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O fim da aventura nas trincheiras: O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa e os veteranos da Primeira Guerra Mundial

As muitas conexões de O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa, e das Crônicas de Nárnia como um todo, com o cristianismo já foram imensamente comentadas ao longo das décadas, e embora fundamentais para a compreensão da história escrita por C. S. Lewis, costumam obscurecer outras facetas dos livros – dentre elas, a profunda relação entre a primeira aventura dos irmãos Pevensie e a trágica realidade dos veteranos da Primeira Guerra Mundial na Inglaterra e no mundo. Em O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa, os irmãos Peter, Susan, Edmund e Lucy Pevensie atravessam o portal dentro de um guarda-roupa para chegar no mundo mágico de Nárnia. Após uma série de acontecimentos fantásticos, culminando em uma épica batalha para derrotar a Feiticeira Branca e libertar aqueles sob seu jugo, os Pevensie são coroados Reis e Rainhas de Nárnia. Passados quinze anos de um governo feliz, os quatro irmãos, já adultos, são acidentalmente transportados de volta para a Inglaterra, onde tempo algum havia passado: Peter, Susan, Edmund e Lucy, não mais soberanos de um reino vasto e complexo, são novamente apenas quatro crianças. A tragédia, porém, é que aqueles quinze anos vividos em Nárnia não desapareceram: os irmãos Pevensie que retornam, têm suas memórias intactas e, embora de volta à sua vida na Inglaterra dos anos 1940 e a seus corpos infantis, de fato viveram por quinze anos como reis e rainhas, envelhecendo e realizando ações fantásticas das quais ainda se recordam. Os Pevensie, em resumo, são agora adultos – e reis – presos em corpos de crianças comuns. 

O sentimento de inadequação à vida normal foi ecoado ao longo dos séculos por veteranos de guerra. Dificilmente foi mais real, entretanto, que entre os homens que retornaram para casa após a Grande Guerra, conflito majoritariamente europeu ocorrido entre os anos de 1914 e 1918. C. S. Lewis era um desses soldados. O autor tinha 16 anos quando, no verão de 1914, a Inglaterra entrou em guerra contra a Alemanha. Foi apenas em 1917, porém, já com 19 anos, que ele seria integrado ao exército. Após unir-se ao Corpo de Treinamento de Oficiais em sua universidade, procurando pela “rota mais promissora para entrar no exército”, Lewis foi convocado para treinamento no Batalhão de Cadetes e, finalmente, feito Segundo Tenente no 3° Batalhão da Infantaria Leve de Somerset no Exército Britânico. Ele foi eventualmente transferido para o 1º batalhão do mesmo regimento, que seria enviado para servir na França. Lewis deparou-se com a guerra de trincheiras pela primeira vez na linha de frente do Vale do Somme, que no ano anterior tinha sido cenário da batalha mais mortífera da história da humanidade. Em abril de 1918, Lewis foi ferido por um projétil britânico que atingiu o alvo errado durante o ataque ao vilarejo de Riez du Vinage em meio à ofensiva de primavera alemã. Os dois colegas que estavam com ele foram mortos. Sua recuperação foi lenta, e apenas em outubro daquele ano foi-lhe permitido voltar a servir em Andover, na Inglaterra. Durante os meses de convalescença, Lewis passou por um período de depressão. Numa carta posterior, ele creditaria seu ateísmo – Lewis se converteria novamente ao catolicismo irlandês no futuro – à sua experiência dos horrores da guerra. 

A Primeira Guerra é, para muitos, a tragédia seminal que deu início ao século XX. Na Grã-Bretanha, é vista, e já o era então, como o fim de uma longa era de estabilidade conseguida mais de um século antes, no início da Era Vitoriana. Para Eric Hobsbawn, é também o fim da Era dos Impérios. Ela destruiu de uma vez por todas o otimismo da Belle Époque, e apagou as luzes do século do progresso que tinha sido o século XIX. Deu luz ao fascismo, ao nazismo e ao bolchevismo, eliminou quatro grandes dinastias e começou a desmantelar todos os impérios europeus. A geração de jovens que lutou e viveu por ela ficou conhecida como a Geração Perdida, cuja juventude foi engolida no turbilhão da virada do século e da tragédia da maior guerra vista até então. A Grande Guerra engoliu mais de 65 milhões de homens; quatro anos depois, regurgitou mais de 22 milhões de mortos, 23 milhões de feridos, outros milhões de deficientes permanentes, desaparecidos em combate, viúvas, órfãos, desempregados, viciados e criminosos. Devolveu, acima de tudo, silêncio – silêncio da parte de milhares de homens cujas memórias permaneceriam enterradas, contribuindo para o caráter quase mitológico do conflito para as gerações subsequentes. 

O historiador britânico Samuel Hynes descreve a situação como “uma geração de homens jovens e inocentes, suas cabeças cheias de altas abstrações como Honra, Glória e Inglaterra, foram para a guerra para criar um mundo seguro para a democracia. Eles foram massacrados em batalhas estúpidas planejadas por generais estúpidos. Os que sobreviveram ficaram chocados, desiludidos e amargurados por suas experiências de guerra, e perceberam que os reais inimigos não eram os alemães, mas os homens velhos em casa que tinham mentido para eles. Eles rejeitaram os valores da sociedade que os enviou para a guerra, e ao fazer isso separaram sua própria geração do passado e de sua herança cultural”. Embora essa noção seja parcialmente questionada pela historiografia; embora muitos generais competentes tivessem perdido batalhas não por incapacidade, mas por encontrarem-se em situações impossíveis; embora, em meio ao pavor e ao sofrimento, esses homens tenham encontrado também a camaradagem, e mesmo algum tipo de alegria; embora a vitória do exército inglês tenha sido um verdadeiro triunfo, apesar de todo o resto; ainda assim, o que Hynes escreve é parte inegável da experiência de uma vastidão de soldados. É bastante possível que tenha sido a experiência de Lewis. 

Apesar de relativamente breve, a passagem do escritor pela guerra de trincheiras o marcou de forma profunda, e isso pode ser percebido em sua obra, assim como na de muitos outros autores de seu tempo – inclusive em O Senhor dos Anéis, de Tolkien, amigo pessoal de Lewis, e em muitos contos de Hemingway. Embora O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa se passe durante a Segunda Guerra Mundial – com as crianças sendo evacuadas de Londres durante a Blitz – e faça, naturalmente, muitas referências às preocupações de sua época, sendo um reflexo de seu tempo, a relação pessoal de Lewis com o combate não deixa de ter seu impacto na narrativa – tanto de maneira mais óbvia, na construção das cenas de batalha de Nárnia, tiradas em grande parte das próprias vivências do autor durante a ação militar, quanto de forma mais sutil e filosófica, com o retorno dos irmãos Pevensie à Inglaterra servindo como alegoria para a tragédia dos jovens soldados que retornavam à casa depois de suas experiências nas frentes de combate da Primeira Guerra Mundial.

A média de idade de um soldado de infantaria dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial estava abaixo dos 25 anos. Mais de 75% deles se enquadravam nessa categoria. Na Europa, essa informação é infinitamente mais difícil de se determinar, devido ao altíssimo número de rapazes que mentiram suas idades para conseguirem se alistar. Ainda assim, é possível assumir que a média seja consideravelmente mais baixa; só no exército inglês, estima-se que pelo menos 250.000 meninos com menos de 18 anos – idade mínima oficial para o alistamento – serviram entre 1914 e 1918. O soldado mais jovem a servir no conflito tinha 13 anos, e declarara ter 18 para juntar-se ao exército. Meninos de 14 e 15 anos eram uma ocorrência comum em muitos pelotões, e rapazes de “18 anos incompletos” – um eufemismo para 17 – foram oficialmente integrados a muitos exércitos, incluindo o americano, que, em teoria, era mais estrito com a idade dos recrutas que enviava para cruzar o Atlântico. Mais ainda, eram esses jovens as principais casualidades de guerra, sobretudo em função de regulamentações que privilegiavam a convocação de homens jovens e solteiros que não tivessem filhos. Na Inglaterra, calcula-se que tenham morrido 750.00 soldados: destes, apenas 160.000 eram casados. A convocação obrigatória excluía viúvos, pais e clérigos, naturalmente fazendo com que homens muito jovens, que ainda não tinham tido tempo de constituírem uma família – ou, em alguns casos, de entrar na vida religiosa – fossem convocados em maior peso. O rosto da Grande Guerra, enfim, era o de um adolescente. 

Esses meninos eram levados a combater sobretudo por vontade própria, malgrado por vezes influenciado por pressão social. A sociedade civil, a máquina de propaganda militar e o espírito geral da época eram ferramentas poderosas para convencer “crianças ardentes por alguma glória desesperada”, nas palavras de Wilfred Owen em seu Dulce et Decorum Est, não apenas da necessidade, mas sobretudo do enorme valor em juntar-se ao exército. Afinal, como o ditame popular da época ecoava, “é doce e apropriado morrer pela pátria”, e o esforço de guerra precisava de todos os homens saudáveis e jovens que pudesse ter para derrotar a ameaça alemã. A princípio, acreditava-se que seria uma guerra rápida e fácil, vencida em alguns poucos meses; uma oportunidade para glórias fáceis e heroísmo patriótico que sempre apelou para adolescentes. Todos estavam alistando-se, e aqueles que não se alistavam certamente deveriam ser covardes – essa era a atitude geral. Alguns grupos de mulheres chegaram a organizar-se para distribuir penas brancas – um símbolo de covardia – para qualquer homem que parecesse ter idade para combater que estivesse em roupas civis, e não em um uniforme. Não unir-se ao esforço de guerra era um estigma, e jovens rapazes que queriam ser homens tentavam livrar-se dele de qualquer maneira possível. 

A “maneira possível” era, com frequência, a mentira. Adolescentes de 14, 15, 16 anos mentiam suas idades, declarando ter 18 anos ou mais para poder alistar-se. Jovens de 17 anos eram convocados para a luta por terem “18 anos incompletos”. Alguns desses meninos passavam-se por mais velhos com facilidade; outros eram, obviamente, mais jovens do que diziam ser, mas ninguém os impedia de se alistar: fazendo vista grossa, exércitos por toda a Europa engrossaram consideravelmente suas fileiras. Outros ainda eram incentivados a mentir: há inúmeros relatos de soldados que, já mais velhos, recordam-se de terem tentado alistar-se com sua idade verdadeira – 15, 16 anos – e serem mandados pelos recrutadores, cujo trabalho incluía impedir o alistamento de menores de idade, a saírem da sala, entrarem novamente, e declararem ter 18 anos, ou a terem sua idade alterada pelos próprios oficiais em documentos com a intenção de permitir que se alistassem. É sabido que, extraoficialmente, muitos membros do exército teriam incentivado jovens civis a alistarem-se mentindo sobre sua idade.

Nas trincheiras, esses meninos conheceriam o inferno. A Grande Guerra é conhecida por muitos como “a última guerra entre cavalheiros”. A realidade não poderia estar mais distante disso. A utilização de artilharia, bombas e, sobretudo, gás foi devastadora, e a escala de mortandade vista no conflito não tinha precedentes. Calcula-se algo em torno de 20 milhões de mortes e 21 milhões de feridos, entre militares e civis. A vida na linha de frente incluía todo tipo de violência, horror e insalubridade, além do elevado risco de mortalidade. A guerra de trincheiras deu origem a muitos termos médicos que marcariam a medicina de guerra, em grande parte pela absurda quantidade de vítimas de tais aflições. Alguns dos exemplos incluem “pés de trincheira” – quando, devido ao frio e à umidade, em conjunto, por vezes, com ferimentos e sapatos apertados ou inadequados de outra forma, os pés dos soldados começavam a apodrecer ainda acoplados ao corpo, podendo rapidamente desenvolver-se em uma gangrena que resultaria na amputação do pé, da perna, ou mesmo em infecção generalizada e morte de sua vítima – ou “shell Shock”, um tipo de neurastenia, hoje incluída na terminologia Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), causada por choques e traumas que foi muito comum entre soldados da Primeira Guerra Mundial, e poderia incluir sintomas como paralisação, terrores noturnos, ataques de pânico, incapacidade de raciocinar, comer, dormir ou falar, o desenvolvimento de “tiques” e manias, e outros sintomas similares – famosamente, o “olhar de mil jardas”, nome dado ao olhar vazio, vidrado e perturbador exibido por muitos soldados vítimas de “shell Shock”

O retorno para casa, porém, não foi muito mais gentil: esses rapazes – alguns que, após 4 anos de serviço militar, voltavam para casa com apenas 18 anos – saíam das trincheiras traumatizados, mutilados, por vezes amputados ou vítimas de neurastenias e outras doenças psicológicas. Muitos viriam a se tornar alcoólatras ou dependentes químicos. No ano de 1919, 40% dos suicídios registrados no Canadá envolviam veteranos da Grande Guerra, enquanto calcula-se que na Nova Zelândia da década de 1920, 40 em cada 100.000 soldados egressos tiraram a própria vida – um aumento gigantesco em relação à estatística de 8.7 suicídios a cada 100.000 homens que não serviram. Além das aflições físicas e psicológicas, esses homens foram submetidos ainda a outro tipo de tragédia: a insegurança econômica e falta de apoio de seus governos. Muitos homens mutilados ou mesmo amputados foram considerados “aptos para o trabalho” e tiveram suas pensões de deficiência negadas, ou concedidas apenas parcialmente, sendo reduzidos à miséria quando, na realidade, eram incapazes de conseguir um emprego adequado. Mesmo homens saudáveis tiveram imensa dificuldade em conseguir sustentar a si próprios: tendo sido tirados da vida civil muito jovens, muitos não tinham tido a oportunidade de completar sua educação formal ou de desenvolver qualquer tipo de habilidade rentável; tendo passado quatro anos fora, seus empregos tinham sido ocupados por outros homens que, por uma razão ou por outra, não estavam no front, e também por mulheres que agora mais do que nunca entravam na força de trabalho. Mesmo vagas de emprego desocupadas poderiam ser inatingíveis: a discriminação contra veteranos era uma ocorrência real, e não é incomum ouvir relatos de anúncios de emprego que especificamente informavam não aceitar aplicações de ex-combatentes. Desesperados, sem dinheiro ou perspectiva, bem treinados para receber ordens, matar, e não muito mais do que isso, muitos desses homens se viram forçados a envolver-se no mundo do crime – algo que influenciou a explosão do crime organizado na década de 1920. Como diz Maquiavel em seu A Arte da Guerra, “Aqueles que não sabem viver de outra prática, não encontrando o que lhes sustente [...], são forçados pela necessidade a sair do reto caminho, e a justiça é forçada a eliminá-los”. A guerra cria ladrões, a paz os enforca, diz um antigo provérbio italiano citado pelo autor. 

Para tornar pior uma situação já desesperadora, havia uma certa atitude geral, recontada por inúmeros veteranos, de ignorar e esquecer por parte do resto da sociedade. Ao retornarem da guerra, esses homens estavam desacostumados com a vida civil. Por muito tempo tinham convivido em um tipo de sociedade à parte, com suas próprias regras e costumes. O reajuste para o mundo civil já seria difícil por si próprio: o desgosto com que foram recebidos tornou tudo ainda mais complicado. Muitos soldados regressos contaram sentir-se quase como animais exóticos ao voltar para casa. “Não sabiam o que fazer conosco” foi um sentimento ecoado por milhares de homens ao redor do mundo. Via de regra, não estavam preparados para lidar com um grupo imenso de homens altamente traumatizados e com uma experiência de vida tão diferente das dos demais. A falta de preparação era certamente material – como percebido pela falta de emprego ou pensões para esses homens – mas também social e psicológica. Os anúncios de emprego que excluíam veteranos não existiam por acaso: eram reflexo de uma sociedade que não sabia como conviver com aqueles homens, e preferia escondê-los a aprender. A guerra tinha sido traumática para todos, mas aqueles que não estiveram nas trincheiras tiveram mais facilidade de esquecê-la, e soldados mutilados, amputados, traumatizados, alcoólatras, dependentes químicos, desempregados, empobrecidos, vítimas de estresse pós-traumático e depressão eram uma lembrança desagradável de um período que todos ansiavam por deixar para trás. Como resultado, havia um incentivo geral para que esses homens se mantivessem em silêncio sobre suas experiências, inserindo-se da melhor forma possível na sociedade mais uma vez e esquecendo da guerra de uma vez por todas. Isso, é claro, seria impossível, mas a tentativa foi feita, e surtiu seus efeitos: a história oral sobre Primeira Guerra Mundial é razoavelmente pobre, sobretudo quando comparada a de outros conflitos, como a Segunda Guerra Mundial, em parte pela relutância ou apenas pouca oportunidade de veteranos em falar sobre seu serviço. 

Mesmo nas ocasiões em que poderiam falar livremente, ou encontrando companhia interessada o suficiente, muitos dos homens recém-retornados à casa sentiam-se incapazes de verdadeiramente conversar sobre o que havia acontecido no front. Havia um certo distanciamento entre os ex-combatentes e seus pares civis – uma falta de conexão que parecia separá-los uns dos outros e impedir qualquer conversa realmente honesta a respeito do que acontecera nos últimos anos. Havia uma percepção de que aqueles que não tinham lutado não compreendiam de fato o que se passara entre 1914 e 1918; as imagens e informações que chegavam para o público geral não começavam a descrever o horror das trincheiras. Uma poderosa máquina de propaganda patriótica envolvera o conflito com uma pátina de heroísmo que não concordava com a visão de muitos dos soldados a respeito de si próprios. Em seu poema “Apologia pro poemate meo”, Wilfred Owen expressa essa noção com perfeição, pondo em questão as muitas ideias românticas que pairavam sobre a Grande Guerra. Em seus últimos versos, ele diz, em seu típico estilo agressivo e cínico: “Ainda assim, a não ser que tenha dividido com eles no inferno a horrível escuridão infernal, em que o mundo é não mais que o tremular de um clarão, e o céu uma estrada para um projétil, você não ouvirá sua risada; você não os acreditará contentes por nenhuma graça minha. Esses homens merecem suas lágrimas; vocês não merecem a alegria deles”. A solução encontrada por muitos foi a criação de uma série de associações de ex-combatentes e veteranos de guerra na busca de um tipo de apoio e camaradagem que só era possível entre eles próprios. Muitos acreditavam que os únicos com quem se poderia conversar aberta e honestamente sobre a guerra eram outros soldados regressos – outros não queriam, e muito menos poderiam compreender realmente. E, assim, o assunto tornou-se cada vez mais relegado a grupos fechados de homens com experiências em comum, e mesmo entre eles, a conversa era por vezes limitada. 

O drama desses soldados é recontado de maneira suave, que passa por vezes despercebida, em O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa. Em Nárnia, os irmãos Pevensie crescem, amadurecem e se tornam adultos; mais ainda, tornam-se reis - foram comandantes de exércitos, participaram de batalhas, mataram pessoas e criaturas. São essas as pessoas que cruzam o guarda-roupa e voltam para corpos de criança na Inglaterra dos anos 1940. O mais velho deles, Peter, tem apenas 13 anos – jovem demais para votar, que dirá para comandar um país. Jovem demais para alistar-se no exército que lutava na Segunda Guerra Mundial – pouco importava que cinco minutos antes tivesse sido o comandante em chefe das forças narnianas. Peter, Susan, Edmund e Lucy tinham crescido e amadurecido, tido experiências ímpares e vivido coisas fantásticas e terríveis de uma só vez, e agora eram forçados a retornar para suas vidas de sempre, como se nada tivesse acontecido. O mundo não parecia ter mudado – mas eles tinham. Tudo aquilo que tinham aprendido e sido pouquíssimo tempo atrás valia nada, e ninguém compreendia, ou mesmo acreditaria em suas experiências. Aquilo que compusera suas vidas durante os últimos anos de repente não existia mais. Eram, em suma, pessoas muito mais velhas presas em corpos muito jovens. Pessoas muito diferentes daquelas que haviam entrado no guarda-roupa, de quem agora esperava-se um rápido e silencioso retorno à normalidade. Não é impossível perceber o paralelo traçado por Lewis entre seus personagens e aquilo que ele e seus pares viveram ao retornar para casa após sua temporada no exército. E isso se torna dolorosamente óbvio na última página de O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa:

“Então esses Reis e Rainhas entraram no matagal, e antes de terem andado alguns poucos passos, eles todos lembraram-se de que a coisa que tinham visto se chamava poste de luz, e antes de andarem um pouco mais, eles perceberam que estavam andando não entre galhos, mas entre casacos. No momento seguinte eles todos saltavam da porta do guarda roupa para dentro de um quarto vazia, e já não eram mais Reis e Rainhas em sua caçada, mas apenas Peter, Susan, Edmund e Lucy em suas velhas roupas. Era o mesmo dia e a mesma hora na qual tinham todos entrado na guarda roupa para se esconder. A sra. Macready e os visitantes ainda estavam conversando no corredor; mas por sorte eles nunca entraram no quarto vazio, e as crianças nunca foram pegas. E esse teria sido o fim da história, não tivessem eles sentido que realmente deveriam explicar ao professor sobre o sumiço de quatro casacos de seu guarda-roupa. E o professor, que era um homem admirável, não disse a eles para não serem tolos ou não contarem mentiras, mas acreditou em toda a história. 'Não', ele disse, 'Eu não acho que será útil tentar voltar através da porta do guarda-roupa para pegar os casacos. Vocês não entrarão em Nárnia de novo pela mesma rota. Nem seriam os casacos muito úteis agora se conseguissem! Hein? O que foi? Sim, é claro que voltarão para Nárnia algum dia. Uma vez um Rei em Nárnia, sempre um Rei em Nárnia. Mas não tentem usar a mesma rota duas vezes. De fato, não tentem voltar, ponto. Vai acontecer quando não estiverem procurando por isso. E não falem muito à respeito, mesmo entre vocês mesmos. E não mencionem isso para ninguém, a não ser que vocês saibam que eles tiveram aventuras do mesmo tipo eles próprios. O que? Como saberão? Ah, vocês saberão, com certeza. Coisas estranhas que dizem – mesmo seus olhares – vão revelar o segredo. Mantenham seus olhos abertos. Meu Deus, o que ensinam à vocês em suas escolas?'. E esse foi o fim da aventura no guarda-roupa.”

Como os Reis e Rainhas de Nárnia, os soldados que voltaram para casa gradualmente lembravam-se do mundo que tinham deixado para trás e percebiam que já não estavam mais entre as paredes de uma trincheira, mas em um trem, casa de família ou sala de universidade. Como os irmãos Pevensie, esses homens abruptamente se viram de volta a suas casas, e era como se nada tivesse mudado: os interesses, as conversas, as expectativas sociais e mesmo as vivências daqueles ao seu redor ainda eram as mesmas. Nada estava diferente – exceto por eles. Eles, como adultos presos em corpos de crianças, eram assassinos presos em corpos de estudantes. Soldados em trajes civis. Velhos – pois a desilusão, a amargura, o cinismo e o desgosto que sentiam certamente os tinha envelhecido anos – em corpos de meninos. É claro que voltariam para a guerra – não quando estivessem procurando, mas quando menos esperassem: quando uma porta é fechada com muita força, quando fogos de artifício explodem no céu, quando uma sala está muito lotada, quando um copo cai no chão, quando um filho se aproxima de maneira abrupta, quando, na escuridão, tentam dormir.  Uma vez um soldado de trincheiras, sempre um soldado de trincheiras. Esse teria sido o fim da história, não tivessem eles sentido a necessidade de falar a respeito. E quando isso acontece – quando são ditas as coisas que ninguém gostaria de ouvir – a reação é deprimente. Alguns lhes dizem que são tolos. Outros, que não contem mentiras. A maioria, porém, tem o mesmo conselho para dar: “Não falem muito a respeito, mesmo entre vocês mesmos. E não mencionem isso para ninguém, a não ser que vocês saibam que eles tiveram aventuras do mesmo tipo eles próprios. O quê? Como saberão? Ah, vocês saberão, com certeza. Coisas estranhas que dizem – mesmo seus olhares – vão revelar o segredo. Mantenham seus olhos abertos. Meu Deus, o que ensinam à vocês em suas escolas?”.

E esse foi o fim da aventura nas trincheiras. 

Referências 




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