórias, mas muitas foram as mulheres que não tiveram o mesmo destino. É verossímil, portanto, que Jo tenha casado no final do livro. Ainda mais porque ela casa com um homem completamente sem graça, um personagem mal desenvolvido que claramente foi inserido na história à força, por quem Jo sente apenas um carinho de amigo. Bhaer é o par romântico mais sem graça da literatura clássica. Quando leio a descrição que Jo escreveu, em carta, à sua família, ao conhecê-lo, vejo ali uma figura paterna: um homem beirando os quarenta anos, desajeitado, com meias furadas, que brinca com crianças e adora ensinar — mas não esconde seu caráter profundamente moralista e aproveita qualquer momento para dar lições em quem quer que esteja presente. Para mim, Bhaer foi intencionalmente inspirado na própria figura paterna de Jo — pelo menos, nas coisas boas. Seu pai também era um professor e foi com ele que Louisa passou o resto dos seus dias, cuidando dele enquanto ganhava a vida como escritora. Não creio que foi de forma não intencional que ela criou a figura de Bhaer de maneira a parecer uma espécie de reflexo positivo do pai. Como foi forçada a dar um final romântico a sua personagem, ela escreveu algo tão longe da atração sexual quanto poderia. Me pergunto se Louisa criou um personagem como o professor Bhaer, tão sem características atraentes, e focou tanto o romance entre ele e Jo justamente para deixar bem claro seu posicionamento: Jo March não é hétero.
Ao assistir a adaptação, Adoráveis Mulheres, me emocionei muito com o final melancólico de Jo: sozinha, porém com sua literatura, com sua carreira. Mas faltou algo. A verdadeira Louisa não terminou sozinha, como é dito na história: ela tinha relacionamentos com mulheres, ainda que não declarados por causa da homofobia da época, que criminalizava qualquer relação entre pessoas do mesmo sexo. O filme é perfeito, é uma bela homenagem, mas o filme e a releitura do livro me fazem perguntar quando Jo March será livre para amar uma mulher, da forma como Louisa deveria ter sido.
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