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“A Terra Desolada”, de T.S. Eliot: como narrar o inenarrável?


No pequeno ensaio “Experiência e Pobreza”, o filósofo alemão Walter Benjamin reflete sobre a transformação na forma como a experiência é transmitida. Para o autor, a maneira tradicional de narrar a vivência e passá-la adiante – como a reunião em torno da lareira, quando os mais antigos contam histórias; ou os provérbios passados de geração em geração, carregados de ensinamentos – está se extinguindo. A Primeira Guerra Mundial é pensada como um marco para esse declínio: além dos soldados que retornavam dos campos de batalha silenciosos, a população em geral lidava com o trauma coletivo, o luto, a inflação e a fome. No entanto, Benjamin afirma que há artistas que produzem em meio ao silêncio do trauma.

“A Terra Desolada” (do original “The Waste Land”), poema considerado por muitos a obra-prima do escritor T.S. Eliot, pode ser visto como exemplo de uma produção que retoma o narrar após o silêncio de um trauma. Apesar de estadunidense, o poeta viveu grande parte da juventude na Europa (tendo se tornado oficialmente cidadão inglês no fim dos anos 1920), e, portanto, acompanhou de perto os horrores da guerra. Tido como um dos mais importantes poemas do século XX, “A Terra Desolada” foi publicado pela primeira vez em 1922, mas sabe-se que Eliot começara a escrevê-lo anos antes. Por se tratar de um texto bastante experimental em sua forma, repleto de referências e com um tom que beira o profético, é muito difícil definir exatamente sobre o que ele trata, mas é também impossível não concordar que a vivência da guerra e do pós-guerra estão no subtexto de grande parte das imagens evocadas no poema.

Dividindo-se em cinco partes, a primeira delas, “O Enterro dos Mortos", parte de uma inversão na lógica da simbologia clássica da poesia. Sua primeira frase (também uma das mais célebres) já faz com que o poema se inicie com uma afirmação inesperada:

“Abril é o mais cruel dos meses, germinando
Lilases da terra morta, misturando
Memória e desejo, avivando
Agônicas raízes com a chuva da primavera.”

Abril é, no hemisfério norte, o ápice da primavera, estação ligada à ideia de renascimento e presente no imaginário popular como cheia de cor e alegria. Sendo assim, ligar o mês ao adjetivo “cruel” causa estranheza. É, no entanto, justamente esse contraste que faz com que possamos compreender a sensação de desconcerto que a presença da morte no espaço de onde começa a vida gera. Essa ideia se materializa no fim da primeira parte, com versos que montam uma imagem assombrosa em tom de conversa cotidiana: “O cadáver que plantaste no ano passado em teu jardim / Já começou a brotar? Dará flores este ano?”

Outra imagem inesperada para tratar da impossibilidade de narrar o pós-guerra produzida pelo poeta se encontra na terceira parte do poema, “O Sermão do Fogo”:

“O vento cruza a terra estiolada. As ninfas já partiram.
Doce Tâmisa, corre suave, até que eu termine meu canto.
O rio não suporta garrafas vazias, restos de comida,
Lenços de seda, caixas de papelão, pontas de cigarro
E outros testemunhos das noites de verão. As ninfas já partiram.”

Aqui o sujeito poético se volta para o Tâmisa, rio que corta a cidade de Londres (cidade profundamente afetada pela guerra). Uma frase se repete: “As ninfas já partiram”. As ninfas eram, na mitologia grega, divindades femininas comumente ligadas a espaços da natureza (um bosque, um lago, um riacho), reconhecidas por sua grande beleza e que, por isso, frequentemente conquistavam homens e deuses que que as encontravam pelo caminho. Por esse motivo, as ninfas são frequentemente associadas às Musas na poesia, ou seja, são muitas vezes fontes de inspiração para o poeta.

É justamente sobre a falta de inspiração, a impossibilidade de cantar aquele rio, que a estrofe trata. O poeta narra um rio que já não mais suporta (aqui o verbo é usado num sentido de carregar) garrafas, lenços e pontas de cigarro – os “testemunhos das noites de verão” – símbolos de festa e alegria que outrora o rio exibia. A poesia que canta a beleza já não pode mais ser feita às margens daquele rio, o qual no passado inspirou poetas. E a repetição da frase confirma: “As ninfas já partiram”.

Londres é ainda diretamente mencionada mais uma vez durante o poema:

“Que som é esse que alto pulsa no espaço
Sussurro de lamentação materna
Que embuçadas hordas são essas que enxameiam
Sobre planícies sem fim, tropeçando nas gretas da terra
Restrita apenas a um raso horizonte arrasado
Que cidade se levanta acima das montanhas
Fendas e emendas e estalos no ar violáceo
Torres cadentes
Jerusalém Atenas Alexandria
Viena Londres
Irreais”

Nessa estrofe em particular, presente na quinta parte do poema, "O Que Disse o Trovão", observamos que o autor não dá uma descrição detalhada de um lugar específico, mas vislumbres dessa terra seca, árida – desolada. A estrofe pode ser organizada em três camadas que se sobrepõem e criam uma estranha temporalidade. A primeira imagem proposta é aquela da qual temos menos ideia de sua localização. Tudo o que podemos acessar é o som fraco do lamento de uma mãe, que nos faz sentir a tristeza após a guerra; a imagem desesperadora de uma multidão de pessoas anônimas; e uma imagem de terra seca e horizonte plano.

Depois, o poema reconstitui cidades antigas, cujas distâncias (tanto no tempo quanto no espaço) são referenciadas na localização "sobre as montanhas". A única descrição física que temos dessas cidades é em relação à sua destruição: "Fendas e reformas e explosões no ar violeta / Torres caindo". Diferente dos lugares descritos na imagem anterior, estes são nomeados: "Jerusalém, Atenas, Alexandria" – grandes cidades antigas cuja grandeza foi destruída pelas guerras. Após enumerar as cidades antigas, a lista continua a citar as cidades de Viena e Londres, destruídas pela Primeira Guerra Mundial, tornando-as agora parte da lista.

“A Terra Desolada” é um poema de mais de cem anos, mas que ainda suscita discussões devido às suas invenções para o gênero e, claro, pela sua efetividade em fazer seu leitor sentir o horror da guerra. Entretanto, é interessante observar que o texto realiza esse feito sem descrever cenas sanguinárias e chocantes – não há sangue, não há bombas caindo, não há pedidos de socorro; há uma melancolia silenciosa que perpassa as cinco partes, cercada pelas ruínas de uma vida anterior à guerra, anterior ao trauma. Em nossos tempos, em que assuntos ligados à psicologia não são mais tão tabus quanto foram décadas atrás, reconhecemos facilmente a palavra "trauma" e suas implicações na vida de um sujeito que o experimenta. Sabemos que é comum que a memória do acontecimento se apague, mas que reflexos psíquicos se manifestem de outras formas em sua vida. Sabemos também da dificuldade em narrá-lo, que leva pessoas a passarem anos em terapia. Esse poema de Eliot parece um ponto de partida para um entendimento profundo de um trauma – tudo aquilo que se consegue narrar dele.



Nota: A tradução utilizada para este texto foi a de Ivan Junqueira.




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Giulia Benincasa
Nasceu em 1999, é carioca e formada em Letras na UFRJ. Ama livros, filmes, praia, música, circo, macarrão e rolês que acabam cedo. Escreve poemas que podem ser encontrados pela Internet e também em seu livro, Ecolalia, que saiu em 2021 pela editora Urutau.

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